Neste domingo de Páscoa, há que se refletir sobre a nova via crucis dos índios. A primeira via crucis foram os primeiros 500 anos da colonização portuguesa e da formação do Brasil. Os povos indígenas que habitam o Brasil são os sobreviventes da chegada dos portugueses a esse continente e do domínio que conquistaram. Nesse tempo foi nascendo e se consolidando uma nova nação, o Brasil, resultado do domínio colonizador, do estabelecimento de colônias econômicas para satisfazer a metrópole portuguesa e depois a Europa toda, mas onde se plasmou, para usar uma expressão querida de Darcy Ribeiro, por via da mestiçagem física e cultural, um novo povo, o brasileiro. É só por isso que se pode dizer que o Brasil vale a pena, pelo surgimento do povo brasileiro.
Os povos indígenas sobreviveram a duras penas. Muitos pagaram um preço altíssimo em perda de terras, de população e de acomodação à cultura política dominante. Outros, especialmente os que vivem na hinterlândia da Amazônia, que não fizeram parte dos primeiros séculos de dominação, se deram melhor, garantindo terras e mantendo uma autonomia político-cultural bastante sólida. Nesses tempos que estamos vivendo, após o reconhecimento que o Brasil vem lhes dando, desde Rondon, todos se irmanam na visão de que são produtos da história de um poder estranho, mas que dele querem participar com dignidade.
Durante mais de 450 anos os povos indígenas foram diminuindo de população e de autonomia política e cultural. De uns 40 anos para cá, o processo de reversão demográfica começou a se tornar uma nova realidade. Analisei isto no meu livro Os Índios e o Brasil (Vozes 1988, 1991). Hoje os índios fazem parte de umas 230 sociedades específicas e somam mais de 500.000 indivíduos, quando eram 100.000 no fim da década de 1950, uns 160 mil no fim da década de 1960, uns 240.000 no fim da década de 1980. Crescimento de mais de 4% ao ano.
Passada essa primeira via crucis, terrível, quase um holocausto, que foi se amenizando nos últimos 100 anos, paulatinamente, com o reconhecimento brasileiro do valor cultural e político dos índios para a própria Nação brasileira, via o indigenismo criado por Rondon e seus seguidores, os índios foram encontrando um novo espaço político-cultural na Nação.
Todas as constituições brasileiras, desde 1934, reconhecem o direito dos índios às terras que habitam e, em consequência, o direito às suas culturas, seus costumes e tradições. A Constituição de 1988 explicita esses direitos. Em todas elas, os índios são vistos como parte integrante da Nação brasileira, não como apêndices, ou colônias ou excrecências. O Estatuto do Índio, promulgado em 1973, no auge da ditadura militar, foi extremamente fiel ao indigenismo rondoniano, consolidando os direitos inalienáveis dos índios às suas culturas e suas terras, protegendo-os da sana histórica de destruição, de esbulho e de pressão política e cultural sobre suas vidas e suas singularidades. Mantendo uma tradição de quase 200 anos, o Estatuto reconheceu a especificidade dos índios e a obrigação do Estado em protegê-los e assisti-los através do instrumento jurídico da tutela, prevendo oportunidade para quem, individual ou coletivamente, quisesse dela abrir mão.
No fim da década de 1970, um grupo de políticos, militares e interessados em terras indígenas, liderado pelo ministro do Interior, Rangel Reis, e o próprio presidente da República, Ernesto Geisel, quis forçar, por via de decreto presidencial, com a concordância de alguns antropólogos da UnB, a emancipação dos índios da tutela do Estado. Foi o maior alvoroço da questão indígena brasileira desde aquela que ocorreu entre 1907 e 1910, que resultou na criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e na incepção do indigenismo rondoniano. Num movimento que tomou conta do país, ainda sob o jugo militarista, a grande maioria dos antropólogos se juntou ao incipiente movimento indígena, liderado à ocasião por Mário Juruna, Daniel Cabixi, Marcos Terena e outros, para rejeitar o fim da emancipação jurídica dos índios. E vejam que essa emancipação continuava sendo voluntária.
Eis que agora desponta no horizonte indigenista a nova via crucis dos povos indígenas. Um grupo reduzido de Ongs neoliberais, a principal Ong missionária da Igreja Católica, o CIMI, a nova gestão da Funai, junto com alguns procuradores do Ministério da Justiça, do Ministério Público e da Advogacia Geral da União, querem porque querem mudar o Estatuto do Índio em nome da promoção dos índios a um novo patamar de relacionamento com a sociedade brasileira mais ampla.
Primeiro, fingem que isto está sendo feito para dar mais dignidade aos povos indígenas. Reconhecê-los como senhores de si mesmos, cidadãos completos, seres humanos íntegros, não diminuídos pela tutela do Estado. Para esses putativos legisladores do direito indígena e do relacionamento interétnico brasileiro, o tal novo Estatuto vai abrir oportunidades de auto-determinação para os povos indígenas, corrigir erros do estatuto anterior e favorecer o desenvolvimento econômico dessas sociedades. Alegam que a Constituição de 1988 reconheceu aos índios seus costumes, como se antes não fossem reconhecidos. Argumentam que o propósito dessa Constituição não é de "integrar" o índios à Nação, e sim deixá-los ao largo dela.
