O governo venceu as resistências internas e está em fase de conclusão dos termos de um acordo de cooperação do Brasil com a Índia no campo nuclear em áreas como pesquisa, ciência e tecnologia, aplicação em agricultura, indústria e produção de medicamentos.Se depender do Itamaraty, o acordo será selado ainda neste semestre pelos chanceleres dos dois países. O Brasil tem a sexta maior reserva de urânio do mundo e é um dos três únicos países a ter jazidas suficientes do minério e também tecnologia para enriquecê-lo -ou seja, transformá-lo em combustível nuclear para usinas, por exemplo. Os outros são os EUA e a Rússia.
A Índia tem um programa nuclear avançado, tendo construído a bomba. Seus centros de capacitação nessa área são considerados de excelência, como na informática, e o Brasil almeja uma parceria que possa superar um grande problema: a mão-de-obra especializada em energia nuclear no país está envelhecendo. O Brasil tem, ainda, interesse particular pela tecnologia de reprocessamento de tório para uso como combustível. O país tem a terceira maior reserva do mundo do metal radioativo, mas ainda engatinha no conhecimento e nas possibilidades de aplicação. A Índia, além de ser o maior produtor, tem experiência no uso dessa fonte alternativa ao urânio.
As conversas Brasil-Índia com vistas ao acordo de cooperação já duram anos, mas nunca avançaram de fato devido ao embargo internacional levantado pelo fato de o país não ser signatário do TNP (Tratado de Não-Proliferação Nuclear).Como a Índia explodiu uma bomba não-oficialmente em 1974 e conduziu testes oficiais em 1998, o chamado Grupo de Fornecedores Nucleares, o clube de 45 Estados que possuem matéria-prima para combustível atômico, promoveu um embargo no setor ao país, que acabou desenvolvendo tecnologia doméstica.
Isso só mudou em outubro passado, quando os EUA assinaram um amplo pacto de cooperação nuclear civil após anos de negociação -e consequente convencimento de seus parceiros fornecedores. Agora, a Índia irá assinar um acordo para permitir maior acesso da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) a suas instalações civis. Com a maior potência nuclear do mundo chancelando a Índia, as restrições de outros países caíram.
Sinal verde de LulaInternamente, as conversas deslancharam com a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de priorizar a energia nuclear como alternativa às hidrelétricas e às termelétricas, o que coincidiu com a saída da senadora Marina Silva (PT-AC) do Ministério do Meio Ambiente. Ela era contra.
Apesar de já ter a sexta reserva de urânio, o país só prospectou em torno de 25% do território nacional, o que leva os entusiastas da energia nuclear e os técnicos do Itamaraty e dos ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia a concluírem que pode se repetir, no caso, o que aconteceu com o petróleo.Ou seja: há uma espécie de torcida interna para que investimentos, prospecção e pesquisa possam chegar ao que já vem sendo chamado de "pré-sal nuclear" e alçar o Brasil à condição de um dos maiores produtores mundiais.
Além da cooperação com a Índia, o Brasil tem um acordo já consolidado com a Argentina, que prevê integração dos setores dos países e fiscalização mútua de usinas, de produção e de uso. A fiscalização é realizada pela Abac, agência de controle e contabilidade bilateral.O acordo Brasil-Argentina teve um peso mais político-estratégico do que propriamente técnico-econômico. Foi feito para evitar disputas típicas entre vizinhos, como as que ocorrem exatamente na área nuclear entre a própria Índia e o Paquistão, as duas Coreias, do Sul e do Norte, Israel e Irã.
No caso de um acordo com a Índia, a diplomacia brasileira mede palavras para evitar a tomada de lado no conflito do gigante asiático com o também nuclearizado vizinho Paquistão. A recente venda de mísseis antirradar do Brasil para Islamabad é vista como um sinal dessa isonomia.A decisão, aliás, ocorreu em meio à última rusga entre os dois países, quando grupos terroristas paquistaneses foram acusados de um atentado que matou mais de 160 pessoas em Mumbai, a capital financeira da Índia, em novembro de 2008.
Em princípio, o Itamaraty prevê que o acordo com a Índia sirva mais como espécie de arcabouço jurídico que permita a outros operadores, como empresas e órgãos do governo, fechar futuramente parcerias mais específicas com os indianos, em diferentes campos. Apesar do interesse da Índia em comprar urânio no mercado internacional, hoje o Brasil está impedido de realizar esta operação, por indefinição de governo neste sentido.
(Por Eliane Cantanhêde e Letícia Sander,
Folha de S. Paulo, 12/04/2009)