Está claramente configurado no Brasil um confronto que pode não apenas ser muito prejudicial neste momento, como inviabilizar a prazo maior o que poderia ser uma estratégia adequada para o País. Por um dos ângulos, o conflito se evidencia no embate entre ruralistas (principalmente suas bancadas no Congresso e sua representação no Executivo) e ONGs que se opõem à modificação da legislação sobre reservas de vegetação em cada propriedade, assim como nas leis que protegem as áreas de preservação permanente (APPs). Por um segundo ângulo, entre defensores de uma matriz energética que vai privilegiando usinas termoelétricas e nucleares e os que propõem uma matriz "limpa" e renovável, com ênfase em energias "alternativas", além de programas de conservação e eficiência. Um terceiro ângulo opõe defensores de projetos de desenvolvimento econômico acelerado - do qual o PAC seria um emblema, mas englobando a construção/asfaltamento de rodovias na Amazônia, a transposição de águas do Rio São Francisco, entre outros - aos propositores de um desenvolvimento mais sustentável, que não comprometa nem esgote recursos e serviços naturais. Os que se alinham em defesa desta última posição costumam lembrar entrevista a este jornal (2/1) em que o ex-secretário-geral do Ministério do Meio Ambiente na gestão Marina Silva, João Paulo Capobianco, afirmou que "o governo Lula não tem visão ambiental estratégica".
O embate está todos os dias nos jornais, com o atual ministro do Meio Ambiente ora de um lado, ora de outro. Como no episódio em que afirmou (Agência Brasil, 9/2) que os cortes que têm sido feitos no orçamento de sua pasta "podem afetar o combate ao desmatamento e o licenciamento de obras do PAC". Ou se situando do outro lado, ao apoiar a medida provisória que dá 30 anos para 140 mil produtores rurais recuperarem áreas desmatadas ou degradadas, inclusive comprando outras terras fora de suas propriedades (Estado, 2/4). Uma situação delicada principalmente na Amazônia, onde, segundo o Imazon, os imóveis com cadastro validado pelo Incra são apenas 4% da área total do bioma e as propriedades privadas sem cadastro que as valide compõem 32% da área - as terras supostamente públicas simplesmente não são reguladas. Mas as propostas de alteração do Código Florestal, apoiadas pelo ministro da Agricultura e pelas bancadas ruralistas, são de que a reserva legal em áreas de floresta primária na Amazônia baixe de 80% para 50%; defendem que as áreas às margens dos rios sejam consideradas parte da reserva legal; que seja permitido o uso pela agricultura de várzeas, topos de morros e encostas já desmatadas; que seja permitida recomposição de reservas obrigatórias com a compra de áreas em outras propriedades.
E não bastassem os conflitos amazônicos, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprovou uma redução de 30 metros para 5 metros nas áreas das margens de rios que não podem ser ocupadas, desmatadas ou degradadas - esquecendo-se da contribuição decisiva dessa ocupação irregular das antigas planícies naturais de inundação para os recentes desastres ambientais naquele Estado. Para completar, o governo federal (inclusive o Ministério do Meio Ambiente) vem aí com um plano para o Vale do Araguaia, que privilegie a famigerada (e absurda, por várias razões) hidrovia, a implantação de grandes hidrelétricas em lugares inadequados e um desenvolvimento intensivo da agropecuária em região com outras vocações.
A radicalização ruralista não parece bem pensada, no momento em que mudanças climáticas e consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição do planeta constituem os dramas centrais do nosso tempo, que "ameaçam a sobrevivência da espécie humana", nas palavras do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan - como tem sido citado aqui. A agricultura brasileira já sofre com os dois problemas. Na área do clima, elevação de temperaturas, secas e inundações, principalmente, já afetam gravemente a produção e poderão prejudicar mais, segundo os diagnósticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Também o consumo de recursos aqui já está acima da média mundial disponível por habitante, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. E a pressão excessiva pode levar à desertificação, a crises mais acentuadas nos recursos hídricos e ao esgotamento de certos recursos.
Outros ângulos do conflito - nos transportes, na energia, etc. - também deveriam passar por um crivo diferente: o de que o Brasil deveria aproveitar a atual crise global para reformular seus caminhos, centrá-los numa estratégia que valorize exatamente o fator mais escasso no mundo, hoje, que são os recursos naturais, base concreta de tudo, e numa matriz energética "limpa" e renovável, que não agrave as mudanças do clima. É preciso repetir e repetir: o Brasil é o que o mundo todo deseja, território continental, sol o ano todo, de 15% a 20% da biodiversidade planetária, 12% dos recursos hídricos, a possibilidade de energia "limpa", com hidreletricidade, biomassas, energia eólica (com potencial maior que todo o consumo de energia no País, hoje), solar, das marés.
Mas caminhamos na contramão. Desprezamos a conservação de recursos, queremos legislação que favoreça o desmatamento e a ocupação de áreas de preservação permanente. Damos prioridade a termoelétricas caras e poluidoras. Anunciamos a implantação de várias usinas nucleares, mesmo sabendo que sua energia é mais cara, insegura e sem destinação para resíduos que permanecerão radiativos e perigosos durante milhares de anos. Destinamos recursos quase insignificantes aos programas de energia eólica e solar. Cortamos nos orçamentos recursos para pesquisas. Recusamo-nos a aceitar compromissos obrigatórios, na Convenção do Clima, para reduzir nossas emissões, embora já sejamos o quarto mais emissor do planeta. É demais. Aonde pretendemos chegar?
(Por Washington Novaes,
O Estado de S. Paulo, 17/04/2009)