Mais de 200 milhões de hectares de terras no mundo em desenvolvimento estão nas mãos de governos e empresas estrangeiros, exemplo de uma apropriação agrária que disparou com a crise alimentar do ano passado. Os países ricos, com território ou água pouco disponíveis, buscam terras que garantam a segurança alimentar de suas populações, disse Joachim von Braun, diretor do Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI). “Há pouquíssima transferência nestes negócios de imóveis”, disse, de Washington, em uma entrevista por telefone.
O estudo do IFPRI, “Expropriação de terras por parte de investidores estrangeiros em países em desenvolvimento”, elaborado por Von Braun e Ruth Meizen-Dick, estima que entre 15 milhões e 20 milhões de hectares foram comprados ou estão em operação de venda. Isso representa quase a quarta parte das terras cultiváveis da Europa, segundo Von Braun. O informe se baseou sobretudo em reportagens da imprensa. É difícil conseguir dados confiáveis, mas o IFPRI calcula que essas operações implicam investimentos entre US$ 20 milhões e US$ 30 milhões procedentes de China, Coréia do Sul, Índia e Estados do Golfo Pérsico ou Arábico, principalmente na África. “Cerca de um quarto desses investimentos se destina ao plantio de vegetais para produção de biocombustíveis”, afirmou Von Braun.
Há dez anos, a China começou a arrendar terras para produzir alimentos em outros países, como Cuba e México. Também adquiriu propriedades na África, onde possui negócios de milhões de hectares na República Democrática do Congo, Tanzânia, Uganda, Zâmbia e Zimbábue, além de vários milhares de trabalhadores chineses “importados” para trabalhar nessas terras, diz o informe. O Sudão tem a maior quantidade de terras de cultivo africanas em mãos estrangeiras, neste caso um grupo de Estados do Golfo. No ano passado, os Emirados Árabes Unidos conseguiram vários acordos com o Paquistão.
O Catar tem terras agrícolas em Bahrein, Birmânia, Filipinas, Indonésia e Kuwait. A enorme companhia coreana Daewoo Logistics Corporation assinou um acordo para subarrendar 1,3 milhão de hectares em Madagáscar, para cultivar milho e palma, uma presença que teve influência nos conflitos que levaram à queda do governo este ano, segundo o informe. “O número de acordos por terras é muito maior do que o citado pelo IFPRI. Ninguém revisa esses negócios agrários privados”, disse Dvelin Kuyek, pesquisador da organização não-governamental Grain, dedicada a questões agrícolas, localizada na cidade espanhola de Barcelona.
Em um informe preparado há seis meses, a Grain concluiu que os países ricos estão comprando dos pobres solos férteis, água e sol, para levar para casa alimentos e combustíveis, uma espécie de neocolonialismo. Kuyek disse ao Terramérica que esta febre agrária do século XXI é liderada, em parte, por países que não querem ser reféns das grandes multinacionais do comércio de alimentos. Mas estão jogando um papel crescente nessas operações dos capitais privados procedentes de fundos de pensões, que apostam na terra como um bem rentável após o colapso das bolsas mundiais e à queda dos preços do petróleo e dos metais. “Um grande setor da indústria pecuária australiana agora é propriedade de uma empresa de investimentos.
Os dois maiores produtores suínos da China pertencem ao banco de investimentos Goldman Sachs”, disse Kuyek. Assim, fazendeiros e agricultores se convertem em empregados, acrescentou. Contudo, para centenas de milhões de pequenos proprietários, pastores e indígenas que não têm títulos de propriedade de suas terras, as coisas podem ser muito piores e acabar em expulsões, disse. A maior parte das terras agrícolas africanas é de propriedades consuetudinárias, sem títulos formais, segundo Meinzen-Dick. “Quando os estrangeiros chegam para comprar as terras, não reconhecem esses direitos tradicionais, que devem ser respeitados”, disse ao Terramérica.
O IFPRI exortou a comunidade internacional a desenvolver um código de conduta para proteger o direito das populações autóctones às suas terras, garantir a transparência das operações e a divisão do lucro, assegurar a sustentabilidade ambiental e não contribuir para a insegurança alimentar. Von Braun vê um grande potencial nesses negócios, porque levam capitais muito necessários a setores agrícolas dos países pobres, impulsionando a infra-estrutura e a pesquisa. “A China está criando várias estações de pesquisa na África para estimular o rendimento do arroz e dos grãos”, disse. Kuyek discorda.
“Esses investimentos nada têm a ver com o desenvolvimento agrícola. Trata-se de fazer dinheiro e despachar alimentos para os mercados de origem”, afirmou. As empresas processadoras, e inclusive vendedores varejistas de alimentos, estão envolvidos no negócio porque lhes interessa garantir a “segurança de fornecimento” do modo mais eficiente possível, disse Janice Jiggins, do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em Londres.
Um dos maiores bancos do mundo, o Rabobank, da Holanda, é um dos principais financiadores deste tipo de acordo, disse Jiggins por correio eletrônico ao Terramérica. O último informe do relator especial sobre Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas, Olivier de Shcutter, detalhou as implicações legais desses negócios e alertou que violam direitos adquiridos, consagrados por leis, constituições e tradições, afirmou Jiggins.
(Por Stephen Leahy, Terramérica / Envolverde, 04/05/2009)