O escritor belga Luc Vankrunkelsven conhece melhor do que muitos brasileiros a interdependência econômica entre Brasil e Europa. Seu foco de estudos é o setor de produção agrícola, revelado em suas pesquisas como um dos maiores responsáveis pela insustentabilidade ambiental e agravante dos problemas relativos ao aquecimento global. Há cinco anos Vankrunkelsven vive entre Brasil e Europa, conhecendo projetos e investigando a realidade da interdependência do velho continente e do Brasil neste setor. O destaque em seus estudos é para a estrutura produtiva e de consumo da soja. Especialista em assuntos da OMC – Organização Mundial de Comércio, já publicou dois livros no Brasil, editados pelo Cefúria: Navios que se cruzam na calada da noite. Soja sobre o oceano, de 2007 e Aurora no campo. Soja diferente, de 2008.
Durante sua viagem ao Brasil, entre março e abril de 2009, Luc Vankrunkelsven concedeu esta entrevista exclusiva à jornalista Cynthia Schneider, da ANDA. Ele fala sobre sua experiência com projetos agrícolas de baixo impacto ambiental, da urgência em se promover uma atitude de consumo alimentar local, da insustentabilidade do consumo de proteínas de origem animal e da vitalidade econômica e sustentável do vegetarianismo. E o escritor vai além: sua pesquisa mostra que a agricultura baseada nas lógicas do petróleo e nas fontes de energia fósseis já está em crise e vai parar nos próximos 30 a 50 anos.
ANDA – Sua pesquisa atual trata da dependência entre Europa e Brasil, especialmente no âmbito da produção alimentar. Na seara agrícola, em especial sobre a produção de grãos, qual a principal característica desta relação hoje?
Luc Vankrunkelsven – Desde 1962 há um acordo entre os Estados Unidos e a União Europeia. Neste acordo os Estados Unidos aceitaram que a Europa poderia defender sua agricultura, mas com uma exceção: tem que aceitar que os oleagenosos possam entrar sem alfândega e sem restrição (sem quotum). Com essa decisão política começou na Europa a história da importação da soja, farelo de soja, glúten de milho, amendoim do Senegal, mandioca de Tailândia, farelo de peixe dos oceanos. Eram 10 milhões de toneladas por ano em 1962 e cresceu rápido: de 1992 até agora são 50 milhões de toneladas anuais que vão para a ração de animais. Destes 50 milhões de toneladas de grãos, 39 milhões são de soja e disso 20 milhões têm origem brasileira.
Em 1964 começou no Brasil a ditadura militar. Os militares começaram junto com os Estados Unidos e órgãos internacionais com a ‘Revolução Verde’. Pode-se dizer que era uma contrarrevolução da ‘Revolução Vermelha’. Desde os anos 50 surgiu na América Latina um grito para uma reforma agrária. Era perigoso para os Estados Unidos, no contexto da guerra fria. A resposta era a Revolução Verde com supersementes, num pacote com adubo químico e inseticidas. O carro-chefe desta ‘revolução’ era a soja. Sobretudo desde 1999, quando houve a desvinculação Real-Dólar cresceu muito no Brasil a produção da soja. Também a doença da vaca louca e a demanda de soja não transgênica na Europa, e a China como membro da OMC aceleraram muito o avanço da soja desde 2001.
Nos últimos anos a soja não vai mais só para ração animal (frangos, suínos, vaca de leite e até peixes), mas também para o biodiesel. Pode-se dizer que no grão da soja encontram-se os dois símbolos supremos da nossa sociedade globalizada: o carro e a carne. O farelo de soja é utilizado para ração animal e o óleo da soja vai para o biodiesel. Nos últimos anos ocorreu a febre do álcool de cana-de-açúcar, expulsando até a soja!
Desde 2001 a China é membro da OMC. A partir daí cresceu muito o fluxo de proteínas do Brasil, Argentina, Paraguai, Estados Unidos e Bolívia para a China. Agora a China importa mais soja do que a Europa. Vinte anos atrás os chineses comiam 15 quilos de carne por ano. Agora consomem 38. Eles comem também muito peixe. É uma tragédia planetária, porque a China tem 20% da população do mundo, mas só tem 6% da terra arável e 6% da água doce. Precisa de muita terra, muita água para ração animal e para produzir carne. E agora até os indianos, mesmo historicamente vegetarianos devido à religião, começaram a entrar no paraíso do McDonald’s. Em 15 anos, haverá mais indianos que chineses. E eles se perguntam por que não poderiam comer carne, se os europeus, brasileiros e outros povos comem muita carne? A população do mundo dobrou os últimos 50 anos, mas o consumo de carne e peixe quintuplicou. Em 15 anos vai de novo dobrar! Então um grande desafio para o século 21 é: como vamos nos relacionar com as proteínas? A terra tem seus limites. O “overshootday” (o dia em que a terra pode regenerar nosso estilo de viver) vinte anos atrás ainda era em 31 de dezembro. Em 2007 era 1º de outubro e em 2008 era 23 de setembro. Quando será no ano 2009? No ano 2020? Comemos a Mãe Terra.
