Acampados denunciam truculência na reintegração de posse da Fazenda Hilário: mulheres e crianças teriam sido agredidas por policiais, alguns deles encapuzados. PM nega abusos e diz que também cumpriu outros mandadosAraguaína (TO) - Desde 3 de abril, as 100 famílias despejadas do Acampamento Alto da Paz, que fica a cerca de 40 km do município de Araguatins (TO), vivem um pesadelo. De acordo com relatos dos sem-terra que estavam acampados no local há mais de seis anos, a Polícia Militar (PM) do Tocantins agiu com truculência na retirada das famílias do local: diante de barracos revirados, mulheres e crianças teriam sido inclusive agredidas por agentes policiais, alguns deles encapuzados. O mandado de reintegração de posse da Fazenda Santo Hilário, onde o acampamento estava instalado, fora assinado em favor de Antônio Bento Borges pela juíza Nely Alves da Cruz, da Comarca de Araguatins, em 13 de fevereiro de 2009.
Os sem-terra foram levados para a Unidade Avançada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Araguatins (TO). De acordo com Manoel Dias Lima, uma das lideranças do acampamento, parte das famílias foi procurar abrigo nas casas de parentes e conhecidos, mas 66 famílias - 206 pessoas, entre elas 60 crianças - permanecem no espaço, que não dispõe de estrutura para abrigar tanta gente, pelo menos até o início desta terça-feira (21/04). O local conta apenas com um único banheiro. "Devido às más condições do alojamento e também por causa da chuva durante o despejo, crianças e adultos adoeceram", acrescenta Manoel Dias.
O chefe da Unidade Avançada do Incra, Milne Freitas, afirmou à Repórter Brasil que a situação dos acampados é "indecente". Houve várias tentativas de transferência das famílias desamparadas para algum espaço mais adequado; o padre do município, Edson Neves Alves de Sousa, também chegou a intervir no caso. Além de representantes do Incra e da Igreja Católica, o assessor da Ouvidoria Agrária Nacional, João Batista Caetano, se deslocou até a região para tentar encontrar uma solução junto à prefeitura.
Na segunda-feira (20/04), representantes das famílias visitaram algumas áreas sugeridas para abrigar temporariamente o grupo, mas nenhuma decisão ainda havia sido tomada. As vítimas do despejo temem principalmente pela segurança dos acampados e pela educação das crianças, ou seja, não querem se deslocar para lugares distantes que dificultem o acesso às escolas.
A procuradora regional dos Direitos do Cidadão, Ludmila Oliveira, do Ministério Público Federal (MPF), visitou as famílias retiradas do acampamento e classificou as condições do alojamento provisório como "inadequadas". Ela destacou que ordens judiciais devem ser cumpridas respeitando as diretrizes estabelecidas pela própria autoridade policial. A Diretriz nº 02/2008 da PM determina que o comandante deve comunicar diversas instituições públicas e entidades de direitos humanos quando do cumprimento de mandados judiciais de reintegração de posse. Não houve notificação de entidades da sociedade civil no caso em questão.
Contudo, o tenente Cleiber Levy, chefe da assessoria de imprensa da PM do Tocantins, informou à Repórter Brasil, que a diretriz foi cumprida, sem fornecer destalhes adicionais. Segundo ele, a PM agiu "somente para garantir a segurança do oficial de justiça que atuava no local e todas as nossas atuações têm sido desenvolvidas buscando ao máximo, não só preservar a lei, como também cumpri-la". Na ocasião, admite Cleiber, a Polícia Civil também "cumpriu vários mandados de busca e apreensão e de prisão" contra alguns integrantes do acampamento, evidenciando o emaranhado das ações policiais.
A partir das denúncias dos movimentos sociais, a Ouvidoria Agrária Nacional cobrou esclarecimentos ao comandante geral da PM, Joaidson Torres de Albuquerque e ao comandante da PM na região de Araguatins, major Hoel Alves Lima. A Ouvidoria solicitou ainda providências cabíveis ao promotor de Araguatins, Gustavo Dorela, que está colhendo depoimentos para servir de base a ações. Ele reservou horários exclusivos e pediu reforço extra para receber os membros da comunidade despejada na Promotoria de Justiça em Araguatins, que também ouvirá os policiais envolvidos na ação.
Antes e depoisOs acampados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) contam ainda que, no dia anterior (02/04) ao despejo das famílias, três indivíduos se aproximaram do Alto da Paz com um carro e realizaram cinco disparos com arma de fogo na direção de um agrupamento de crianças, mulheres e homens (um deles com deficiência física). Raimundo Nonato, que estava no local, foi atingido de raspão por um dos tiros. Testemunhas teriam alegado que um dos atiradores faz parte da Polícia Civil.
