40% do rebanho bovino, no Brasil, é produzido na Amazônia. Segundo Mario Menezes, que é diretor-adjunto da organização Amigos da Terra, 73 milhões de hectares da Amazônia já foram desmatados e, desse total, mais de 80% foi feito pelos agropecuaristas. De toda a carne produzida na Amazônia, 1/3 é enviado para exportação. “O poder aquisitivo das pessoas que vivem na Amazônia é muito baixo e poucas pessoas podem comer carne”, disse Menezes, que recentemente publicou um estudo intitulado A hora da conta: pecuária, Amazônia e conjuntura.
Mário Menezes traz dados importantes para entendermos a que nível chegou o desmatamento da floresta e o que é preciso ser feito para reduzir o problema. “Estamos trocando a Floresta Amazônica por grão e carne que poderiam continuar sendo produzidos em outras regiões”, afirma ele, nesta entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Mario Menezes trabalha na Amazônia há 32 anos, 20 dos quais mais diretamente com a problemática socioambiental da região.
IHU On-Line – Para conter a expansão das atividades dos frigoríficos e, por consequência, os problemas na Amazônia, o BNDES deve conter os investimentos nessa área?
Mario Menezes – Conter não, mas reorientar, com certeza. É isso que o estudo indica. Os recursos públicos em geral não devem ser destinados para a expansão agropecuária na floresta, justamente o que está acontecendo hoje. O estudo aponta para uma reorientação no sentido de verticalizar a atividade agropecuária, ou seja, concentrar a atividade em áreas já alteradas e aumentar a produtividade da atividade para evitar essa expansão sobre a floresta.
O que permitiu que 40% do rebanho bovino do país fosse criado na Amazônia?
Menezes - Primeiro, a falta de uma política pública coerente. Estamos falando de um ecossistema florestal. A vocação natural da Amazônia é florestal, não agropecuária. Tem área para a agropecuária? Tem e ela está dando a sua contribuição no que se refere ao desenvolvimento da agropecuária no Brasil. No entanto, a Amazônia não pode ser uma grande fazenda, pois presta um serviço florestal para todo o Brasil, inclusive para o Sul (principal área do agronegócio).
Os empresários desse ramo alegam que acabar com o gado ilegal na Amazônia é algo impossível. Como o senhor vê as razões que eles dão para justificar o problema?
Menezes – Não tem razão alguma. Eles mesmos sabem que não precisam tirar “um palito” da floresta para aumentar a produção para exportação. O discurso é absolutamente contraditório com a prática, ao mesmo tempo em que o governo fica “enfiando” dinheiro na região para expandir a atividade. O discurso é um e a prática é outra. Só no Pará existem 18 milhões de hectares abandonados, segundo o próprio governo. Então, para que desmatar? É como se pudesse haver crescimento apenas se desmatasse tudo. Qual Brasil queremos para o futuro? Só podemos crescer se for desmatando? Isso não faz sentido! Se fosse assim, o mundo estaria perdido, sem poder crescer. É a floresta que nos assegura a vida. Precisamos fazer um esforço enorme para manter a concentração de carbono na atmosfera a um nível que as mudanças climáticas não sejam drásticas a ponto de a vida começar a se inviabilizar aqui. Se não contarmos com a floresta para manter esse equilíbrio, não iremos conseguir manter a vida. Este é nosso grande desafio. A questão não é só ambiental. A questão é que não temos saída sem floresta. Não estamos querendo inviabilizar o desenvolvimento do país. Temos a maior floresta do mundo, com maior diversidade e estamos dando um tiro no nosso pé.
O Brasil está disposto a fazer essa luta? Como fica a luta dos movimentos ambientalistas diante dessa realidade?
Menezes – Precisamos arranjar uma forma de convencer as autoridades e os empresários de que podemos produzir da forma como foi produzido até hoje, em volume, em qualidade, mas de uma maneira diferente. Não precisamos destruir nosso ativo ambiental (as florestas, principalmente) para continuar produzindo. O governador do Mato Grosso do Sul fala que não precisamos desmatar mais. A nossa luta é para mostrar o óbvio. O próprio governo e autoridades dizem que não é preciso, mas continuam mandando dinheiro. É um contrassenso. Na ação, a postura é diferente do discurso.
O problema é, então, a impunidade?