Há ainda que se considerar que a alimentação animal criou um círculo entre os portos do sul e os portos do norte. Isto porque a Europa importa 50 milhões de “graanvervangers” (termo em idioma holandês) – que é a substituição de grãos por soja e glúten de milho entre outros e exporta, devido ao dumping, 30 milhões de toneladas de trigo! O trigo desapareceu da ração animal com a importação mais barata de soja. Mas quem dirige este círculo? Ele está nas mãos de quatro grandes multinacionais: Cargill, Bunge, ADM, Dreyfuss. Elas têm o comércio do Norte para o Sul e do Sul para o Norte. Aqui falei só da relação Europa-Terceiro Mundo. Tem ainda o comércio dos Estados Unidos-Terceiro Mundo e Europa. Desde 1955 até hoje há o “Food for peace”. Me parece muito cínico: ‘Comida para a paz’. ‘Ajuda’ dos povos do Sul com a escassez de trigo, etc. dos Estados Unidos. O sabor dos povos do Sul mudou de mais amargo para mais doce com esta medida e eles são agora estruturalmente dependentes do trigo (sabor doce) do Norte, ou seja, dos Estados Unidos, e desde os anos 80 também da Europa.
Que dados e pesquisas científicas demonstram que a alimentação baseada em proteína animal colabora para o aquecimento global?
Vankrunkelsven – Só nos últimos três anos isto se transformou um assunto quente. O Al Gore, com seu roteiro mundial sobre o aquecimento global, esqueceu da carne! Tem agora a filmagem Meat the Truth, que trata sobre este ponto cego. Até a FAO – Food And Agriculture Organisation – começou a escrever a partir de 2006 sobre esse aspecto da carne. Há dados que o trânsito é responsável por 15% do aquecimento global enquanto o complexo mundial da carne responde por até 18%. Só para ilustrar: a internet com serviços de busca (Google e outros) polui 2,5%, e os aviões: 2%. Tim Lang, professor na Grã-Bretanha, disse que até 50% do aquecimento global está na cozinha e nas escolhas que fazemos lá no dia a dia. Um dos dados relativamente novos é que os bois e vacas são elementos-chave na história do aquecimento. O metano de um boi é 23 vezes mais forte que o carbono de um carro, e fica mais perto na atmosfera do que o carbono. Poderia dizer que um boi tem o mesmo efeito para o aquecimento global que um carro pequeno. Mas, no Brasil, ninguém sabe quantos bois existem. Poderiam ser 185 milhões, muito para a exportação ao mercado internacional. Então para cada brasileiro há uma vaca. Pode-se dizer que muito do aquecimento global do Brasil está no campo.
É fato que a exploração comercial de animais é responsável por sérios e irreversíveis danos ao meio ambiente. Nos países em desenvolvimento, temos visto a destruição desenfreada de florestas inteiras, como a Amazônica, para a criação de gado. Como a Organização Mundial do Comércio lida com a realidade da insustentabilidade da produção de animais para consumo humano nos países em desenvolvimento?
Vankrunkelsven – Com a moratória dos últimos três anos de soja na Amazônia, o impacto da soja no desmatamento diminuiu. O avanço da soja, da cana-de-açúcar e do boi no cerrado está maior e mais grave. O boi é agora o número um do desmatamento na Amazônia. Em 1991 não havia na Amazônia gado suficiente nem para alimentar a população local. Com o avanço da pecuária na região, o país aumentou suas exportações de carne de US$ 500 milhões em 1995, para US$ 1,5 bilhão em 2003. Isto não tem nada a ver com a OMC. São decisões do governo brasileiro e opções do comércio brasileiro, legal e ilegal. Tem ainda muitos bois ilegais na fronteira agrícola. O problema é que a OMC tem só a ideologia neoliberal de ouvir as fronteiras internacionais para aumentar o comércio global. A OMC não incorporou nada de regras para a sustentabilidade, direitos humanos etc. É só comércio. Só na Rodada de Doha, que está andando desde 2001, tem uma discussão sobre o aspecto non-trade – não comercial – com agricultura multifuncional, segurança alimentar, meio ambiente.
Há programas europeus para desestimular a destruição ambiental em países em desenvolvimento por meio da diminuição de compra e consumo de produtos de origem animal?
