Uma importante discussão em torno da água como direito humano ganhou destaque recentemente na mídia internacional. O tema foi discutido por ministros de vários países no encerramento do 5º Fórum Mundial da Água, em Istambul. Organizado pelo Conselho Mundial da Água (CMA) e pelo governo da Turquia, o fórum reuniu um número recorde de participantes: 30 mil, vindos de 192 países. Entre eles estavam chefes de governo, ministros de Estado, acadêmicos, parlamentares, técnicos do setor de recursos hídricos, ONGs, o setor privado interessado no tema da água e usuários de recursos hídricos. Sem dúvida, esse é um evento mundial sobre recursos hídricos com grande legitimidade e enorme alcance político. Portanto, não é difícil entender por que o tema água como direito humano foi o que mereceu maior atenção da imprensa. Erroneamente, porém, foi noticiado que o Brasil se posicionou contra o direito dos cidadãos de terem acesso à água.
O que não está claro para a maioria das pessoas é que, no âmbito das Nações Unidas, existem dois grupos de direitos humanos: o grupo dos direitos civis e políticos e o grupo dos direitos econômicos, sociais e culturais. As implicações, especialmente em termos de implementação, para esses dois grupos são bastante diversas. O primeiro grupo de direitos (civis e políticos) é garantido aos cidadãos simplesmente por um compromisso do governo de não intervir em sua vida. Direitos dessa natureza são, por exemplo, o direito à liberdade, à não discriminação quanto à raça ou a garantia de não submeter seus cidadãos à tortura. Garantir esses direitos não requer um grande orçamento nem complexos arranjos legais e institucionais. Basta vontade política.
Já os direitos econômicos, sociais e culturais requerem intervenções governamentais significativas em termos legais e institucionais para desenvolvimento de políticas públicas adequadas à sua implementação. Além disso, os recursos financeiros devem ser providos de forma tempestiva para sua concretização. Em geral, esses recursos são de grande monta. Vários direitos humanos reconhecidos pelo Brasil se situam nessa categoria, como, por exemplo, o direito à saúde, à alimentação e à habitação. Estimativas do Ministério das Cidades dão conta de que seriam necessários R$ 180 bilhões para atingir as Metas do Milênio das Nações Unidas no ano de 2015, ou seja, para reduzir à metade o número de brasileiros sem acesso a água potável e saneamento básico.
A inserção do acesso à água potável no contexto dos direitos humanos implicaria o fato de todo cidadão do mundo ter esse direito. Países pobres da África e da América Latina que não detêm os recursos financeiros adequados para fazer frente a todas as suas demandas sociais nas áreas de educação, saúde e infraestrutura de energia e transportes seriam obrigados a cumprir essa meta sem ter os meios para tal. A posição brasileira foi muito nobre. Sugeria que esse direito poderia ser aprovado na declaração ministerial desde que fosse incluído na categoria dos direitos econômicos, sociais e culturais. Além disso, propunha que recursos financeiros novos fossem providos pelas sociedades mais abastadas do Hemisfério Norte às nações menos favorecidas do Hemisfério Sul. Por alguma razão, não houve consenso em torno dessa tese.
Os grupos ativistas que promovem o chamado "direito humano à água" focam somente o uso da água para o abastecimento doméstico. Além disso, não indicam como os países pobres farão frente às demandas financeiras para pôr em prática tal direito. A água é um bem público com valor econômico. Isso é o que determina a Lei das Águas, aprovada em 1997 pelo Congresso brasileiro. Mas não significa que a água não tenha outros contornos. A água é um elemento de grande significância religiosa, ela purifica a alma. Para o ambientalista significa vida para a flora e a fauna aquáticas. Para o engenheiro significa a oportunidade de utilizá-la na geração de energia, na navegação, no abastecimento das populações e na produção de alimentos. Assim, a água é um elemento vital, mas ao mesmo tempo é um recurso à disposição da humanidade.
Podemos dizer que a água é, ao mesmo tempo, um direito humano no contexto dos direitos econômicos, sociais e culturais e também um recurso natural com valor econômico. Esses dois conceitos não guardam nenhuma contradição. O acesso à água potável é, sim, um direito dos cidadãos brasileiros. Para tanto o governo deve viabilizar os recursos financeiros para que o consumo humano seja atendido. Outros usos que produzirão resultados econômicos - como, por exemplo, as atividades comercial, industrial e agrícola - devem ser cobrados para incentivar o uso racional e eficiente do recurso. Não se trata de "privatizar" a água. Trata-se de reconhecer o seu valor econômico e induzir o seu uso racional. Até por que não se pode privatizar um bem que constitucionalmente é público. A Constituição brasileira define em seus artigos 20 e 26 que os rios, lagos e as águas subterrâneas são bens ou dos Estados ou da União e, portanto, não podem ser "vendidos" ou "concessionados" a particulares.
Atualmente, no Brasil, já existem comitês de bacia hidrográfica que instituíram a cobrança pelo uso da água em suas jurisdições. A Agência Nacional de Águas (ANA) garante que cada centavo arrecadado retorne ao comitê para aplicação direta em obras e serviços para melhoria da qualidade dos rios e lagos das bacias onde os recursos foram arrecadados. Assim, espera-se que a médio e longo prazos possamos efetivamente viabilizar o direito de acesso à água potável em nossas bacias hidrográficas. Ao mesmo tempo, a utilização da água como bem econômico trará benefícios inegáveis às gerações de brasileiros de hoje e de amanhã.
(Por Benedito Braga *,
O Estado de S. Paulo, 21/04/2009)
* Professor titular da Escola Politécnica da USP, vice-presidente do World Water Council e diretor da ANA