É fácil criar confusão sobre a ciência do clima. E as consequências dessa confusão podem ser enormes e catastróficas. O exemplo são os EUA, onde, desde os anos 90, uma dezena de cientistas contrários (em inglês, "contrarians") têm dado uma força fundamental a um movimento conservador e antirregulatório, contestando a ciência e as preocupações relativas às mudanças climáticas provocadas pelos seres humanos. Financiado e organizado por uma elite financeira sem paralelo do outro lado, o movimento tem tido impacto importante na opinião pública americana. Consequentemente, esta é muito mais cética no assunto e menos inclinada a apoiar políticas públicas na área se comparada, por exemplo, com populações da Europa.
No Brasil, não temos visto -até agora- um movimento organizado questionando a ciência do clima, pois não há fortes interesses materiais nisso. Mas essa situação pode mudar com o aumento das pressões para que o Brasil cumpra metas obrigatórias de redução das suas emissões, sobretudo as ligadas ao desmatamento.
Por todas essas razões, é importante responder quando jornais brasileiros de alta influência publicam artigos questionando as conclusões do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, na siga em inglês), das Nações Unidas, e mais ainda quando invocam a autoridade dos cientistas contrários americanos, como fez José Carlos de Azevedo nos textos publicados por esta Folha em 13/10/08 e 25/2/09.
Azevedo se apoia num relatório do NIPCC -organização criada para contestar as conclusões do IPCC- e o apresenta, ao lado dos cientistas contrários Fred Singer e Frederick Seitz, como fonte mais confiável de conhecimento científico do que o IPCC. Algum debate deve existir e é saudável, pois as mudanças climáticas globais são uma ameaça complexa e há incertezas. O que é perigoso e errado é sugerir que os cientistas céticos e o relatório do NIPCC são fontes mais confiáveis para o conhecimento científico do que o IPCC.
Por cima, Azevedo baseia seus argumentos contra o IPCC e as evidências científicas das mudanças climáticas num entendimento errado do que é o IPCC -que não é uma instituição de pesquisa, ao contrário do que ele diz. O IPCC não faz previsões de tempo nem do clima. Ele avalia ciência já produzida. Há tantos erros nos artigos que o espaço não permite a correção de todos. O importante é que os leitores brasileiros saibam identificar as fraquezas dos argumentos de Azevedo e os perigos que esse tipo de discurso representa, à medida que consegue colocar em dúvida a necessidade de agir para diminuir o risco e os impactos das mudanças ambientais globais.
Azevedo escreve que o relatório do NIPCC, contrariando o IPCC, foi produzido por "muitos" cientistas "renomados". Esse número, 23 cientistas, é muito pequeno se comparado aos milhares de cientistas que participaram da produção dos relatórios do IPCC, os quais sempre são submetidos a um processo de revisão científica ("peer review") rigorosa e extensa.Além disso, cientistas do NIPCC, tais como Singer e Seitz (que Azevedo cita como autoridades científicas), não são cientistas ativos e reconhecidos na área do clima. Singer tem publicado poucos artigos em revistas científicas na área do clima, mas nada de impacto. Seitz nunca fez nem publicou ciência sobre o clima e faleceu em março de 2008, aos 96 anos, décadas após sua aposentadoria.
Ambos se dedicaram à política muito tempo atrás, com grupos conservadores ligados a elites financeiras e indústrias interessadas. Seus discursos e associações demonstram valores políticos e culturais fortemente antirregulatórios e antipolíticas ambientais, colocando em dúvida as autoidentificações com a objetividade. O mais problemático é que eles têm participado integralmente de práticas enganosas para simular autoridade científica não merecida, amparados por interesses financeiros privados, como eu e outros analistas temos estabelecido em revistas científicas internacionais.
Os argumentos de Azevedo são igualmente enganosos e mistificadores. Como Seitz e Singer, Azevedo está aposentado há muito tempo e não é, e nunca foi, pesquisador ou "expert" na área de mudanças climáticas e mostra, como eles, uma inclinação forte e ideológica contra o ambientalismo. Claro que tem o direito de se expressar. É preciso haver espaço para todos os pontos de vista.Porém, para assegurar processos democráticos e desenvolver políticas públicas cautelosas diante das ameaças ambientais, é essencial que a sociedade em geral fortaleça sua capacidade de identificar fontes científicas robustas, fundadas não em ignorância ou em interesses financeiros escondidos e de curto prazo, mas em processos rigorosos e transparentes de controle e avaliação independente, como é o caso do IPCC. Tais fontes também podem errar, mas são -de longe- a melhor aposta.
(Por Myanna Hvid Lahsen,
Folha de S. Paulo, 03/04/2009)
* Myanna Hvid Lahsen é antropóloga, doutora pela Rice University (EUA), é pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e do Centro para Pesquisa de Políticas de Ciência e Tecnologia da Universidade do Colorado (EUA).