Ainda durante a ação de reintegração de posse, que foi batizada de "Operação Pacificação" pelos policiais, seis pessoas (três acampados e três membros de comunidades vizinhas) foram presas, sob acusação de porte ilegal de arma de fogo e prática de crime de receptação. Os presos foram soltos na segunda-feira seguinte (06/04), após a divulgação de um documento assinado por mais de 20 entidades da sociedade civil organizada. Na nota pública, as entidades repudiam a violência praticada contra as famílias, que "demonstra total desrespeito à dignidade da pessoa humana e constituem grave violação dos direitos humanos", e solicitam a punição dos autores da tentativa de homicídio no dia anterior ao despejo e pedem a apuração das denúncias de violência e abusos.
A pressão da sociedade civil aumentou no dia 7 de abril, quando a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Tocantins (Coetrae-TO) aprovou por unanimidade uma moção de repúdio "às violações de direitos humanos porventura cometidas". Os membros da comissão pedem ainda "rigorosa e imparcial investigação dos fatos denunciados, apuração das responsabilidades, afastamento imediato e punição dos responsáveis", providências imediatas de autoridades para a reinstalação provisória das famílias desalojadas em condições decentes e garantia da preservação das benfeitorias e produções acumuladas pelas famílias no acampamento e seu entorno.
No dia 8 de abril, Milne Freitas, do Incra, e uma comissão formada por representantes da sociedade civil e de acampados voltaram ao Alto da Paz, amparados por autorização judicial, para fazer um levantamento dos danos, da produção e das benfeitorias deixadas na área, que não foram registradas pelo oficial de justiça responsável pelo despejo.
Verificaram que as casas ainda estavam de pé. Os poucos objetos deixados pelas famílias estavam quase todos danificados, assim como os fornos da casa de farinha situada num galpão da comunidade. Grande parte da produção de arroz dos acampados ainda não havia sido colhida. Eles cultivavam ainda mandioca, feijão, gergelim, cabaça, milho, amendoim, fava e cana. Mantinham ainda uma ampla variedade de árvores frutíferas e plantas medicinais. Depois da passagem da comissão, contudo, os barracos foram todos queimados, em mais uma ação perpetrada por pessoas não-identificadas.
Escravidão e morteO Acampamento Alto da Paz existe desde 2003, quando 83 famílias ocuparam uma área às margens da rodovia que liga Araguatins a Buriti do Tocantins com o apoio dos sindicatos dos trabalhadores rurais da região. No final de 2004, o acampamento passou a ser coordenado pelo MST.
Em agosto de 2004, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontrou seis pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão. Dois eram adolescentes que trabalhavam no roço de juquira (preparação da área para pecuária bovina) e na aplicação de agrotóxicos. O nome do fazendeiro Lund Antônio Borges, um dos que disputa a posse da terra em questão e foi identificado como responsável pela condição dos trabalhadores, já fez parte da “lista suja” do trabalho escravo.
Um outro ataque contra os sem-terra do Acampamento Alto da Paz em abril de 2007 já resultara em morte. O trabalhador rural José Reis, de 25 anos, perdeu a vida e foi encontrado num rio após uma saraivada de tiros direcionada a um grupo de acampados que estava pescando. Até o momento, o crime não foi esclarecido. Na visita aos acampados, a procuradora Ludmila disse que a morte de José Reis é objeto de investigação em processo que tramita na Justiça Estadual, que também deve investigadas as denúncias das arbitrariedades cometidas neste último despejo ocorrido no início de abril.
No início de 2007, a Repórter Brasil publicara notícias sobre as ameaças de pistoleiros que rondavam o Acampamento Alto da Paz. A posição do Incra na ocasião também foi destacada pelonoticiário desta agência.
O processo acerca da titularidade da Fazenda Santo Hilário está no Supremo Tribunal Federal (STF). Incra e Instituto de Terras do Estado do Tocantins (Itertins) - que concedera documento a Lund Antônio Borges, em 1994 -, estão na disputa. O fazendeiro Antônio Bento Borges, beneficiado pela reintegração de posse, também pleiteia a propriedade.
Para tentar minimizar a tensão em torno da Fazenda Hilário - que teria mais de 3,8 mil hectares, às margens do Rio Araguaia, e está avaliada em pelo menos R$ 7 milhões -, foi firmado um termo de compromisso extrajudicial em 2 de agosto de 2008. O acordo, contudo, não impediu que Antônio Bento Borges ingressasse novamente na Justiça exigindo a posse do terreno.
A procuradora Ludmila, do MPF, informa que vai solicitar, por intermédio da Procuradoria Geral da República (PGR), urgência no julgamento do caso que definirá a posse da Fazenda Santo Hilário. Manoel Dias Lima, uma das lideranças das famílias acampadas que se espremem na unidade do Incra, mistura história e lamento no resumo do episódio. "Este é o terceiro despejo do acampamento Alto da Paz e todos foram violentos. Aqui no Bico do Papagaio, as coisas não mudam".
(Por Jane Cavalcante*,
Repórter Brasil, 21/04/2009)
*Colaborou Maurício Hashizume, de São Paulo. Com informações da Procuradoria da República no Estado do Tocantins.