Sob direção do parlamentar ruralista Roberto Rocha (PSDB/MA), a Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados tem em sua agenda de hoje (02/04) uma audiência pública sobre a medida provisória publicada pelo governo federal em fevereiro para facilitar a regularização fundiária de lotes com até 1.500 hectares nas mãos de posseiros na Amazônia.
A medida teve relatório do deputado federal Asdrúbal Bentes (PMDB/PA), advogado especialista na área e ex-presidente do Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins, criado pelo governo nos anos 1980 para tratar de conflitos de terra no sul e sudeste do Pará. Em entrevista a O Eco, no dia em que enviou seu texto à mesa diretora da Câmara (20 de março), o parlamentar avaliou que a proposta governista aliada à sua relatoria apaziguará os ânimos de produtores rurais na Amazônia. “Em três anos, será possível regularizar metade das ocupações hoje irregulares na região, sem muita burocracia”, disse. Em resumo, a MP pode favorecer cerca de um milhão de ocupantes em quase 300 mil imóveis rurais federais e milhares de moradores em 450 cidades em terras federais.
A proposta do relator beneficia posseiros antes de 1996, reduzindo para metade das propriedades a área de preservação obrigatória para quem tomou terras até aquele ano. Também definiu prazo de três anos para que os estados realizem seu zoneamento ecológico-econômico. Com isso, a reserva legal poderá ser reduzida de 80% para 50% em mais áreas da Amazônia. Ele também manteve a simples doação de terras até 100 hectares, dispensa vistorias para até 400 hectares, dá prazo de 20 anos para pagamentos pelos lotes, abaixo dos preços de mercado e permite a regularização de terras para pessoas jurídicas.
A maioria desses pontos, associados à medida governista, publicada sem assinatura do Ministério do Meio Ambiente, acendeu uma luz vermelha para especialistas da área ambiental. O paraense Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) realizou levantamento histórico sobre a ocupação da última grande floresta tropical do planeta e descobriu que nas últimas décadas cerca de 67 milhões de hectares foram tomados “informalmente ou ilegalmente”. Essa área equivale aos territórios somados da Alemanha e Itália e ao descontrole do governo sobre o que ocorre na região.
Conforme o instituto, o conjunto da obra dá novo estímulo à ocupação desordenada e ao desmatamento, além de chancelar a grilagem histórica de terras. Segundo a entidade, não houve o necessário debate com a sociedade sobre essas ações, o que levou à desconsideração de interesses maiores como o da proteção ambiental, da população regional e do patrimônio público. “Doar terras ou vendê-las abaixo do preço de mercado com prazo de 20 anos para pagamento só sinaliza que a terra é barata e que pode seguir sendo ocupada e que, depois, se dá um jeito. A visão do governo e de Bentes é de resolver o problema fundiário da Amazônia com base no interesse de quem se apropriou de terras públicas”, ressaltou Paulo Barreto, pesquisador o Imazon.
Raimundo Sérgio Leitão, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil, lembra que iniciativas como as descritas acima, para facilitar a regularização fundiária na Amazônia em bases legais e ambientais duvidosas, ganharam força com a chegada de Mangabeira Unger à Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo, que antes vivia a criticar. Com esses movimentos, aparentemente ele busca apoio a suas mirabolantes idéias para o desenvolvimento da região. “Esse pacote do governo não é diferente do que se fez nos anos 1960 e 1970. Trata-se de uma solução que trará mais concentração de terra, reconhece a grilagem e não separa quem ocupou a terra de maneira decente de quem está lá para invadir, para grilar, para queimar”, avaliou o advogado.
“Traduzindo tudo isso, não tem ação fundiária de longo prazo, com responsabilidades divididas. O pacote opera em função de pressões dos políticos. A primeira medida provisória apresentada pelo governo era uma cópia de projeto de Asdrúbal Bentes. Com permissão do governo, mais uma vez se amplia o leque para posseiros e empresas se beneficiarem de terras públicas”, completou.