Vankrunkelsven – Até onde eu sei, não. Não há esta mentalidade na sociedade nem vontade política para questionar o consumo de carne, nem no Brasil, nem na Europa. Sim, tem um movimento crescendo de vegetarianismo em ambos os lados do oceano. E cresceu muito na Grã-Bretanha com a crise da vaca louca. Mas não vejo iniciativas dos governos ou da Comissão Europeia. A ideologia da Europa é ainda exportar produtos agrícolas, também a carne. Mas no Brasil é igual. Pode-se dizer que existe uma guerra entre os frangos da Sadia e os frangos da Holanda no mercado russo. A diferença é que a ração dos frangos da Holanda vem do Brasil, Argentina e outros paises: é a soja. A cultura gêmea, o milho – como complemento de energia – é a mais plantada na Europa nas regiões dos portos onde entram as proteínas da soja.
A sua pesquisa hoje está focada na ideia de “pensar globalmente, alimentar-se localmente”. Como a alimentação pode ser uma peça central para a sustentabilidade do planeta?
Luc Vankrunkelsven – Sim, tem a globalização da comida, mas ao mesmo tempo tem um movimento internacional para alimentar-se mais localmente. Neste movimento temos também nossa campanha na Bélgica: “Pensar globalmente, alimentar-se localmente”. Para o roteiro de universidades, movimentos e projetos que visito agora em várias cidades no Brasil traduzimos um livrinho sobre este assunto, que está neste endereço. Para nós esta campanha é para alfabetizar o consumidor europeu sobre os “quilômetros escondidos no prato, sobretudo na carne e no peixe”. Por exemplo: o salmão de Noruega, no norte da Europa está barato no Carrefour na Bélgica porque come 50% de farelo de soja do Brasil, Argentina, etc. e 50% de farelo de peixe vindo do Peru, país situado do outro lado do oceano. Tem que contar esses quilômetros.
A mesma coisa vale para o ovo de um frango a um quilômetro de minha casa, mas com ração animal distante 10.000 km. Este é nosso assunto central. Diminuir o consumo de proteínas animais (até o caminho dos vegetarianos) e se você come carne e peixe, buscar carne e peixe que comeram proteínas de nossa terra. Não temos problemas com importação de, por exemplo, café. Para um copo de café são necessários só 2 gramas de café. Para um quilo de bife precisa-se de muito mais quilômetros, mesmo que este boi estivesse a um quilômetro de minha casa, porque comeu ração animal do outro lado do planeta. Para um quilo de bife, não tem só o efeito estufa, mas é preciso também muita terra e até 19.000 litros de água. Este ponto da água é também central para o século 21. Muitas guerras no futuro não serão mais por petróleo, mas por água. O Brasil tem tudo: 12% da água doce do mundo, muita terra, muito sol. Poderia dizer que a exportação de soja, biodiesel, etanol são exportação da terra, da água e do sol do Brasil.
Como é possível adotar em larga escala processos que encurtem a distância entre produtor de alimentos e consumidor no Brasil hoje? Pode citar alguns casos?
Vankrunkelsven – Há inúmeras iniciativas no Brasil para diminuir os quilômetros até o prato. Pode ler meu artigo sobre ‘Supermercados e feiras do produtor’; “Agroindústria familiar: o processamento nas próprias mãos”; “Ecovida, uma rede de alimentos vivos”. Eu conheço melhor as iniciativas no Sul do Brasil, mas nas minhas viagens aprendo várias iniciativas no país inteiro. Por exemplo: estava em Goiânia na semana passada. Lá tem uma loja de bioprodutos. Duas vezes por semana acontece uma feira de agricultores agroecológicos da região dentro da loja. É muito simpático e animador. Tem também a busca para processar produtos do cerrado rico, como alternativa à destruição do Cerrado atual pela soja, a cana-de-açúcar e o boi.
Você utiliza a soja como metáfora para a globalização, como parte de uma proposta para o uso justo e sustentável da agricultura. Pode explicar como é possível fazer isso? Há casos onde isso já se verifica?
Vankrunkelsven – Uma pessoa, um povo, não pode viver só com análises, só denúncia. Precisa de análise, mas além da denúncia tem a esperança. Além da soja tem alternativas. Escrevi sobre esses milhares de iniciativas no segundo livro: Aurora no campo. Soja diferente. Por exemplo: com esta decisão de 1960-61 a Europa é 99% dependente de proteínas de fora. Só temos 1% da terra arável na Europa com nossas proteínas: gramíneas-trevo, tremoços, cânhamo, ervilhas e até a soja. Sim, temos a soja na Itália, mas porque entra muito barato (sem alfândega saindo do Brasil e sem alfândega entrando na Europa) é muito difícil cultivar nossas proteínas. É sempre mais caro. Mas tentamos animar os agricultores para retomar nossos cultivos próprios. Ao mesmo tempo devemos fazer o trabalho muito difícil da mudança política. Temos que discutir de novo este ‘acordo’ de 1962, que dura até agora com efeitos perversos, cada dia, cada noite. Entram 50 milhões de toneladas de ração animal na Europa e exportamos 30 milhões de toneladas de trigo. Quantos caminhões de 20 toneladas seriam?