De onde tiram essa conclusão, é difícil dizer, já que seu entendimento é revestido de um caráter ideológico inexpugnável. Mas deveriam ao menos refletir sobre as palavras do ministro Ayres Britto, em seu voto sobre a questão Raposa Serra do Sol, quando disse que a Constituição favorece a incorporação do índio à Nação e valoriza o processo de aculturação como uma via de mão-dupla, isto é, de conhecimentos, atitudes e visões de mundo que se vão compartilhando uns com os outros.
A nova via crucis indígena começou recentemente com a votação sobre a questão Raposa Serra do Sol, especialmente as 20 ressalvas já explanadas neste Blog. Eis alguns exemplos dessa via crucis:
1. Não se precisa consultar os índios para se estabelecer medidas estratégicas de defesa territorial, bem como instalar equipamentos públicos do Estado nas terras indígenas.
2. Não se precisa consultar os índios sobre estudos e eventual construção de estradas e hidrelétricas em terras indígenas.
3. Pode-se explorar minérios em terras indígenas sem consultar os índios, mas recompensando-os por participação de lucros.
4. Não se pode ampliar terras indígenas já demarcadas.
5. Para se reconhecer a ocupação permanente indígena em determinada terra é necessário que eles estejam presentes nelas por ocasião da promulgação da nova constituição.
6. Os índios não serão mais defendidos por uma procuradoria especializada, dentro da Funai, e sim pela Defensoria Pública, que terá a ajuda de tradutores das 180 línguas indígenas existentes no país para que os índios possam melhor se expressar em suas defesas.
7. Os índios serão punidos igual qualquer brasileiro, nas mesmas cadeias, por juízes federais, sem nenhuma especificidade, a não ser a tradução de suas alegações de defesa.
Bem, esses são apenas alguns exemplos do que temos pela frente. Quem conhece o que se passa nos grotões do Brasil entre juízes e delegados que tratam de delitos de índios, sabe o que vai acontecer. Numa matéria com diversos equívocos, entre eles o principal é de declarar que até agora os índios teriam sido considerados inimputáveis perante a lei brasileira, o jornal O Estado de São Paulo traz um breve esboço do que o Ministério da Justiça, a atual gestão da FUNAI, as Ongs neoliberais, o CIMI e outros, inclusive os líderes indígenas que fazem parte do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), estão planejando fazer e enviar ao Congresso Nacional.
A frase do atual presidente da Funai demonstra o quanto estão equivocados e cheios de preconceitos para com a tradição indigenista brasileira. Diz ele: "A lei não vai mais tratar o índio como inferior, incapaz, mas como cidadão brasileiro com direitos e deveres, respeitados seus usos e costumes".
Isto é o que se chama de neoliberalismo e argumento capcioso. Há que se perguntar, de que ponto de vista fala esse senhor? Pois cabe a pergunta ao reverso: quando a lei tratou o índio como inferior e incapaz, sem direitos e deveres???? Num passado anterior ao indigenismo rondoniano, sim. Não depois. Tem, sim, tratado o índio com preconceito arraigado e irracional rancor, mas o reconhecimento do instrumento da tutela vinha forçando a Justiça a tratar o índio como ser especial, merecedor de prerrogativas especiais. Não como um inferior ou um "débil mental", como teria dito um procurador do Ministério da Justiça, segundo a matéria do jornal. O modo de tratamento jurídico do índios que reconhece sua especificidade tem sido considerado um avanço da legislação brasileira. O seu principal resultado é que, ao longo dos anos, favoreceu a mudança em muito da tradição negativa de considerar o índio igual ao não-índio para efeito de dirimir questões de justiça.
O índio não é igual ao não-índio. Se o fosse seria um não-índio, uma contradição em termos. O índio nem é igual a outros índios. A variedade de povos indígenas e de culturas indígenas é imensa. São 180 línguas diferentes e pelos menos 230 culturas distintas. Só um Executivo com especialização em direito, em economia indígena, em culturas indígenas, tal como vinha sendo construído na tradição indigenista rondoniana através do SPI e da FUNAI, a duras penas, com altos e baixos, dirigido agora e daqui por diante pelos próprios índios, é que poderia abarcar toda essa diversidade e fazer jus a uma política de Estado comprometida com a valorização dessas culturas e sociedades.
O que esse grupo de auto-nomeados legisladores do direito indígena, que vão pegar pela frente um Congresso cheio de preconceito e com raiva dos direitos indígenas, está fazendo é uma irresponsabilidade histórica sem tamanho. Não podemos deixar que isso seja feito. Meu protesto está aqui e será pronunciado em todas as instâncias às quais eu estiver acesso. Esse blog está aberto para manifestações a favor ou contrárias.
(
Blog do Mércio, 12/04/2009)