Odeio parecer alarmista, apocalíptico ou coisa que o valha. Mas, sendo bem sincero, por enquanto só temos duas certezas sobre epidemias como a da atual gripe suína: 1) já aconteceu antes e 2) vai acontecer de novo. Não tem muito jeito. A menos que estejamos dispostos a transformar a humanidade inteira num bando de vegetarianos radicais e, de lambuja, proibamos todos os bichinhos de estimação do planeta. Isso porque a maioria dos parasitas assassinos tem origem certa: os animais domésticos.
Uma listinha rápida: o sarampo e a varíola parecem ter vindo das vacas, assim como a tuberculose (esse último caso é mais controverso); a gripe circula por frangos, patos e, claro, porcos antes de chegar até nós; a coqueluche nos foi legada por porcos e cães; os fofos gatinhos nos deram de presente a toxoplasmose. Isso sem falar na peste bubônica e em outras doenças trazidas pelos famigerados ratos, que certamente se acham “domésticos”, embora a maioria das pessoas discorde deles. É bastante provável que, sem a criação de animais em larga escala que caracteriza as principais civilizações do mundo, nós jamais teríamos o desprazer de enfrentar epidemias globais com potencial genocida. Uma viagem à época em que os seres humanos começaram a criar animais ajuda a entender o porquê disso.
Uma era sem epidemias
Voltemos no tempo pouco mais de 10 mil anos. Parece uma distância temporal gigantesca, mas ela fica pequenininha quando a comparamos com os cerca de 200 mil anos de existência dos seres humanos modernos, da espécie Homo sapiens, e os 6 milhões ou 7 milhões de anos desde que a linhagem que deu origem a eles se separou da dos atuais chimpanzés. Durante quase todo esse tempo, nossos ancestrais eram caçadores-coletores que não plantavam, não criavam animais e viviam em pequenos bandos com cerca de 50 indivíduos.
A expressão “caçadores-coletores” pode levar à impressão errônea de que, para nossos avós, a caça era mais importante que a coleta. Ledo engano. Capturar e devorar bichos grandes exige perícia e sorte em grau tão elevado que o consumo de carne de mamíferos provavelmente era um evento raro e celebrado, meio como uma ida a um restaurante de luxo hoje. Se abatesse uma zebra por mês, o sujeito dava graças a todos os deuses. Portanto, o contato direto com outros mamíferos que pudessem nos transmitir patógenos (causadores de doenças) como vírus e bactérias era bastante limitado.
Isso não significa, claro, que os caçadores-coletores dos primórdios não pegassem infecções. Eles podiam muito bem ser acometidos por doenças transmitidas por insetos, como a febre amarela, ou por parasitas que se alojam no solo, como a bactéria causadora da hanseníase (lepra). A diferença essencial tem a ver com a baixa densidade populacional desses grupos primitivos, e com o relativo isolamento deles. Um micróbio assassino de ação rápida, que matasse o sujeito poucas semanas após a infecção, provavelmente não teria para onde ir nesse tipo de população: em pouquíssimo tempo, todos os membros da microtribo estariam mortos ou imunes ao patógeno após sobreviverem à infecção. A doença só sobreviveria se pudesse subsistir num reservatório natural (no caso do vírus da febre amarela, os mosquitos e os macacos) ou se matasse tão devagar que daria tempo de ela saltar para a geração seguinte de membros daquele grupo humano (é o que a lepra normalmente faz).
O raciocínio acima exige um parêntese importante: a rigor, matar você não é do interesse direto de uma bactéria ou de um vírus. Para um parasita, a morte do hospedeiro é, no máximo, um efeito colateral da necessidade dele de continuar se espalhando, ou da reação de defesa do organismo infectado. O que chamamos de “sintomas” – coisas como tosse, espirro, diarreia ou feridas pelo corpo – são apenas estratégias do patógeno para avançar população afora. Se uma estratégia agressiva multiplica as chances da criatura em questão se reproduzir, infelizmente ela vai acabar matando você no processo. Se, por outro lado, a seleção natural favorecer uma convivência mais pacífica, o parasita às vezes suga o organismo invadido devagarzinho, por décadas a fio.