No seu livro Navios que se cruzam na calada da noite – soja sobre o oceano, você aborda a sobrecarga ambiental da indústria da soja. Quais as providências mais urgentes que podem ser tomadas para estancar este processo, tanto por parte dos cidadãos como da esfera política?
Vankrunkelsven – Desculpa, tudo é urgente. Tenho um livro e têm muitos outros estudos sobre isso. A situação é alarmante. Só vou citar alguns artigos que estão no livro Navios: direitos humanos e soja, soja e escravidão, soja e alumínio, soja transgênica, soja e transporte, soja e água, soja e terra, soja e favelas, soja e seca, soja e desmatamento... Qual é o mais urgente? Acho que tudo está urgente e precisa uma mudança integral.
A agricultura da soja desperta grandes debates sobre a monocultura, os agrotóxicos, as variedades transgênicas e a concentração da propriedade das terras. Há ainda a questão do desmatamento, do desperdício de água no cultivo de grãos e a queima de carbono no transporte nacional e internacional. Uma vez que os recursos básicos como a água tornam-se cada vez mais escassos no planeta, como podemos lidar com a discussão em torno do consumo de soja?
Vankrunkelsven – Para um quilo de grãos são necessários 550 litros de água. Tem também erosão. Pode-se dizer que o Brasil perde, para cada quilo de soja, 10 quilos de terra. Então podemos continuar. Este modelo de monocultivo não é sustentável. Tem uma herança da revolução verde: tem também muitos agricultores familiares no sul do Brasil com soja. Este desenho é diferente. Por exemplo: há uma chácara de 24 hectares e neste sistema 4 hectares de soja em rotação de cultivos. Há outro modelo em que os produtores no Mato Grosso utilizam até 300.000 ha de monocultivo da soja. São dois modelos de agricultura conflitantes. Um é o modelo de monocultivo, que nunca será sustentável. O outro, da agricultura familiar, pode ser mais sustentável, até sustentável. No modelo de 100.000 até 300.000 ha de monocultivo de soja e de latifúndio. A situação é totalmente diferente e oposta em cada um destes modelos.
O conflito é claro. Todo mundo no agronegócio é eufórico sobre este avanço da soja, mas não tem futuro para mim. Esta agricultura baseada no petróleo e nas fontes de energia minerais – como as minas de fosfato – vai parar em 30 a 50 anos. Para uma tonelada de adubo químico é preciso mais de uma tonelada de petróleo. Sou pessimista e otimista ao mesmo tempo: vai parar. Alguns meses atrás um pesquisador terminou seu doutorado sobre a situação dos fazendeiros da soja no Mato Grosso. Na propaganda, por exemplo, da televisão, tudo é ótimo, mas quando ele fez entrevistas pessoais, ele ouviu que muitos deles têm dívidas enormes: até 8 a 10 vezes o próprio patrimônio. Será uma quebra semelhante como a dos Estados Unidos no meio imobiliário, origem do atual crise financeira atual?
Seu trabalho de pesquisa tem alguma relação com a eco-economia? Este é um foco de estudos que pode ajudar a compreender as mudanças alimentares que são urgentes hoje?
Vankrunkelsven – Tem verdadeiramente relação, mas não posso dizer estudo. Essa relação é o fundo da nossa atividade. Tentamos trabalhar junto com agricultores, movimentos de meio ambiente, consumidores, movimentos do terceiro mundo, movimento da paz. Fazemos análises e construímos alternativas. Por exemplo: na Bélgica tem um grande problema de muito esterco. Só se conheceu esta história de insustentabilidade a partir de 1962, com a importação de muita soja, que permitiu compreender a origem do problema. Há uma concentração de milhões de frangos e suínos perto dos portos. E o círculo ecológico é quebrado... dos dois lados do oceano, na Bélgica com a importação de muitos nutrientes e no Brasil com a exportação de nutrientes mais todos os outros problemas já citados. Quando se importam proteínas (da soja), é preciso energia e ela vem do milho. A Bélgica é plena de milho desde os anos 60. Sobre esta história dos grãos gêmeos soja-milho desde 1928 pode-se ler aqui.
(Por Cynthia Schneider, ANDA, 20/04/2009)
* Mais informações sobre os livros de Luc Vankrunkelsven Navios que se cruzam na calada da noite. Soja sobre o oceano, de 2007, e Aurora no campo. Soja diferente, de 2008, editados pelo Cefúria, podem ser encontradas no site www.fetrafsul.org.br ou solicitadas pelo e-mail secgeral@fetrasul.org.br.