Saída de não-índios de reserva provoca apreensão, mas há entidades que apostam no desenvolvimento da área
Após uma polêmica de 30 anos, o território da Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima, será entregue aos índios nos próximos dias. Os grandes rizicultores obtiveram neste sábado à tarde (02/05) um prazo extra para concluir a colheita de arroz nesta semana, mas, logo em seguida, vão deixar a área. Os pequenos e médios produtores rurais, que não conseguiram retirar o gado no prazo determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), esgotado na quinta-feira (30/04), estão recebendo ajuda da Fundação Nacional do Índio (Funai). Pelas estimativas da Polícia Federal, a área estará livre de não-índios dentro de quinze dias. E agora? O que vai ser da terra com 1,7 milhão de hectares, na qual vivem cerca de 19 mil índios, de cinco diferentes grupos étnicos?
Há um grupo que vaticina a catástrofe. Nele, estão desde os rizicultores expulsos de lá, o governador do Estado, José de Anchieta (PSDB), a quase totalidade dos políticos do Estado e a gente comum das ruas de Boa Vista. Para eles, sem a presença dos não-índios, que ofereciam emprego nas fazendas, cuidavam da manutenção de parte do sistema de tráfego (de estradas a balsas, para garantir a circulação das carretas de arroz), controlavam quase todo o comércio e faziam circular riquezas, a qualidade de vida dos índios vai piorar.
O deputado Márcio Junqueira (DEM-RR), que até quarta-feira ainda tentava em Brasília prorrogar a saída dos rizicultores, não cessa de repetir, com sua voz poderosa de apresentador de programas de rádio e animador de TV, que, sem emprego, os índios logo vão se "amalocar" na capital. É comum ouvir tanto na capital quanto no interior do Estado que os índios são preguiçosos, não têm capacidade de iniciativa para negócios e vivem pendurados em benefícios oferecidos pelo governo. "Eles não gostam do trabalho", diz Antonio Glemyson da Silva, rapaz que trabalha como ajudante de serviços gerais na capital. "Eles não plantam nada, nem a mandioca para fazer a farinha deles. Só sabem roubar", ecoa a senhora Alaíde Rebouças, que foi obrigada a deixar a Vila Surumu - antigo e pequeno povoado, na Raposa - e hoje vive na sede do município de Pacaraima.
Do outro lado estão os dirigentes do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), que encabeçou a luta pela demarcação da terra em área contínua, com a expulsão dos não-índigenas, a Funai e outras organizações não-governamentais e religiosas. Todos acreditam que a Raposa passará por uma fase de desenvolvimento econômico e também de revitalização da cultura indígena, especialmente com a recuperação de suas línguas. Mas todos também acreditam que isso só será possível se o governo investir na área e não deixá-la ao abandono - como ocorre com outros territórios indígenas do País.
"O grande desafio agora é a gestão territorial, segundo os próprios índios", diz o presidente da Funai, Márcio Meira. "Já temos várias ações do governo federal sendo iniciadas naquela área, com o participação dos ministérios do Meio Ambiente, do Desenvolvimento Social, da Agricultura. A Funai já assinou convênio com a Embrapa para o estímulo à agricultura. A Raposa também faz parte do Territórios da Cidadania, nos quais as políticas públicas têm prioridade."
Os índios querem esse apoio. Mas não basta, segundo o presidente do CIR, Dionito José de Souza. "Não podemos viver de migalhas de programas sociais. Precisamos de desenvolvimento." E como seria possível obter esse desenvolvimento, além dos programas oficiais de governo? Uma solução proposta pelo presidente do CIR é a regulamentação da mineração em terras indígenas - que está em discussão no Congresso. Quando isso ocorrer, os índios poderiam firmar acordos com empresas de mineração (a região é rica em ouro, nióbio, cassiterita e outros minérios), em troca de uma participação nos lucros ou royalties, como fazem os índios canadenses que permitem a extração de petróleo em suas terras.
Na sexta-feira à tarde, antes que o arrozeiro Paulo Cesar Quartiero saísse da Fazenda Providência, no município de Normandia, na divisa com a Guiana, o índio Avelino Pereira já estava lá, anunciando que ele e outros membros da comunidade Santa Rita, que ele lidera, iriam tomar posse da área. Morando numa área próxima dali, Pereira mantinha boas relações com o rizicultor. "Sempre fomos parceiros", disse. Para Souza, do CIR, o discurso do índio destina-se sobretudo a marcar posição. "Sabemos que vamos morar juntos aqui dentro e que precisamos conversar." Por via das dúvidas, as autoridades que estão controlando a operação de retirada dos não-indígenas já determinaram que a ocupação terá de ser decidida de comum acordo entre as seis entidades que existem na Raposa. É o começo de uma nova etapa naquela região.
(Por Roldão Arruda, O Estado de S. Paulo, 03/05/2009)