Na periferia de Boa Vista, a agradável capital de Roraima, é possível comprovar um reflexo direto da arrastada disputa pelas terras na área indígena de Raposa Serra do Sol. A oito quilômetros do centro, acomodados entre os bairros de Nova Cidade e Brigadeiro, há centenas de famílias indígenas que deixaram a reserva por causa de incidentes derivados da briga pela posse da terra, cuja extensão total soma 1,75 milhão de hectares espalhados pela fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana.
A família de Pedro de Souza, 73 anos, é um exemplo da "diáspora" dos índios macuxi, etnia dominante nas 200 comunidades da Raposa Serra do Sol. Primeiro do clã a sair da reserva, há dez anos, o índio afirma ter cansado das disputas e da pressão interna na comunidade do Contão, a 240 km de Boa Vista, para que abandonasse o trabalho com pecuaristas "não índios" estabelecidos na região. "Eles diziam que eu não podia mais trabalhar para os brancos, que estava sendo explorado e os brancos iam ter que sair da Raposa", diz. "Achei melhor sair, trazer a família e ficar em paz, sem confusão nem briga com os irmãos". Mesmo ressentido com a maneira como saiu das terras dos antepassados, Pedro não pretende voltar. "Agora, não dá mais. Eles que fiquem lá, que eu fico aqui".
Depois de conseguir a aposentadoria, Pedro trouxe a mãe nonagenária, dois filhos, uma irmã e três sobrinhas para morar na capital. Vive em uma casa de madeira na rua Natal do bairro Nova Cidade, um localidade de 15 mil habitantes criada em 1992 para abrigar militares do Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Mesmo com a determinação de deixar para trás as contendas indígenas e inter-raciais, o índio não conseguiu convencer outros três filhos a acompanhá-lo na retirada. "Eles estão lá, vivendo do que dá. Mas agora que o governo vai tirar os brancos da Raposa, quero ver como eles vão fazer", diz. "Quero trazer os três, mas é difícil".
A família se sustenta com a aposentadoria de Pedro, de sua mãe e de sua irmã. O filho caçula, Rangel Cruz de Souza, 25 anos e quatro filhos, trabalha como servente de pedreiro e auxiliar de serviços gerais desde 2002, quando deixou a reserva para "melhorar de vida". "Mas trabalho só quando aparece um servicinho. Nessa Semana Santa está tudo parado", diz o índio que estudou até a 4ª série do ensino fundamental ainda na escola da Raposa Serra do Sol.
Algumas ruas adiante, mais precisamente na avenida Porto Velho, uma estreita passagem de chão batido e arenoso, moram a índia macuxi Fátima Gonçalves e o piauiense Luiz Gonzaga da Conceição. Garimpeiro, o homem conhecido como "Piauí" trocou a maloca onde vivia com a mulher, na comunidade de Mutum, próxima ao rio Maú, marco da fronteira entre Brasil e Guiana, para virar dono de um bar no Nova Cidade. "Saímos de lá em 1997 por causa de uma briga em que tocaram fogo nas balsas do pessoal", lembra Fátima, 45 anos e quatro filhos.
Mesmo tendo saído da reserva, Fátima tem parentes na região da Reserva. A prima é "tuxaua" (líder) em Mutum e outras duas irmãs permanecem em Raposa. "Minha prima esteve aqui na semana passada e disse que a polícia está tirando todos os brancos de lá", relata. Para ela, a situação da reserva deveria ser resolvida com uma solução pacífica. "Eles deram prazo para os brancos saírem de lá, mas acho que vai continuar a ter problema porque tem uma parte dos índios que quer os brancos lá e outra parte que não quer de jeito nenhum".
O presidente da associação dos moradores do bairro Nova Cidade, o maranhense Miguel Alves do Nascimento relata que toda semana aparecem novas famílias indígenas em busca de casa e abrigo na região. "Eles se instalam na beira de umas lagoas que têm aí, mas a prefeitura vem e tira o pessoal porque é área de preservação", diz. O líder afirma que a situação preocupa a todos porque as condições de vida nessas áreas marginais são mínimas. "Eles vivem na beira da lagoa, sem água nem luz". A reportagem abordou moradores das áreas em dois dias diferentes para saber se as pessoas tinham vindo recentemente da região do conflito, mas os moradores desconversavam, não admitiam conhecer ninguém da Raposa. "É o medo da prefeitura vir e retirar quem já está aqui", diz Nascimento.
Mesmo assim, há quem se arrisque. Ex-vice-prefeito de Uiramutã, município situado dentro da reserva, João Tropeiro coordena uma espécie de abrigo para índios recém-chegados de Raposa. Sem muito contato com a população local, o político auxilia os indígenas a encaminhar papéis e a pedir benefícios como o Bolsa-Família.
O presidente da federação das associações de bairro de Boa Vista, Faradilson Mesquita, entende que o governo federal desconsiderou essa "diáspora" ao tomar medidas de apoio aos índios. Ligado a grupos políticos favoráveis à permanência de "não índios" na Raposa, ele critica o Supremo Tribunal Federal (STF), os governos estadual e federal. "Essas medidas compensatórias deveriam ser tomadas por quem tem conhecimento de causa, não de gabinetes de Brasília."
(Por Mauro Zanatta,
Valor Econômico, 08/04/2009)