O governo federal ficou devendo aos brasileiros na semana passada uma boa crise interna. Ela foi explicitamente provocada pelo relatório da Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. E passou em brancas nuvens. O documento do Ministério da Saúde era, ao mesmo tempo, oficial e alarmante, como raras denúncias ambientais, vindas dos mais radicais militantes, conseguem ser. Em 1.773 amostras de 17 produtos agrícolas, escolhidas pelos pesquisadores ao longo de meses em estados diferentes, acusava altos índices de contaminação por inseticidas, em 64,3% dos pimentões, 30,29% das cenouras, 19,8% dos alfaces e 18,27% dos tomates.
Terrorismo agrícola
Pelo visto no dossiê, quase tudo o que atualmente sai do campo para a mesa sem o selo da agricultura alternativa tem boa chance de estar envenenado por inseticidas. Com pontaria acidental e ironia involuntária, a contaminação atinge de preferência as hortaliças que os nutricionistas recomendam como base da dieta saudável. O que banaliza velhos clichês da ficção conspiratória, aqueles que povoavam histórias em quadrinhos com terroristas capazes de envenenar cidades inteiras em atentados secretos contra os reservatórios de água potável.
Mas o Brasil moderno e democrático, isso se faz às claras. O país dá conta da tarefa com gente pacífica e obstinada, que moureja de sol a sol para intoxicar inadvertidamente o solo e os rios, depois de enegrecer o ar com a fumaça das queimadas. Além de ser um grande produtor mundial de CO2 no campo, o Brasil é uma potência econômica em agrotóxicos.
Gasta com inseticidas 7 bilhões de dólares por ano. Usa livremente ingredientes como o acefato e o metamidofós, proibidos até na Índia e na China, que também têm muitas bocas para prover e pouco tempo para perder com devaneios pastorais. Permanece imune aos efeitos do livro Primavera Silenciosa, da bióloga americana Rachel Carson, que há praticamente meio século deu empurrão decisivo para trazer a ecologia dos debates acadêmicos às páginas dos jornais e às cartilhas de educação fundamental.
Ministros imunes
Sua primeira edição data de 1962, quando o Brasil era governado pelo presidente João Goulart. É, portanto, para lá de histórica. De lá para cá, passaram por aqui três regimes políticos e inumeráveis desgovernos. O órgão federal encarregado de velar o meio ambiente mudou de nome e estrutura burocrática três vezes. Bafejada por incentivos fiscais e uma política de ocupação territorial que só preserva mesmo o modelo fundiário das sesmarias coloniais, a agricultura brasileira extinguiu as florestas do Oeste Paranaense, varou de ponta a ponta no Cerrado e cravou fundo na Amazônia os dentes das motosserras. Mas autoridades nacionais ainda não acordaram para o fato de que Carson não é mais, há décadas, uma autora minimamente controversa.
Foi ela que abriu os olhos de quase todo o mundo para os riscos dos inseticidas, essa nova espécie de praga agrícola, gerada em laboratórios e vendida por multinacionais. No Brasil, Carson não pegou. Nesses 47 anos, os ministros da Agricultura nunca aprendem que não estão no cargo como lobistas do agronegócio ou mesmo como porta-vozes da justiça social no campo. Nem que deveriam velar, antes de mais nada, pelo direito constitucional de todo brasileiro à saúde e à segurança alimentar.
Do outro lado da praça, os ministros do Meio Ambiente se comportam como se a luta fosse exclusivamente travada em trincheiras políticas cavadas no mato profundo. Como se o que acontece lá no mato jamais batesse à casa das pessoas comuns, por mais urbanas que elas sejam. Por exemplo, em forma de pimentão envenenado que gerações de agricultores viciados em inseticidas despacham candidamente do campo para a cidade.
Nossos ministros do Meio Ambiente são peritos na arte de reduzir sua pasta à irrelevância, perpetuando a miragem de que Meio Ambiente é, na vida real, tudo aquilo que não interessa a ninguém. E assim, por falta de Rachel Carson e de governo, o relatório do ministério na Saúde passou ao largo dos ministros da Agricultura e do Meio Ambiente, como se eles não tivessem nada a ver com a história. São os únicos brasileiros que os venenos agrícolas não atingem.
(O Eco, 23/04/2009)