Na maior área contínua de Mata Atlântica do país, o Vale do Rio Ribeira de Iguape, na divisa entre os estados de São Paulo e do Paraná, ribeirinhos estão sofrendo com a falta d'água. Dos 7% que ainda restam de Mata Atlântica no país, a maior parte, 21%, está localizada no Vale do Ribeira. Apesar da abundância de mata, do alto índice de chuvas e da proximidade com o rio, a localidade enfrenta a falta de água em decorrência do desmate da mata ciliar, que fica às margens dos rios, e de questões fundiárias, que impedem o acesso dos quilombolas às nascentes.
Comunidades remanescentes de quilombolas, como a de Porto Velho, no município de Iporanga, estão utilizando água apenas para uso doméstico. Nos meses quentes do início do ano, chegaram a suspender a irrigação das hortas. Boa parte das casas – a maioria delas de taipa – da comunidade quilombola fica a menos de 10 metros do Rio Ribeira de Iguape. No entanto, o acesso à água está cada dia mais difícil. A pequena horta da comunidade, que tem 70 pessoas, está praticamente seca.
“A gente está passando muita falta de água. A nossa horta está bem fraca, porque nesse período de calor a gente não tem água. Mal tem água para o consumo. A gente não pode gastar água na horta. A gente tem de deixar perder a horta para não acabar água em casa. Só no inverno a gente tem água direto, tem água para tomar e água para irrigar”, conta o agricultor Vandir dos Santos, da comunidade de Porto Velho. A comunidade quilombola vizinha, denominada Poça, no município de Eldorado, enfrenta problema similar.
A comunidade retira água diretamente do rio. Um sistema simples de encanamento leva a água para as casas. O sabor, no entanto, é ruim. “A gente pega água do rio ou de uma nascente, mas é água salobra. A nossa água boa está toda na mão de terceiros. E os terceiros não estão preservando as cabeceiras das nossas águas. Na verdade, a gente cuida da área que a gente tem domínio”, diz Vandir.
A única nascente de água “boa” que poderia abastecer a comunidade quilombola está hoje em uma propriedade particular vizinha. A região da nascente já foi reconhecida como área quilombola, mas os proprietários brigam na Justiça pela posse. Os quilombolas têm a propriedade apenas de uma pequena parte da área reconhecida, que não abriga nenhuma nascente de água aproveitável. “O fazendeiro tem uma propriedade que foi transformada em parque ou em área quilombola. Então, o estado tem de desapropriar e o estado não toca isso pra frente. Demora muito. O processo é muito lento”, avalia Nilto Tatto, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA), organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que atua na região.
Tatto afirma que a qualidade dos recursos hídricos da área decaíram nos últimos 50 anos em razão da forte exploração da mata da margem dos rios. “Nos últimos 50 anos, houve uma exploração muito grande das beiras de rio, da mata ciliar. E a conseqüência disso foi um processo de assoreamento, afetando inclusive a quantidade e qualidade de peixe pescado, que é muito utilizado para alimentação de toda a população ribeirinha do Ribeira”, explica Tatto.
O desmatamento das matas ciliares, na região, não é recente. A área foi intensamente devastada no período colonial. “Não dá para dizer que tem um segmento da sociedade que é o único responsável”, admite o pesquisador do ISA. Tatto destaca, porém, a importância das comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas e caiçaras, na preservação da Mata Atlântica. “A ação das comunidades tradicionais com a Mata Atlântica, durante o tempo, ajudou a conservar. Eu até diria que a relação que mantiveram e mantêm com a mata é benéfica do ponto vista da biodiversidade”, defende.
Os quilombolas buscam investir na preservação de suas matas para tentar amenizar o problema da falta de água. No entanto, o pouco território em posse da comunidade dificulta a ação. Falta espaço para a agricultura. “A terra que a gente trabalha é muito pequena. Você vê que aqui é só morro, e não tem como você trabalhar assim em qualquer lugar. Tem de escolher as melhores partes para trabalhar e geralmente as melhores partes estão na beira do rio. E a gente não quer destruir o restinho de mata que a gente tem”, diz o quilombola Vandir.
O investimento da comunidade em restaurar a mata para obter mais água chegou a dar resultado nos últimos anos. No entanto, um incêndio na propriedade particular vizinha destruiu a mata recuperada e levou os quilombolas a enfrentar novamente a falta d'água. “Há uns 10 anos, as pequenas matas já estavam mais formadinhas e estavam recuperando a água. Aí, os fazendeiros aqui do lado colocaram fogo no terreno deles. O fogo passou para cá e queimou toda a área que estava quase recuperada. E agora, neste ano, foi mais forte a falta d'água”, relata o quilombola.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), são poucos os casos de desapropriação de áreas particulares em benefício de comunidades quilombolas. Menos de cinco casos foram concretizados no país até hoje. Os processos podem demorar mais de cinco anos devido aos recursos impetrados pelos fazendeiros.
“Nas áreas particulares tem havido muita dificuldade, muita resistência, por conta dos recursos colocados pelos proprietários e, às vezes, questionamentos do valor da indenização. Eu tenho poucos casos concretos para dar de exemplo”, explica o antropólogo e analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Incra, Homero Moro Martins. O antropólogo ressalta, no entanto, que até o final de 2009, as desapropriações das fazendas na área quilombola da comunidade de Porto Velho devem ter encaminhamento.
(Por Bruno Bocchini,
Agência Brasil, 18/04/2009)