Repetidas vezes Miguel Palacin, presidente da Coordenação Andina das Organizações Indígenas - CAOI, repetiu que "os povos indígenas não querem ser enfeites das democracias...", querem sim ajudar a aprofundar, ampliar e reconstruir as democracias formais, mantenedoras da exclusão social, acumulação de privilégios e destruição da natureza e meio ambiente. Os povos indígenas tem importante contribuição, a partir de suas experiências e sabedorias milenares, de ajudar a construir modelos políticos e econômicos baseados na justiça, igualdade e solidariedade.
Os Povos Guarani também não querem ser enfeites do Mercosul ou folclore das burocracias da acumulação. Eles querem efetivamente contribuir com a construção e melhoria das condições de vida das grandes maiorias, nativas e excluídas, na América do Sul. Essa foi uma das questões que emergiram com bastante força na viagem de intercambio e articulação das comunidades e povos guarani. Seja diante das grandes obras que desalojaram milhares de membros de seu povo, como as hidrelétricas de Itaipu e Yaciretã seja andando pensativos entre as ruínas construídas pelos seus antepassados, com a presença dos jesuítas, como em Trinidad, no Paraguai e San Ignácio, na Argentina, o que afligia as lideranças Guarani, era ver seu povo continuar sendo objeto de manipulação de interesses econômicos e políticos, e ao mesmo tempo lhes sendo negado o que existe de mais sagrado: a terra.
Apesar de algumas iniciativas isoladas como a adoção do Guarani como língua nativa no Mercosul, de resto quase nada se tem feito. Na verdade a situação das terras Guarani continua sendo uma das situações mais preocupantes e graves em todos os paises em que vivem. Apenas na Bolívia o governo de Evo Morales tem devolvido parte das terras aos Guarani.
No vídeo "Nhande Guarani", premiado recentemente, no Festival de Brasília, os Guarani mostram claramente seu desejo de serem reconhecidos e valorizados em seu jeito de viver, sabedoria e em seus espaços territoriais. Bartomeu Meliá, um dos grandes conhecedores Guarani da atualidade, da Universidade Católica de Assuncion, mostra com clareza esse desejo Guarani ao mesmo tempo que é enfático e categórico quando diz "Os Guarani não querem formar um país, podem ficar absolutamente tranqüilos quanto a isso..." Ao mesmo tempo Ana Gorossito, da Universidade Federal de Posadas, na Argentina, ressalta que o reconhecimento do povo Guarani na América do Sul, será de grande benefício, não apenas para os Guarani, mas principalmente para o Continente.
Companheiros(as) de fé, luta e caminhada
Nesta sexta feira santa, aproveito o clima de reflexão e o grito de silêncio dos silenciados, para partilhar uma experiência gratificante e esperançosa - uma viagem por aldeias Guarani do Brasil, Paraguai e Argentina. Foram dez dias intensos de ver, ouvir e sentir o pulsar da alma Guarani, o sofrimento, a revolta, a resistência e a esperança. Um povo com tamanha força interna, espiritual e cultural, não foi e nem será derrotado. A certeza de que Tupã e os espiritos dos guerreiros estão com eles, os fazem enfrentar as maiores adversidades imaginaveis. Aí estão,não apenas vivos, mas aguerridos e confianes, apesar das permanentes invasões, destruição de suas florestas, opressão do agronegócio, dos governantes de turno, dos interesses econômicos e políticos dominantes.
Um grande abraço e uma feliz Páscoa, com muita esperança de construir um novo mundo possível e necessário
Egon
Nas sendas Guarani
Quando vi tanto sofrimento,
Meu coração caiu ao chão!
Vi com meus próprios olhos
A realidade e tristeza,
Gente passando fome,
Os governos nos limitando,
Dividindo, nos deixando
Sem espaço,
Negando nossos direitos!
A caminhada é sagrada,
Nosso Deus deixou assim!
Ir e vir é pra nós saúde,
Visitar parente é mais saúde!
Uma vitória para nós,
O próprio Guarani falando
Um para o outro!
A primeira questão é a terra
Yvy Rupá, nossa terra
Estão nos negando
Causando muito sofrimento!
Queremos garantir
A cultura rica e viva que temos,
Precisamos continuar
Nossas caminhadas e lutas!
As palavras de Santiago,Guarani Mbya no Rio Grande do Sul, nos dão uma pequena dimensão do que tem sido os dez dias de intenso intercambio entre os Guarani no Brasil, no Paraguai e Argentina. Foram mais de três mil quilômetros, visitando 14 aldeias nos três países. Uma verdadeira maratona. Um caminhar pela realidade de dor e esperança, de luta e celebração da vida, em meio ao capim ou mata, à beira da estrada ou nos recônditos espaços ainda não alcançados pela cobiça, à beira de rios ou nas periferias das cidades. Os Povos Guarani são uma presença e esperança na América do Sul. Caminhar é preciso. "O contato vai nos fortalecer politicamente. Quanto mais fui conversando, mais forte e animado fui ficando, para lutar pelos nossos direitos. Fazer o intercambio e se articular é um jeito de continuar lutando. Só assim conseguiremos reverter essa situação", afirmou Joaquim, Guarani Avá-Ñandeva, do Mato Grosso do Sul.