Código também é alvoCom primeiras versões formatadas durante ditaduras por governantes não muito afeitos à temática ecológica e hoje defendido por ambientalistas como uma das bases para a proteção da natureza nacional, o Código Florestal vem sofrendo intensas modificações via medidas provisórias nos últimos anos. Nenhuma delas consolidada pelo Congresso, sequer a que ampliou a reserva legal de 50% para 80% em propriedades rurais na Amazônia, na metade dos anos 1990.
Conforme dados oficiais, nas últimas duas décadas o bioma perde em média 17,5 mil quilômetros quadrados (Km²) anuais de floresta. Isso equivale a quase um Sergipe derrubado todos os anos e ao total desrespeito à legislação. O Código Florestal, como infelizmente muito se diz no Brasil, é uma “lei que não pegou”.
Apesar da legislação ou graças ao desrespeito a ela, o país é hoje o segundo maior exportador global de alimentos, logo atrás dos Estados Unidos. Em 2008, a agricultura gerou superávit comercial de US$ 60 bilhões e o setor (incluindo exportações) responde por um quarto do Produto Interno Bruto brasileiro. Tamanho peso na economia nacional leva produtores, parlamentares e dirigentes a pedir ainda menos restrições legais à atividade.
No meio desse imbroglio, vale lembrar do relatório do deputado Duarte Nogueira (PSDB-SP) apresentado à Comissão de Agricultura da Câmara pela rejeição de um projeto de Rodrigo Rollemberg, deputado pelo PSB no Distrito Federal, que propunha aumentar o percentual de reserva legal em propriedades rurais. Em seu texto, Nogueira destacou que "o atual patamar da reserva legal, de 80% em áreas de floresta e de 35% em áreas de cerrado, na Amazônia Legal, permite a conservação dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, possibilita ao produtor o desenvolvimento de atividades que necessitam da conversão do uso do solo".
Com o acordo fechado entre bancada ruralista e presidente da Câmara Michel Temer (PMDB/SP) para votar projeto do senador Flexa Ribeiro (PSDB/PA) que altera o Código Florestal, pode se abrir espaço para “recuperação de áreas degradadas” com o cultivo de plantas exóticas como dendê e eucalipto. Também permite que Áreas de Preservação Permanente sejam somadas às reservas legais das propriedades. Não bastando, o projeto propõe anistia para desmatamentos e fecha os olhos para cultivos em áreas hoje ilegais.
Atuando na área florestal desde o início dos anos 1970, Eleazar Volpato afirma que uma das primeiras lições que aprendeu na vida profissional foi que não se mexe em uma lei antes de se esgotar seu cumprimento. “Estamos perdendo tempo discutindo uma legislação da qual nada cumprimos”, disse o professor de Política, Organização e Administração Florestal da Universidade Federal de Brasília (UnB).
Segundo ele, toda vez que o problema fundiário ganha força no país, governo e ruralistas partem para pacotes com soluções mágicas. Volpato aponta que o Código Florestal vem sendo desmantelado pela inação dos governos em criar meios para sua implementação. “Achar que se resolverá o problema (fundiário na Amazônia) com mudanças na lei é um desvio. Não é por falta de legislação que ocorre o desmatamento no Brasil, mas sim por falta de ação do governo. Estamos empurrando o problema com a barriga”, disse.
O engenheiro florestal comentou que a reserva legal é uma espécie de restrição ao direito de propriedade, ao mesmo tempo em que proprietários rurais devem manter florestas em parte de suas áreas. Logo, os governos deveriam apoiá-los na manutenção dessas matas, até com manejo para extração de madeira. “Mas a União transferiu competências para os estados no setor florestal e achou que isso traria resultados positivos. No entanto, o interesse maior ainda é na agropecuária. Quem deixa mato ainda é visto como preguiçoso no Brasil. E quando a madeira não tem valor, se queima tudo”, disse.
(Por Aldem Bourscheit,
O Eco, 01/04/2009)