Recentemente, a audiência pública encarregada de decidir a liberação do cultivo de arroz transgênico no Brasil votou a favor da população, da saúde e do meio ambiente, recusando a plantação nas lavouras brasileiras. Segundo o agrônomo Gabriel Fernandes, “a maior parte dos membros da CTNBio é favorável à liberação dos transgênicos e defende por princípio que a engenharia genética é segura”. Apesar de manter essa posição, depois de ouvir integrantes da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Comissão rejeitou o produto.
A decisão representa uma vitória para os combatentes da transgenia, pois, depois de liberados no meio ambiente, não há como controlar os transgênicos. Como a soja e o milho, o arroz geneticamente modificado também pode infectar outras culturas do alimento, explica o pesquisador. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Fernandes destaca que, caso tivesse sido liberado, o arroz transgênico iria “contaminar o arroz vermelho, tornando-o também resistente ao herbicida da Bayer”. Além disso, destaca, iria afetar “outros parentes silvestres que ocorrem no território brasileiro”. O arroz vermelho cultivado no Rio Grande do Sul já é resistente ao herbicida Only, da Basf, e, caso fosse liberado o arroz da Bayer, corria-se o risco de “ter arroz vermelho resistente aos dois herbicidas, o que seria um desastre para os produtores”, aponta.
Para Fernandes, as técnicas de liberação dos transgênicos pela CTNBio são ineficientes, pois carecem de pesquisas independentes. Antes de autorizar a comercialização de produtos geneticamente modificados, deve-se “alimentar animais de diferentes idades por algumas gerações e por períodos significativos. É necessário usar os grãos obtidos diretamente da planta transgênica, simulando condições reais de consumo”, aconselha. Em breve, adverte, a “cana-de-açúcar e o eucalipto transgênicos estarão predominando a pauta de liberações da CTNBio e efetivarão a convergência dos transgênicos com os agrocombustíveis”.
Gabriel Fernandes é engenheiro agrônomo formado pela Universidade de São Paulo (USP), e desde 2000, atua como assessor técnico da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, ONG voltada para a promoção do desenvolvimento sustentável da agricultura brasileira com base nos princípios da agroecologia e no fortalecimento da agricultura familiar. Tem especialização em Agroecologia e desenvolvimento rural sustentável, pelo Centro Agronómico Tropical de Investigación y Enseñanza (CATIE), e em Fundamentos holísticos para avaliação e regulamentação de organismos geneticamente modificados, pelo Instituto Norueguês para Ecologia do Gene (Genok), Universidade de Tromso, Noruega. Confira a entrevista.
Como o senhor percebe o debate em torno da liberação de arroz transgênico, principalmente a postura defendida pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) nesse sentido?Gabriel Fernandes – A maior parte dos membros da CTNBio é favorável à liberação dos transgênicos e defende por princípio que a engenharia genética é segura. Assim, seria de se esperar que o arroz transgênico também fosse liberado. Acontece que a audiência pública realizada na semana passada, em Brasília, mostrou que até a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – que defendem os transgênicos – se posicionaram oficialmente contrárias à liberação do arroz modificado. É de se esperar agora que a CTNBio fique menos à vontade para liberar o produto.
O arroz modificado desenvolvido pela transnacional Bayer é resistente ao glufosinato de amônio, herbicida proibido em vários países. Qual é sua opinião sobre esse tipo de arroz? A resistência ao glufosinato de amônio quer dizer que há o que inserido no genoma do produto?Gabriel Fernandes – Se aprovado, este produto iria introduzir resíduos de mais um agrotóxico em nossa alimentação – no caso em nosso arroz e feijão de todos os dias –, já que o glufosinato não é aplicado na cultura do arroz. O que precisamos na verdade são de técnicas de manejo que reduzam e eliminem o uso de venenos, e não de genes que tornem as plantas resistentes aos agrotóxicos. As empresas têm nas sementes transgênicas um meio de ampliar seu mercado de venenos, tanto é que três de cada quatro hectares plantados no mundo com transgênicos são de plantas que foram geneticamente modificadas para resistir à aplicação de herbicidas. É preciso lembrar que as seis maiores multinacionais da agroquímica são também as seis maiores sementeiras do mundo e que juntas controlam metade do mercado global de sementes. No caso do arroz da Bayer, foram inseridos genes que imitam genes encontrados em uma bactéria nativa dos solos, que é tolerante ao glufosinato de amônio.
Na Europa, o glufosinato de amônio foi considerado carcinogênico, mutagênico e tóxico a reprodução. Além disso, a substância é apresentada como de risco aos mamíferos. Diante dessas informações, como compreender a aceitação do Brasil desses produtos?Gabriel Fernandes – Há vários exemplos de produtos banidos em outros países, às vezes nas sedes das próprias empresas, mas que continuam sendo vendidos em países em desenvolvimento. As instituições alegam que fazem isso porque as legislações desses países permitem. Mas há uma diferença entre o limite ético e o limite permitido, como bem analisou o jornalista Wilson da Costa Bueno em artigo recente disponível aqui.
Hoje, no Brasil, há um grande embate jurídico das empresas de agrotóxicos apoiadas pelo Ministério da Agricultura contra a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que quer reavaliar a toxicidade dos produtos que estão no mercado. Há muitos interesses em jogo.