Entre soja/milho, boi, cana e pinus
Treze olhares atentos dos Guarani Kaiowá-Pai Tavyterã, Avá-Ñandeva e Mbya pelos extensos caminhos da outrora mata atlântica ou cerrado. No Brasil, a quase inexistência da floresta nativa e gente ao longo do caminho. No Paraguai os restos de mata estão sendo devorados pelo agronegócio (em grande parte de brasileiros), precipitando-se sobre o que resta de floresta nas terras Guarani. "Maquinas del diablo", diria Mariblanca ante o cenário de destruição. Na Argentina, o verde vai mudando de tom e nome. A mata nativa vai ao chão brotando em seu lugar o pinus e eucalipto, denominados de "símbolos do imperialismo", pelo companheiro Egydio. A rica biodiversidade da mata atlântica vai sucumbindo ao monótono cenário das enfileiradas e sufocantes árvores de pinus. Algumas araucárias solitárias denunciavam a devastação.
Era uma alegria para os treze participantes Guarani, quando entravamos nos caminhos de mata. Onde ainda existia caça, peixe. Logo iam reconhecendo grande quantidade de plantas medicinais. Iam recolhendo cascas e sementes. Era como um reencontro com o passado. A alegria saltava aos olhos. A caminhada se transformada em leve andar nas sendas de vida, da terra sem males. Era revisitar espaços de sobrevivência. Era flutuar no sonho do futuro. Mas logo voltávamos à dura realidade. Infindáveis estradas no meio da sojeira, bois e cana.
As lições e a luta
"Olhando e ouvindo a gente sente na alma o que o parente está passando. Devemos continuar andando para alimentar a luta, reconquistar nossa liberdade, superar tanto sofrimento e reconstruir nossas terras, disse Lídio, da aldeia de Tey Ikuê.
"Sofri com os parente, mas também passamos com eles um pouco de alegria. A floresta é nossa vida. Que reconheçam nossas terras. Vamos seguir lutando por isso" disse Nicanor, da aldeia Poso Azul, em Missiones, Argentina.
"Estão fazendo com nós como animal. Não querem reconhecer nosso espaço, nossa terra. Os fazendeiros matam nossos líderes. A justiça não acontece.Acabaram nossa mata, põem pistoleiros, prensam a gente num chiqueirinho... Nós também queremos viver", afirmou Plácido de Nhnaderu Marangatu-MS.
Às beiras do lago de Itaipu, um momento histórico. Os inundados-afogados Guarani que estavam no lado do Paraguai, às margens do rio Paraná (eram na ocasião do fechamento da represa 32 comunidades) vieram visitar os desalojados do lado do Brasil, hoje dispersos em cinco comunidades, uma das quais é o Ocoí, município de São Miguel do Iguaçu. Ali o cacique Simão falou da resistência desde 1976 quando a represa foi fechada desalojando as populações indígenas. Simão falou de que estão no difícil trabalho de reconstrução de seu teko, jeito de viver Guarani, prensados entre o lago e as lavouras, o veneno e as pragas dos mosquitos, enfim uma situação provisória, que a Funai até hoje resolveu, conforme prometera na ocasião. "Precisamos da construção de políticas comuns, sem discriminação, precisamos de uma luta social e econômica. A dificuldade maior é a questão da terra. Os Guarani foram transformados em chagueiros (serviços pontuais nas fazendas), manipulados pelos não índios. Estamos nos defendendo mais espiritualmente - não morrer e não matar. Essa é uma lua delicada. Temos que nos organizar de verdade. Quero morrer na luta", conclui o cacique Simão.
No decorrer da visita às 14 comunidades Guarani nos três países ficou claro que existem leis que garantem os direitos indígenas. Porém na prática essas leis, bem com as leis internacionais são desrespeitadas. Especialmente a garantia dos territórios Guarani.
Mas os Guarani estão na luta e na resistência real e simbólica. Dentro os fatores principais podem se destacar a língua, a espiritualidade, as sementes, a territorialidade e a mobilidade-liberdade de ir e vir.
No decorrer da viagem foram utilizados como ferramenta para visualizar a realidade Guarani hoje, o mapa "Guarani Retâ", o vídeo "Ñande Guarani", além de material da campanha Povo Guarani um Grande Povo. Também foi simbolicamente muito forte a visita às ruínas Guarani tanto no Paraguai - Trinidad, quanto na Argentina - San Ignácio Mini. Silenciosas as lideranças Guarani caminharam por entre os enormes amontoados de pedras trabalhadas pelos seus antepassados, e transformadas em enormes construções, hoje em Ruínas. Olhares silenciosos e atentos, de admiração e revolta.
Porém o mais importante mesmo foi a visita, o ver, ouvir, sentir e partilhar a realidade e as lutas das diversas comunidades dos Povos Guarani hoje.
Inúmeras denuncias foram feitas pelos representantes das comunidades visitadas. Tudo isso está sendo transformado num documento que será encaminhado aos governantes e ministros do exterior dos respectivos países e ao Parlamento do Mercosul.
O intercambio irá continuar. Novas formas de luta e solidariedade estão sendo construídas entre os mais de 300 mil Guarani nos cinco países. Novas alianças estão sendo seladas . Os Guarani, ainda na paixão, terão um dia, e não muito distante, reconquistado seu espaço de vida, liberdade e dignidade.
Egon Heck
Cimi Ms
Campo Grande, sexta feira da paixão de 2009
(Por Egon Dionísio Heck *, Adital, 16/04/2009)
* Assessor do Conselho Indigenis (CIMI) Mato Grosso do Sul