Mudança radical
Com isso na cabeça, considere agora o que aconteceu quando domesticamos os primeiros grandes mamíferos (porcos, ovelhas e cabras) há 10 mil anos. A situação é absurdamente antinatural: grupos numerosos de animais de grande porte vivendo lado a lado com seres humanos. “Lado a lado” não é só força de expressão: até o século 19, era comum que camponeses do mundo todo trouxessem os bichos para dentro de casa à noite ou durante o inverno. Mulheres das tribos de Papua-Nova Guiné amamentam leitõezinhos. E não se esqueça da infame prática do “barranqueamento”, como se diz no interior brasileiro: homens desesperados às vezes acabam abusando sexualmente de fêmeas de outras espécies.
Tudo isso, mais a constante manipulação de carne, sangue, banha, ossos, pele, esterco e leite dos bichos domésticos significa um contato sem precedentes da nossa espécie com os fluidos corporais de outras criaturas. E a questão da densidade populacional é importantíssima aqui. Não só os bichos estão relativamente confinados, vivendo num espaço exíguo no qual qualquer patógeno se espalha feito incêndio em capim seco, como a densidade populacional humana vira consequência da densidade populacional de animais.
Ao criar bichos e plantar cereais, nós subvertemos as limitações alimentares e sociais que mantinham a população de caçadores-coletores sob controle e isolada. Plantando e criando bichos, dá para sustentar muito mais gente – de dez a cem vezes mais gente no mesmo hectare de terra, de acordo com o biogeógrafo americano Jared Diamond, autor dos clássicos “Armas, germes e aço” e “Colapso”. Populações com animais domésticos também são mais dadas à colonização de novos territórios do que as que dependem da caça e da coleta, em especial porque produzem mais filhos. Por outro lado, seus assentamentos tendem à formação de vilas e cidades permanentes, o que significa densidades cada vez maiores de gente vivendo no mesmo lugar geração após geração. E, claro, com essa tendência à complexidade social, elas acabam mantendo contatos comerciais e políticos com outras regiões e mesmo outros continentes.
Não é preciso dizer que essa situação é um verdadeiro playground para micróbios mais agressivos. Com população densa e interligada, um microrganismo com tendências psicopatas pode ficar saltando de lugar para lugar, matando gente a torto e a direito, sem correr o risco de ficar sem carne fresca de uma hora para outra. Patógenos desse naipe quase não afetavam os seres humanos na era pré-pecuária. Não se pode dizer o mesmo das épocas seguintes.
Saltos com barreiras
Por serem essencialmente espécies sociais que viviam em bandos grandes (as exceções, como os gatos, são poucas), nossos bichos domésticos já vieram “de fábrica” povoados com parasitas epidêmicos. A convivência próxima com pessoas forneceu a bactérias, vírus e outros assassinos o incentivo perfeito para saltar a barreira de espécies e colonizar aquele vasto território inexplorado formado pelo corpinho imunologicamente virgem das pessoas.
É claro que nem todos os patógenos foram capazes de realizar essa façanha. Era preciso que surgissem mutações capazes de facilitar a interação dos parasitas com o organismo humano, já que eles estavam adaptados, há milhões de anos, para infectar seus hospedeiros originais. Quem se lembra da temida gripe aviária teve um vislumbre desse processo: o vírus H5N1 conseguia saltar de frangos para pessoas, mas não era nem de longe tão adaptado para saltar de pessoas para outras pessoas – para nossa sorte. (Já o H1N1 da gripe suína, infelizmente, parece que já pegou as manhas.)
Uma vez feito o salto, os novos assassinos de gente tinham a seu favor o fato de que o sistema de defesa do organismo humano nunca os tinha enfrentado. Resultado: epidemias de avanço extremamente rápido e com taxas elevadas de mortalidade. Registros históricos desse tipo de evento são abundantes. Basta ver como as populações nativas das Américas, da Polinésia e da Austrália – locais, aliás, onde a criação de animais era incipiente ou nem existia – foram dizimadas pelas doenças trazidas pelos europeus. Os portugueses, espanhóis, ingleses e franceses mataram muitos índios, sem dúvida, mas a varíola, a gripe e a coqueluche mataram muitos nativos mais.
O corolário dessa saga sangrenta não deixa muito espaço para dúvidas. Podemos aprender muito sobre vírus e bactérias, fortalecer a vigilância internacional, criar animais em condições mais higiênicas e seguras. Mas, enquanto concentrarmos mamíferos e aves em criações de larga escala e convivermos com elas, o cavaleiro do Apocalipse conhecido como Peste continuará a nos visitar de vez em quando.
(Por Reinaldo José Lopes, Visões da Vida, 02/05/2009)