A manhã começou cinzenta na quarta-feira (29/04) na capital federal. Prelúdio de uma audiência pública arquitetada por ruralistas na tentativa de estimular alterações no Código Florestal Brasileiro que, no geral, possibilitam mais desmatamento, abrindo novas áreas à produção agropecuária. Os resultados do debate, ao menos por enquanto, equilibraram o jogo de forças no Congresso, desacreditando estudo de pesquisador da Embrapa e forçando um posicionamento da liderança do governo no Senado.
Revelando flexibilidades na Ciência, o pesquisador da Embrapa Monitoramento por Satélite, Evaristo de Miranda, comentou que por volta de 30% do país ainda está liberado para agropecuária, excluindo-se unidades de conservação, terras indígenas e outras áreas protegidas em lei. Esse percentual, todavia, era estimado em apenas 7% por Miranda desde o ano passado, quando iniciou a divulgação de seus dados tão estimados pelo setor ruralista.
Seus novos números são semelhantes aos apresentados hoje por Tasso de Azevedo, ex-diretor do Serviço Florestal Brasileiro e hoje consultor do Ministério do Meio Ambiente em questões florestais e climáticas. Ele apontou 35% do território brasileiro, ou cerca de 300 milhões de hectares, disponível para “uso intensivo”, desmatamento e agropecuária. Isso coloca o Brasil na quarta posição entre os países com maior área agricultável no planeta, atrás dos Estados Unidos, China e Austrália.
Outro estudo apresentado na audiência veio do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). Conforme os cálculos da entidade não-governamental, até 583 mil quilômetros quadrados (tamanho de Minas Gerais) já desmatados na Amazônia podem ser regularizados para agropecuária, com a legislação florestal em vigor e zoneamentos estaduais, que podem reduzir de 80% para 50% as reservas legais em determinadas regiões. Fora da Amazônia, entre 36% e 43% do território está disponível para agropecuária, ou entre 3 e 3,6 milhões de quilômetros quadrados.
Líder ruralista no Congresso e presidente da Confederação Nacional da Agricultura, a senadora Kátia Abreu (DEM/TO) repetiu o discurso do ministro Reinhold Stephanes (Agricultura), de que não é necessário mais desmatamento. A realidade em campo é outra: Stephanes percorre o país pregando mudanças na legislação ambiental enquanto as florestas brasileiras encolhem a cada safra, no olho-vivo ou pelas lentes dos satélites.
Levantamentos da Universidade Federal do Paraná e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da USP apontam que há cerca de 150 milhões de hectares (tamanho do estado do Amazonas) em pastagens nos mais variados níveis de degradação no país, principalmente na Amazônia e no Cerrado. Conforme o Cepea, seriam necessários R$ 700 em média para reformar cada hectare. Isso poderia elevar em 30% a produção agropecuária, sem desmatamento. Até agora, no entanto, o governo está devendo um grande plano de investimentos para recuperação de pastagens e qualificação da produção.
O consultor Azevedo também lembrou que metade dos estoques de carbono do planeta estão abrigados nas florestas tropicais, ou seja, elas guardam gases que, se liberados com queimadas na atmosfera, prejudicarão ainda mais o clima global. No fim do ano, em reunião das Nações Unidas, podem ser definidas novas metas para cortes na emissão de poluentes para todos os países. Conforme ele, só com a conservação e recuperação de florestas será possível reduzir a tendência de aumento de emissões por países em desenvolvimento e frear o aquecimento planetário. Contas que dificilmente fecharão com menos proteção ambiental e mais desmatamento. “A regulação do clima não pode se adaptar com a perda de florestas. Esse ano é decisivo”, ressaltou.
Para Kátia Abreu, a legislação brasileira vem trazendo mais restrições ao agronegócio desde os anos 1930, quando foi publicada a primeira versão do Código Florestal Brasileiro. Por isso precisaria de ajustes para não penalizar a produção, principalmente entre os pequenos agricultores. Já os ambientalistas vêem a legislação atendendo cada vez mais às necessidades de modelos de produção mais sustentáveis e de um planeta ameaçado pelo aquecimento global.
Mas, fosse a lei tão restritiva, seria o Brasil líder mundial na produção e exportação de itens agropecuários? Há poucos dias, o ministro Reinhold Stephanes (Agricultura) comentou que "A sorte é que não se aplica a lei". Será esse o motivo?
Com tantas opiniões divergentes, os aplausos percorriam uma ou outra porção do plenário. Ambientalistas mais à direita, 27 membros de federações agrícolas à esquerda, parlamentares no meio-de-campo. Os discursos ganharam em calor com a pesquisa Datafolha divulgada hoje. Encomendada pela ong Amigos da Terra Amazônia, mostrou que 94% dos brasileiros ouvidos na cidade e no campo querem menos desmatamento, mesmo com redução na produção.
Raros especialistas colheram salvas unânimes. Entre eles, o ministro Herman Benjamin, do Supremo Tribunal de Justiça. Depois de lembrar sobre outra pesquisa encabeçada por Miranda (Embrapa), onde aquele descobriu que queimar cana-de-açúcar não poluía tanto assim o ar que se respira, apontou que a alteração de áreas de preservação permanente (APP) avança para além do setor agropecuário. “Queremos reduzir APPs para consolidar ocupações imobiliárias irregulares? Não podemos contaminar o debate”, disse.
O magistrado recomendou também um tratamento diferenciado aos pequenos produtores em áreas com ocupação consolidada, como o Vale do Rio Paraíba do Sul, e a redução de custos para legalização das propriedades. Em vários pontos do Brasil, áreas protegidas por lei foram ocupadas para produção de café, uva, frutas, arroz e outros itens. “Nessas áreas há uma realidade a ser considerada, mas a lógica é verificar o que precisa ser conservado ou recuperado, até para se manter a produção. O que não pode ocorrer é a ocupação irregular e o poder econômico pautarem modificações na lei”, ressaltou Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental.
Depois de prolongado silêncio governista frente à movimentação ruralista no Congresso, o líder do governo na casa, senador Aloizio Mercadante (PT/SP), tentou colocar um pouco de ordem no enredo. Lembrou que o “Código Ambiental” de Santa Catarina foi julgado como inconstitucional pela Justiça e apontou que o Brasil tem hoje grande peso na conservação das florestas e do clima global “porque outros desmataram de forma absolutamente irracional”.
“Se alguém imagina que vai passar o rolo compressor em um tema como esse (alterações no Código Florestal), esqueça porque não vai. A sociedade brasileira vai reagir, vamos debater e não vai ocorrer nenhum atropelo. O mundo inteiro está ouvindo o barulho da motosserra. Entre os discursos e as ações ainda há uma grande diferença. O Brasil vai ter que responder a esta agenda (de conservação)”, ressaltou.
Ruralistas podem ter sido surpreendidos hoje pelo ataque de (poucos) parlamentares, ambientalistas e pesquisadores a suas propostas de mudanças no Código Florestal. Mas, como têm maioria em comissões parlamentares, no Congresso e no governo, novos rounds são previstos para os próximos dias. A corrida é contra o tempo, antes que chegue o período eleitoral, e um dos caminhos é passar mais responsabilidades ambientais aos estados, para que possam legislar sobre suas florestas, como vem tentando Santa Catarina.
(Por Aldem Bourscheit, O Eco, 29/04/2009)