Nos últimos dias de março um avião sobrevoou o sul do Amazonas acompanhando, lá embaixo, um risco de terra rodeado de floresta por todos os lados. Supõe-se que o governador Eduardo Braga (PMDB-AM) e o ministro dos Transportes Alfredo Nascimento (PR-AM) tenham espiado pela janelinha como a natureza comeu a BR-319, construída pelo governo militar na década de 70 e por onde o último ônibus de linha passou há mais de vinte anos. A pavimentação da rodovia, uma obra que está no PAC, foi orçada em R$ 600 milhões e é considerada uma temeridade por ambientalistas e cientistas, tem potencial para ser a nova dor de cabeça ambiental do governo Lula. A estrada, no caso, parece ser menos uma via de transporte que um forte instrumento político.
Que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes quer o asfalto no meio da floresta, ninguém duvida. O processo, brecado em setembro pelo ministro do Meio Ambiente Carlos Minc (que exigia a criação de um cinturão verde para minimizar o estrago), está a todo vapor. Um EIA-Rima de umas três mil páginas produzido por uma equipe mutidisciplinar da Universidade Federal do Amazonas deu entrada no Ibama em 12 de fevereiro. Pouca gente viu (e leu) o tijolão difícil de baixar na internet, mas o Diário Oficial da União acaba de publicar a data das audiências públicas previstas para discutir a obra em Porto Velho, em Rondônia (23/04), e Humaitá (22/04), Careiro da Várzea (27/04) e Manaus (28/04), no Amazonas. Parece uma corrida contra o tempo para liberar o rolo-compressor.
O ministro Nascimento não faz segredo que viabilizar a Porto Velho-Manaus é a "obra de sua vida". Ele começou a carreira política em Manaus, foi eleito prefeito duas vezes, ocupou várias pastas estaduais e elegeu-se senador pelo Amazonas. Sabe perfeitamente que a população da cidade sofre de isolamento crônico e quer a estrada para se sentir ligada ao Brasil. Obstruí-la pode ser suicídio político. O desejo manauara é absolutamente legítimo, o problema é o reverso da história: o impacto de o Brasil ligar-se a Manaus.
Antes da crise financeira, Manaus vinha crescendo a ritmo chinês, o PIB é alto, a qualidade de vida, interessante, a criminalidade, baixa. Roubo de automóveis praticamente não tem até porque não dá pra escoar o furto. Tornar a cidade acessível no pós-boom das usinas do Madeira sugere inevitável inchaço e consequente pressão por saúde, educação, habitação e emprego que não se sabe se o poder público terá condições de suprir. Isto sem citar o efeito da ocupação às margens da estrada. O cientista Philip Fearnside, celebridade do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, não cansa de alertar para o alto risco de pavimentar a estrada e a baixa garantia que os danos serão evitados.
Os opositores à estrada dizem que, de garantia, só a pavimentação da candidatura Nascimento ao governo do Estado. Braga, o governador que gosta de ser reconhecido como o "Schwarzenegger da Amazônia" por ter feito uma gestão bastante "verde" no Estado mais preservado da região, já oscilou bem neste episódio. No início chegou a discutir com o BNDES a viabilidade de uma ferrovia, com impacto ambiental indiscutivelmente menor. Mas na eleição à prefeitura de Manaus, em 2008, aliou-se a Nascimento. A estrada veio de brinde e o projeto da ferrovia foi esquecido. Braga, que almeja um lugar no Senado, fez o bolsa-floresta e criou muitas unidades de conservação, mas vive o contrasenso de apoiar um projeto com potencial destruidor de floresta e muita emissão de gases-estufa em tempos de crise climática.
A pavimentação da 319 é polêmica de nascimento. Já quiseram jogar asfalto sem precisar de licenciamento alegando que a estrada já existia, então, pra quê EIA-Rima? O simples anúncio da pavimentação de uma estrada na Amazônia é senha para especulação e desmate - vide o exemplo da BR-163, a Cuiabá-Santarém. Rodovias na região deflagram o clássico "desmatamento-espinha-de-peixe" com a abertura nervosa de rotas vicinais. No mapeamento de estradas não-oficiais da Amazônia feito em 2003 pelo Imazon e atualizado em 2007, há 330 mil quilômetros de estradas de todo tipo na região. São caminhos abertos por madeireiros, garimpeiros e pecuaristas, às vezes (mas só às vezes) em arranjo com prefeituras. A conta é assim: para cada quilômetro de estrada oficial na Amazônia existem outros trinta quilômetros feitos por agentes privados. Há uma malha rodoviária extensa e paralela em regiões de adensamento como o leste do Pará ou o norte do Mato Grosso. Neste contexto, a região da BR-319 não é das mais efervescentes da floresta. Bem ao contrário.
Há décadas a 319 está deteriorada - a exceção são as pontas de seus 880 quilômetros, nas cercanias de Manaus e Porto Velho. As pontes caíram. Na seca leva-se três dias, com sorte, para sair de um lado e alcançar o outro. Por ali só circulam aventureiros ou o pessoal da Embratel que vai fazer manutenção nas antenas. Nos 400 quilômetros do meio, o foco do Rima, existem apenas 18 fazendas. Atividade econômica só perto de Humaitá, no entroncamento com a Transamazônica, ou mais para o Norte, perto de Careiro. Há 150 famílias vivendo ali, umas 500 pessoas. E só.
Uma das justificativas para a obra é facilitar o transporte de cargas da Zona Franca para o Sul-Sudeste. Estudos demonstram que a cabotagem pela costa é o sistema mais barato seguido pela hidrovia do Madeira e que a 319 será a mais cara entre as opções. O EIA-Rima aposta que o governo conseguirá fazer na 319 o que não conseguiu até agora na Amazônia: conter o desmatamento e estar presente. Há poucos dias, Braga reuniu representantes das principais ONGs e os convidou a ajudarem na implementação do mosaico de unidades de conservação. Alguns ambientalistas estão seduzidos pela proposta, outros ponderam que Braga não fez herdeiros verdes no Estado e que se a pavimentação é inevitável, melhor ajudar a fazer direito. A voz discordante vem do Greenpeace. "Ninguém é contra uma estrada perfeita. A estrada que transporta madeira ilegal também leva médico e professorinha", diz o coordenador da campanha Amazônia da ONG, Paulo Adário. O problema, aponta, é que aqui só há ameaças. "A pavimentação da BR-319 tende a ser uma veia aberta por onde a Amazônia vai sangrar".
(Por Daniela Chiaretti,
Valor Econômico, 09/04/2009)