Uma pergunta que não quer calar: a Construtora Modelo, que entrou na Justiça, em Belo Horizonte, pedindo a reintegração de posse de um terreno invadido por cerca de mil famílias, é mesmo dona do terreno ou é uma empresa grileira? O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) parece desconfiar da alegação de posse, pois suspendeu a liminar concedida no dia 13 de abril pelo juiz Bruno Terra Dias, da 22ª Vara Cível de Belo Horizonte. Os desembargadores entenderam que a Construtora Modelo não conseguiu comprovar a posse do terreno de 40 hectares, no bairro Céu Azul.
Quando se fala em Modelo, é preciso algum cuidado, pois pode haver outras construtoras com o mesmo nome espalhadas pelo país, como a Comercial e Construtora Modelo, fundada em 1977 em Campo Bom (RS) e cujas construções somam mais de 1 milhão de m². No caso do Céu Azul, estamos falando, salvo melhor juízo, da empresa que tem sede na Av. Barão Homem de Melo, 4.500, 15º andar, Bairro Estoril.
Por que o grilo? É que não consegui, depois de passar a tarde fazendo pesquisas, descobrir quem é o dono da construtora mineira, que não é associada ao Sinduscon-MG (Sindicato da Indústria da Construção Civil de Minas Gerais). No site da empresa, é possível se informar sobre muitas coisas, mas não sobre isso.
O site informa, por exemplo, que a empresa foi fundada em 1992 para fazer serviços de planejamento e consultoria de engenharia habitacional e para construir moradias destinadas a famílias de baixa e média renda. Desde então, teria construído 22 conjuntos habitacionais, num total de 211.539 m², em Minas (Belo Horizonte, Betim, Santa Luzia, Sarzedo, Varginha, Timóteo, Resplendor e Pedro Leopoldo), São Paulo (Mogi das Cruzes) e Rio de Janeiro (Niterói e São Gonçalo). São casas e apartamentos de dois ou três quartos com área inferior a 60 m².
Em 2005, a 15ª Câmara Cível do TJMG condenou um escritório de advocacia a indenizar, por danos morais, as construtoras Modelo e Lotus, responsáveis pela execução e financiamento do condomínio Residencial das Flores, em Betim. Os juízes consideraram que o escritório havia divulgado em seu site na internet informações difamatórias sobre esse empreendimento de 1997 (defeitos de construção, falta de infraestrutura do local, correção monetária pelo CUB e capitalização de juros), com o objetivo de captar clientes. A indenização foi estipulada em R$ 60 mil.
Há portanto motivos para se ter cuidado, o que explica mas não justifica a cautela com que a grande imprensa tem tratado do assunto. A Modelo já mostrou que tem bons advogados. Uma delas, segundo informação da coordenação da Ocupação Dandara, teria tentado intimidar os invasores dizendo que seu marido é desembargador do TJMG. Pode não ser verdade, mas Dandara, como sabem, foi a companheira de Zumbi dos Palmares. Um nome com forte simbolismo – muito mais do que o de qualquer desembargador mineiro.
E no dia 20 de abril, o tribunal suspendeu a liminar de reintegração de posse concedida sete dias antes pelo juiz de primeira instância. A posse do terreno permanece com os invasores pelo menos até o julgamento do mérito da ação – e se até lá a Modelo provar que é mesmo a dona. De acordo com o site do MST, “o terreno está abandonado há mais de 40 anos e deve R$ 18 milhões de impostos. O descampado já foi palco de vários estupros e desova de cadáveres, segundo os moradores locais. A tendência era continuar servindo a especulação imobiliária, mas no dia 09/04 cerca de 150 famílias resolveram destinar a área, de quase 400 mil metros quadrados a outro fim”.
A invasão
O Fórum de Moradia do Barreiro, as Brigadas Populares e o MST promoveram, na madrugada de 9 de abril, a invasão de “um terreno público”, por 150 famílias. “Ao final do dia a polícia tentou despejar sem liminar de reintegração de posse, a mando da construtora que alega ser proprietária do terreno. Foram três horas de terror, com a investida de mais de 150 homens do batalhão de choque, que explodiram bombas, lançaram gás pimenta e destruíram dezenas de barracos com vôos rasantes de helicóptero”.