Menezes – Grande parte do território da Amazônia é pertencente ao Poder Público e a gestão sobre essas áreas é precaríssima, tanto que a grilagem continua. É preciso continuar com o desenvolvimento, mas não dessa forma. Porque abrem as fronteiras dessa forma e deixam as pessoas fazerem o que bem entendem e ainda por cima com dinheiro público. Sendo que o processo poderia continuar sendo produtivo, porém, de forma sustentável. Isso é absolutamente possível.
Que consequências já podem ser vistas pela expansão do gado na Amazônia e quais ainda estão por vir?
Menezes – A consequência mais importante é o desmatamento, ou seja, é a atividade de frente. Para desenvolver a pecuária, depois que se tira a madeira, a primeira coisa que se faz é colocar pasto e trazer o boi. Isso porque a atividade pecuária é de custo baixo e imagina como fica o custo numa terra pública que não é bem gerida. Se formos vizinhos nessa região e você comprou a terra e eu grilei, seu custo é muito maior. No entanto, quando a carne chega no mercado, o preço é o mesmo e eu saio ganhando. Essa é a grande consequência, porque com o dinheiro que ganhei vou comprar mais terra e desmatar mais. É uma bola de neve, que só irá acabar quando a floresta desaparecer. Estamos trocando a Floresta Amazônica por grão e carne que poderiam continuar sendo produzidos em outras regiões. É contra isso que lutamos.
Quais os cálculos das perdas que a pecuária já causou na Amazônia?
Menezes – Hoje, temos mais ou menos 73 milhões de hectares desmatados na Amazônia e a pecuária ocupa cerca de 60 milhões. A partir daí, já podemos ter uma ideia. Nós transferimos a pecuária do Brasil para a Amazônia, ou seja, para um bioma que não pode receber esse impacto, porque a vocação dele não é esta. A Floresta Amazônica só existe porque ela nutre a si mesma, pois grande parte do solo da Amazônia é podre. Quando você entra nessa floresta, quebra esse ciclo. E, como o solo é podre, a pastagem fica ali por pouco tempo. E aí o que se faz? Abandona-se a área e desmata mais ainda em outro lugar da floresta. A floresta é nossa “galinha dos ovos de ouro” e não precisamos mais desmatá-la. Imagine se o resto do Brasil desse a contribuição para produção de floresta, assim como a Amazônia contribui para a pecuária quando sua vocação é para ser floresta? Percebe o contrassenso? Cada região tem a sua vocação e precisamos respeitar isso. Estamos transferindo muitos problemas do Brasil para a Amazônia, que não irá dar conta disso.
A carne produzida na Amazônia é consumida por quem? O desenvolvimento local, de certa forma, cresceu com a demanda exigida da Amazônia hoje?
Menezes – Mais ou menos 2/3 fica no Brasil. De 1990 até 2007, passamos a produzir na Amazônia, o que era impensável antes dessa época, ou seja, soja, carne, algodão, etanol, milho. Esse desenvolvimento todo não possibilitou o desenvolvimento local. Se pegarmos dados desse mesmo período, veremos que quase 40% da população continua vivendo na base da linha da pobreza. O Brasil está indo buscar lá o que precisa, mas não deixa nada para a Amazônia. Poucas pessoas na Amazônia se beneficiam desse processo. 50% da soja do país é produzida lá, 50% do algodão também, a carne está em torno de 36%. Então, 2/3 dessa carne é consumido pelo Brasil e 1/3 é exportado. O poder aquisitivo das pessoas que vivem na Amazônia é muito baixo e poucas pessoas podem comer carne. Essa é outra contradição. A Amazônia é um grande empório, mas nós vamos pagar o preço.
Um quilo de carne proveniente desses frigoríficos representa quanto de consequência para a Floresta Amazônica?
Menezes – Não é que a pecuária seja a grande impactadora. Ela é a atividade de frente. Não é verdade que se não existisse a pecuária não existiria o desmatamento. O que falta são políticas públicas coerentes para manter a floresta produtiva e valorizá-la do ponto de vista econômico. Ela já funcionou assim e poderia continuar funcionando. Fundamentalmente, o desmatamento precisa ser zero. Não se deve mais ir para a floresta para desenvolvimento da pecuária, mas apoiar as pessoas que moram na Amazônia e que a entendem como ninguém e produzem a partir dela sem destruí-la.
(IHU Online / Amazonia.org.br, 06/05/2009)