Cruzamento entre o quadro de fiscalizações do grupo móvel do trabalho escravo, criado em 1995, e a "lista suja" do desmatamento, que reúne municípios campeões em derrubadas, reforça associação de ilegalidades.
Levantamento realizado pela Repórter Brasil a partir de dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA) aponta que 74% dos municípios que mais desmatam na Amazônia já foram flagrados com mão-de-obra escrava. O índice é o resultado do cruzamento entre o quadro de fiscalizações do grupo móvel do trabalho escravo do MTE - criado em 1995 e responsável pela libertação de trabalhadores - e a "lista suja" do desmatamento, que reúne as localidades campeãs na devastação da floresta.
Lançada no início de 2008, a lista do governo reúne os municípios considerados prioritários para ações de prevenção e controle do desmatamento da Amazônia. No último dia 24 de março, o governo ampliou de 36 para 43 o número de cidades citadas no ranking. Foi a primeira atualização, que está prevista para acontecer anualmente. Ao todo, essas localidades são responsáveis por 55% do que foi devastado no Bioma Amazônia no ano passado. "As políticas públicas estimulam a expansão da fronteira na Amazônia e isso leva a uma migração induzida de grupos vulneráveis, dentro dos quais os mais desprotegidos já chegam endividados à região e acabam entrando numa relação de escravidão", analisa Roberto Smeraldi, diretor da organização não-governamental (ONG) Amigos da Terra - Amazônia Brasileira.
Em 32 municípios, situados na Amazônia Legal, há uma convergência sistêmica entre as duas infrações: ambiental e trabalhista. As irregularidades acontecem numa área sob histórico conflito fundiário, social e econômico. Essa característica é marcante nas novas localidades incluídas. Seis delas - num total de sete -, já registraram ocorrências de pessoas escravizadas.
Quatro estão localizadas no Pará (Marabá, Pacajá, Itupiranga e Tailândia), uma no Mato Grosso (Feliz Natal) e outra no Maranhão (Amarante do Maranhão). Apenas Mucajaí (Roraima) não foi alvo de libertações. Em janeiro de 2008, após a divulgação da lista inicial pelo MMA, a Repórter Brasil já havia identificado essa coincidência geográfica entre os focos de derrubada das matas e de exploração da escravidão contemporânea na Amazônia.
Os agricultores e pecuaristas dos municípios listados pelo órgão ambiental federal não conseguem novos financiamentos até realizarem um novo mapeamento da área e obterem autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Também fica proibida a emissão de licenças ambientais e a liberação de novas áreas para plantio. Apenas cidades com devastação anual de até 4 mil hectares poderão deixar a lista.
Roberto Smeraldi ressalta, no entanto, que a relação ainda reflete a "inconsistência" da fiscalização ambiental no país, que estaria inserida num contexto de impunidade. "Pela mesma razão pela qual as multas não são pagas, a lista não contém sequer informação que permita vincular uma política de compra à unidade produtiva", lamenta.
A ex-ministra Marina Silva (PT-AC) chegou a declarar, quando estava à frente da pasta do Meio Ambiente (2003-2008), que um dos objetivos da relação era funcionar como a "lista suja" do trabalho escravo. Atores do poder público e do mercado utilizam esse cadastro, atualizado periodicamente pelo MTE, para evitar empréstimos e cortar relações comerciais com empresas e empregadores autuadas por exploração da mão-de-obra escrava.
Desmatamento e escravidão
Entre os municípios que entraram neste ano na lista, o ministro Carlos Minc (Meio Ambiente) enumerou Marabá, Pacajá e Itupiranga como novos líderes do desmatamento. As três cidades paraenses, que juntas derrubaram 82,6 mil hectares de floresta em 2008, têm sete propriedades na "lista suja" do trabalho escravo, em ações que atingiram 141 trabalhadores.
Marabá, que possui 200 mil habitantes no sudeste do Pará, é o local da primeira desapropriação de uma área sob o argumento de que nela foi realizada a prática de trabalho análogo à escravidão. A Fazenda Cabaceiras, que pertencia a família Mutran, foi alvo de três ações do grupo móvel, que resgataram 82 trabalhadores em situação degradante entre 2002 e 2004. O desmate local saltou de 15,5 mil hectares em 2007 para 33,8 mil hectares em 2008.
Em Pacajá, o desflorestamento também está associado a problemas trabalhistas. A Fazenda Amazônia, por exemplo, já foi flagrada três vezes pelo grupo móvel. Na última fiscalização, em 2006, houve libertação de 125 pessoas. A extração ilegal de madeira foi uma das infrações anotadas. A devastação na cidade subiu de 16,8 mil hectares para 26,1 mil hectares no ano passado.
Já em Itupiranga (PA), a derrubada da mata aumentou de 13 mil hectares em 2007 para 22,7 mil hectares em 2008. E diversas ações já apontaram as más condições de trabalho na jurisidição do município. Em 2007, o grupo móvel libertou 25 pessoas que estavam em situação análoga à escravidão nas Fazendas Rio Grande e Cachoeirinha. No mesmo ano, outra fiscalização, dessa vez na Água Boa e na Usivel, resgatou mais 23 trabalhadores.
Privatização
Segundo o representante da ONG Amigos da Terra, a principal medida para enfrentar de forma conjunta os casos de escravidão e desmatamento seria "fechar a torneira da privatização de terras públicas". Para isso, segundo ele, é preciso regularizar e destinar as áreas devolutas (terra pública não-discriminada), além de fazer a homologação do patrimônio da União.
"Tanto o trabalho escravo quanto o desmatamento ocorrem principalmente como forma de se apoderar da terra. O principal fator é cortar a expectativa de regularização, que alimenta a fronteira", argumenta Smeraldi.
A Medida Provisória (MP) 458/09, que está trancando a pauta na Câmara dos Deputados, é um dos principais projetos do governo para tentar resolver o caos fundiário na Amazônia. A MP autoriza a transferência sem licitação a particulares de terrenos da União de até 1,5 mil hectares. A medida recebeu críticas de especialistas, movimentos sociais e parlamentares da própria base do governo. Eles afirmam que a iniciativa nivela posseiros e "grileiros".
Para Roberto Smeraldi, o incentivo oficial ao agronegócio - desprovido de condicionantes no financiamento e na rolagem da dívida - dificulta qualquer iniciativa que tente frear o desmatamento e erradicar o trabalho escravo. "Os incentivos podem se transformar em instrumentos para erradicação. Trata-se de finalizar os incentivos, o que é simples, mas requer vontade política de enfrentar as reivindicações setoriais corporativas".
(Por Maurício Reimberg, Repórter Brasil, 13/04/2009)