Por que no Brasil a liberação de produtos transgênicos ocorre sem a constatação de segurança?Gabriel Fernandes – Uma nova lei de biossegurança foi criada para que isso pudesse ocorrer. A fórmula usada foi dotar a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (Ministério de Ciência e Tecnologia) de superpoderes. Lá estão doutores que usam de sua posição acadêmica para chancelar os dados apresentados pelas empresas. Há contestação feita dentro da CTNBio, mas os argumentos técnicos são sempre vencidos no voto. Quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Anvisa contestaram a CTNBio, acionando os ministros do Conselho Nacional de Biossegurança, ouviram como resposta da ministra Dilma Roussef que era para não incomodarem a Comissão. A partir de então, a CTNBio vem liberando um transgênico atrás do outro.
Que informações são cruciais do ponto de vista da biossegurança? Que aspectos a CNTBio deveria considerar antes de liberar produtos transgênicos?Gabriel Fernandes – O importante é ter estudos independentes que avaliem as plantas transgênicas nos ambientes onde elas serão cultivadas. Do ponto de vista ambiental, deve-se mapear as relações ecológicas da planta com os ecossistemas e avaliar como a modificação irá afetar essas relações. No que se refere à saúde, deve-se alimentar animais de diferentes idades por algumas gerações e por períodos significativos. É necessário usar os grãos obtidos diretamente da planta transgênica, simulando condições reais de consumo. Muitas vezes, realizam apenas ensaios de laboratório com proteínas sintéticas que se presume serem iguais as que a planta transgênica irá produzir. Esse método desconsidera a forma como a planta reage a cada ambiente, e também ignora resultados imprevisíveis resultantes da modificação genética, que podem fazer com que o resultado final seja diferente do esperado.
A soja e o milho transgênico contaminam outras lavouras. No caso do arroz geneticamente modificado, quais são os maiores riscos ambientais?Gabriel Fernandes – A experiência mostra que não há como controlar os transgênicos depois que eles são liberados no meio ambiente. No caso do arroz, a contaminação irá afetar o arroz vermelho e potencialmente outros parentes silvestres que ocorrem no território brasileiro. A audiência pública deixou explícito que, caso liberado, o arroz transgênico irá contaminar o vermelho, tornando-o também resistente ao herbicida da Bayer. Pior, como já há muito arroz vermelho no Rio Grande do Sul resistente ao herbicida Only, da Basf (aplicado em um arroz modificado por mutação gênica), o risco é ter arroz vermelho resistente aos dois herbicidas, o que seria um desastre para os produtores, como alertou o pesquisador da Embrapa que participou da audiência.
Empresas que produzem transgênicos dizem que as plantas Bt, como o milho liberado no Brasil, são resistentes a insetos. Por outro lado, pesquisadores explicam que essas são plantas inseticidas, pois tem um inseticida inserido no seu genoma. Ao ingerir esses alimentos, quais são os riscos para a saúde humana?Gabriel Fernandes – O argumento usado é o de que a proteína inseticida presente na bactéria é segura e, portanto, sua versão sintetizada e introduzida na planta também o será. Isso é o que mais se ouve na CTNBio. Fosse isso, não seriam necessários estudos, e nem a própria Comissão. Essa visão desconsidera as imprecisões dos métodos empregados pela transgenia e o fato de que, junto com o gene de interesse, também são inseridos na planta genes de bactérias e vírus infecciosos. Isso porque o gene de interesse sozinho não teria efeito sobre a planta hospedeira. Para funcionar, ele precisa de alguns “aditivos”. As pesquisas independentes apontam para os potenciais impactos dessa combinação, como geração de novas proteínas alergênicas, desenvolvimento de resistência a antibióticos e, mais recentemente, de redução da fertilidade.
Apenas na primeira safra, quase 60% do milho será transgênico. Nesse ritmo, corre-se o risco de acabar com as sementes tradicionais?Gabriel Fernandes – As estimativas não são certas e a indústria tende a exagerar nas cifras para dar a entender que a tendência é essa. De qualquer forma, a liberação do milho transgênico é alarmante e sua adoção pelos produtores está se dando de forma acelerada. O drama é que não se vê movimentos e organizações do campo mobilizados para esse enfrentamento. No caso da soja transgênica é evidente: o monopólio fala mais alto do que as vantagens tecnológicas da semente, ou seja, como não se acha mais semente convencional no mercado, prevalece a da Monsanto. Se nada for feito, acontecerá o mesmo com o milho, só que de forma mais acelerada.
Com a invasão de transgênicos, que futuro podemos vislumbrar para o Brasil nos próximos anos?Gabriel Fernandes – A questão é saber quem controlará a produção de alimentos: meia dúzia de multinacionais ou milhões de agricultores? O desafio é político e envolve massificar a agricultura familiar e garantir seu acesso à terra, água e biodiversidade. O projeto das empresas é o oposto, de privatização e exploração monopólica dos recursos naturais. Para reverter essa tendência, as políticas púbicas deveriam ser redirecionadas para fortalecer a sustentabilidade e autonomia da produção familiar. Infelizmente não é isso o que temos visto.
Que novos produtos devem ser alvos da transgenia?Gabriel Fernandes – Em breve, cana-de-açúcar e o eucalipto transgênicos estarão predominando a pauta de liberações da CTNBio e efetivarão a convergência dos transgênicos com os agrocombustíveis.
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IHUnisinos, 01/04/2009)