No dia 13, foi concedida a liminar de reintegração de posse, mas o número de famílias havia aumentado muito e a Polícia Militar foi obrigada a aguardar a decisão do TJMG, antes de usar a força novamente. O recurso foi apresentado pelo Serviço de Assistência Judiciária da PUC Minas (SAJ), coordenado pelo professor Fábio Alves dos Santos.
Em busca de apoio
Com a vitória no tribunal, os organizadores estão fortalecendo a Comunidade Dandara, “na organização das famílias e na construção de um espaço coletivo, denunciando a terra improdutiva, criando uma nova forma de apropriação do espaço urbano”. Buscam também apoio político. No dia 28 de abril, às 16h, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa realizou audiência pública para debater os problemas enfrentados pelas famílias da Ocupação Dandara. No dia 17, os líderes da ocupação promoveram um ato público no centro de Belo Horizonte, no momento em que a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, participava de um seminário para debater a crise econômica mundial e apresentava a empresários o programa "Minha Casa, Minha Vida".
A tropa de choques da PM dispersou os manifestantes com spray de pimenta, mas após o evento a ministra recebeu uma comissão de oito representantes, ao lado do ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, do deputado federal Virgílio Guimarães e do ex-prefeito Fernando Pimentel, todos do PT mineiro. Nessa reunião, decidiu-se formar uma equipe de trabalho chefiada pelo deputado, com representantes do governo de Minas e da prefeitura da capital, “com o propósito de solucionar o problema das famílias acampadas”. Sou do tempo em que quando o governo não queria resolver um problema, criava uma comissão.
Mas se a pressão popular é grande, o governo acaba buscando a sério uma solução. No caso do Céu Azul, é a primeira vez que o MST se alia a movimentos populares urbanos, para lutar em conjunto pelas reformas rural e urbana. E segundo o site do MST, a Ocupação Dandara cresce na capital mineira. Depois que a Polícia Militar tentou expulsá-los sem mandato judicial, na noite do primeiro dia, os ocupantes buscaram apoio nas vilas e favelas locais e, nos três dias seguintes, foram erguidos 981 barracos de lona preta, e o espaço confinado pela PM ficou pequeno para tantas moradias improvisadas. Segundo Renata Costa, do MST, são pessoas buscando “uma alternativa de sobrevivência aos efeitos da crise econômica mundial, que trouxe mais desemprego, carestia e violência às periferias dos grandes centros”.
Lotes rururbanos
Essas pessoas não querem apenas construir casas no terreno ocupado. Querem também lotes de produção, como um complemento de renda, para garantir a segurança alimentar. Criou-se até um neologismo: lotes rururbanos. Joviano Mayer, das Brigadas Populares, critica que o principal interlocutor do Estado tem sido a Polícia Militar. “Isto demonstra uma mentalidade atrasada que pretende tratar uma situação de conflito social como caso de polícia e não como reflexo do modelo de exclusão que temos instalado. O executivo estadual e municipal devia propor soluções para estas famílias e não virar as costas e mandar a polícia despejar bombas”, diz ele, diante do silêncio do governador Aécio Neves (PSDB) e do prefeito Márcio Lacerda (PSB).
O Conselho Presbiterial, presidido pelo arcebispo de Belo Horizonte, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, prometeu ajudar na busca de solução. “Em sete anos, esse governo não construiu uma casa para os sem-teto da capital. Não há uma política habitacional para quem recebe menos de dois salários mínimos”, denuncia Mayer. Calcula-se que em Belo Horizonte 80 mil famílias que ganham até três salários mínimos não têm moradia. A maior preocupação agora, afirma Joviano Mayer, é elaborar um projeto urbanístico para a área, para garantir que a ocupação não se torne mais uma favela. Ele lamenta, porém, que decorridas duas semanas da ocupação, a prefeitura de Belo Horizonte e o governo de Minas continuam se negando a receber as lideranças para iniciar uma negociação.
A Comunidade Dandara tinha no dia 23 de abril 1.082 famílias cadastradas, em um total de aproximadamente 5 mil pessoas, entre adultos, jovens e crianças. Cerca de 400 famílias estavam na fila de espera. Segundo Joviano Mayer, as pessoas vêm de vilas e favelas de Venda Nova, região que fica no entorno do terreno ocupado, e de outros bairros de Belo Horizonte, principalmente depois da repercussão na imprensa.
(Por José de Souza Castro, NovaE, 27/04/2009)