Não são apenas as majestosas onças-pintadas que estão sumindo da região do Parque Nacional do Iguaçu, no oeste do Paraná. Catetos (Tayassu tajacu) e queixadas (Tayassu pecari) também. É o que mostrou um estudo feito a partir de universidades norte-americanas pelos pesquisadores Fernando Cesar Cascelli de Azevedo e Valéria Amorim Conforti, ambos ligados à não-governamental brasileira Pró-Carnívoros.
Por e-mail, desde o Centro para Conservação e Pesquisa de Espécies Ameaçadas do Zoológico e Jardim Botânico de Cincinnati, nos Estados Unidos, Conforti respondeu a algumas questões levantadas por O Eco após o atropelamento de uma onça dentro da área protegida federal. Confira.
Catetos e queixadas fazem parte da dieta das onças?Valéria Amorim Conforti - Sim. Catetos e queixadas constituem uma parte significativa da dieta de onças-pintadas. Isso já foi comprovado em diversos estudos realizados em áreas onde as três espécies coexistiam. Um desses estudos, realizado no Parque Nacional (Parna) do Iguaçu e publicado em 1995, antes do aparente desaparecimento de queixadas da região, incluiu a análise de amostras fecais de onças-pintadas de vida livre e constatou que os principais itens da dieta desses felinos eram justamente catetos e queixadas.
O declínio das populações de catetos e queixadas e de onças está associado?Conforti - No caso das populações de onças e de catetos e queixadas do Parna do Iguaçu, existe uma relação temporal entre o desaparecimento de queixadas da área do parque e entorno e o aumento do número de casos de predação por onças-pintadas de animais domésticos criados no entorno do parque. Como o desaparecimento de queixadas antecedeu o aumento da predação de gado por onças-pintadas, devemos considerar a possibilidade de que a perda ou diminuição significativa de um de seus principais itens alimentares tenha levado as onças-pintadas a buscar itens alternativos, como animais domésticos. De fato, um estudo publicado em 2008 com amostras fecais de onças coletadas posteriormente ao último relato de observação de queixadas na área constatou que catetos ainda eram consumidos pelas onças, mas que queixadas deixaram de fazer parte da dieta desses felinos.
O que está reduzindo as populações de catetos e de queixadas?Conforti - Pelo menos no que diz respeito às populações de catetos e queixadas na região do Parna do Iguaçu, temos razão para acreditar que dentre as principais causas antropogênicas (humanas) do declínio dessas populações, está a caça ilegal. Trabalhos de entrevistas com a população do entorno do parque feitos no fim da década de 1990 indicaram que a caça ilegal foi uma das causas atribuídas ao declínio dessas espécies. Várias pessoas entrevistadas nesse estudo e inúmeras outras ouvidas informalmente durante os vários anos em que trabalhamos na região, mencionaram técnicas de caça que teriam sido usadas freqüentemente dentro do parque para capturar um grande número de indivíduos de grupos de queixadas ou catetos por empreitada.
Essas técnicas teriam se baseado no fato de que é possível condicionar grandes grupos desses animais a retornar a um local onde um alimento é oferecido regularmente como “isca”, até o momento em que, literalmente, fecha-se o cerco para abater um grande número de indivíduos. Há relatos de que cercas temporárias foram de fato construídas ilegalmente na região do parque e que até mesmo equipamento rudimentar para o processamento da carne no local do abate fazia parte de todo um esquema para a exploração ilegal dessas espécies.
Na época em que trabalhamos no parque, na década de 1990, a incidência de caça ilegal era relativamente alta, fato evidenciado por relatos do Batalhão de Polícia Florestal, e pela nossa própria experiência de trabalho na região. Em diversas ocasiões, encontramos equipamentos e vestígios deixados por caçadores, além de alguns menos freqüentes incidentes em que nos deparamos com os próprios caçadores ilegais dentro do parque.
Além da caça ilegal, outros possíveis fatores no declínio das populações de queixadas e catetos citados pela população local foram migração de queixadas para outras áreas e transmissão de doenças entre animais domésticos do entorno do parque e catetos e queixadas. Tais fatores, no entanto, não foram avaliados através de estudos.
Minha experiência de trabalho no Parna do Iguaçu foi até o início desta década, época em que a população de queixadas já era considerada localmente extinta, e a população de catetos se mostrava reduzida. Não posso opinar sobre as atuais ameaças a tais populações de uma perspectiva de experiência pessoal, mas penso que o problema da caça ilegal ainda possa ser uma ameaça significativa.
Quais as recomendações para se reverter essas perdas?Conforti - Uma das prioridades seria a educação ambiental, principalmente direcionada às gerações mais jovens, e associada a um maior esforço de envolvimento da população local com a Unidade de Conservação, incluindo maiores oportunidades de empregar os residentes locais em atividades relacionadas à existência do parque. Esforços para melhorar a fiscalização do Parque e para monitorar e controlar o impacto do turismo na Unidade também devem ser considerados. Desse conjunto de ações, um dos resultados esperados seria a redução da pressão de caça sobre as espécies locais de modo geral. Com isso, as populações de catetos remanescentes na área do Parque teriam maiores chances de se recuperar.
Já foi sugerida a reintrodução de queixadas no Parna do Iguaçu, mas é preciso sempre ter em mente que qualquer esforço nesse sentido só teria um impacto positivo se precedido de minucioso estudo multidisciplinar considerando os aspectos genéticos, ecológicos, sanitários e socioeconômicos que resultariam de tal empreendimento. Além disso, seria preciso determinar a viabilidade de se promover uma efetiva fiscalização da unidade e seu entorno; caso contrário, de nada adiantaria reintroduzir queixadas se a maior parte dos indivíduos acabasse nas mãos de caçadores ilegais.
Como avalia o fato de que o parque nacional mais visitado do país não consegue preservar essas espécies?Conforti - A realidade de se ter espécies da nossa fauna sob o risco de caça ilegal ou atropelamento dentro de unidades de conservação é bastante dolorosa. Devemos reconhecer os esforços das autoridades ambientais em proteger a fauna e flora silvestres, ao mesmo tempo em que devemos avaliar em que ponto têm falhado. Não podemos apontar as autoridades ambientais como únicas responsáveis pela triste situação de vulnerabilidade em que se encontram as nossas espécies silvestres. A responsabilidade de proteger nossos recursos naturais é também da sociedade como um todo. Isso inclui a professora da escola local, que deve explicar aos seus alunos a importância de se proteger a nossa fauna, e também o turista que precisa respeitar a velocidade máxima permitida quando dirige seu carro para apreciar as cataratas.
(Por Aldem Bourscheit,
O Eco, 14/04/2009)