Em parceria com fazendeiros, Paresis obtém recursos para manter projetos locais e melhorar a infra-estrutura da aldeia. Mas adoção da soja é criticada por membros da comunidade, que lamentam o índio tornar-se mais "individual"Campo Novo dos Parecis (MT) - Em 2009, os Paresi estão colhendo 12 mil hectares de soja no Mato Grosso, a quinta safra desde que se iniciaram os contratos de parceria com fazendeiros e com uma empresa da região. A existência de lavoura mecanizada nas terras indígenas (TIs) Paresi, Rio Formoso e Utiariti, se por um lado representa conquistas para esse povo, como o retorno às aldeias dos homens que trabalhavam nas fazendas e a obtenção de renda para investir em projetos comunitários, por outro abre um precedente que preocupa as demais etnias que vivem no Cerrado e nas áreas de transição com a floresta amazônica.
As terras indígenas são bens da União, de usufruto exclusivo de seus moradores tradicionais. Por isso, o Estatuto do Índio (de 1973) não permite que elas sejam arrendadas, proibição reforçada pela Instrução Normativa no. 3 de 2006 da Fundação Nacional do Índio (Funai). Organizações não-governamentais (ONGs) e o movimento indígena temem que os contratos de parceria representem uma forma de driblar a lei. "Eles são apenas outro nome do arrendamento. Os tratores são do branco, os lucros também", argumentou o coordenador da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic), Hiparidi-Xavante.
No caso dos Paresi, porém, a realidade não parece tão simples. São os indígenas que trabalhavam na lavoura, inclusive na operação das máquinas, graças à experiência adquirida como funcionários das fazendas e aos cursos ministrados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). O pagamento dessa mão-de-obra, assim como o fornecimento de adubo, semente, veneno, combustível e aluguel das máquinas agrícolas, é bancado pelo parceiro não-indígena. A receita líquida é dividida de forma igual entre o fazendeiro e a associação indígena, que deposita metade da verba em uma conta no Banco do Brasil e destina o restante a aquisições coletivas e à divisão entre as famílias de cada aldeia envolvida com a respectiva lavoura.
Ângela Zunizakae mora na aldeia Bacaval, na terra indígena Utiariti, em Campo Novo dos Parecis - município que em 2007 ocupou o quarto lugar do ranking nacional de área plantada de soja, com 298 mil hectares. Lá, a associação indígena Waymaré possui um contrato de fornecimento de insumos agrícolas com a Incofal Indústria e Comércio de Farelo, relativo a uma área de mil hectares. Na safra passada, a família de Ângela, assim como as outras 10 que vivem na aldeia, recebeu R$ 2 mil pela repartição dos lucros da lavoura. "Deu para eu construir minha casa", conta ela, orgulhosa, enquanto mostra a casa de madeira avarandada - estilo arquitetônico que domina a paisagem da aldeia, ao lado das malocas de palha usadas para rituais e, em menor escala, como moradia.
"As pessoas falam que deixamos de fazer festas tradicionais. A gente não faz mesmo festa para a soja, porque não é da nossa cultura. Mas fazemos oferta para o milho, o arroz", afirmou o coordenador de lavoura da aldeia Bacaval e irmão de Ângela, Arnaldo Zunizakae, mais conhecido como Branco. "Hoje já não vivemos só da caça e da pesca, e isso tem custo. Para fazer festa hoje, a gente precisa de dinheiro", argumentou, acrescentando que, graças à lavoura da soja, os 52 moradores de Bacaval voltaram a plantar milho (mas já de forma mecanizada, na chamada safrinha, cuja produção também é comercializada).
Os benefícios da agricultura comercial, porém, não são unanimidade entre os Paresi. As críticas mais contundentes, em geral, vêm dos mais velhos. "Para mim a soja trouxe divisão. No meu ponto de vista, o povo ficou muito individual, olhando só para o que é dele", afirmou Carmindo André Orezu, que também mora na TI Utiariti, na aldeia Salto da Mulher, comunidade responsável por uma área de 500 hectares de lavoura. A mulher dele, Emília Zolazokero, ainda faz "roça de toco", a agricultura familiar dos Paresi, baseada em tubérculos (especialmente a mandioca). "Eu tenho cabaça de chicha [bebida tradicional], faço beiju e carne moqueada no centro da maloca. Quando era pequena, não tinha outra comida e eu não achava falta de nada. A gente comia isso de manhã, no almoço, à noite e estava satisfeito. Hoje a criança acorda para ir pra escola e se não tiver leite, bolacha e bolo, não come nada", contou ela.
Para Branco, "cultura que não muda é a que está no museu" e a mudança de hábitos alimentares significa um avanço. "A gente estava passando fome, só comendo beiju, farinha, carne de caça e pesca. Hoje no nosso prato tem carne de boi, café, pão, fruta, uma alimentação mais equilibrada", defende ele, que há menos de um ano também trabalha como coordenador de saúde da Associação Indígena Halitinã - conveniada com a Fundação Nacional de Saúde, a Funasa, para o atendimento dos 1.584 Paresi que vivem em nove terras indígenas no Mato Grosso, todas elas já demarcadas. Nos anos 60, segundo dados da Funai, os Paresi eram apenas 360 pessoas. A taxa de crescimento atual desse povo é alta: 7,2% ao ano Em 2004, quando as parcerias agrícolas começaram, nasceram 48 Paresi e morreram três, sendo um deles menor de um ano. No ano passado, foram 55 nascimentos e 4 óbitos, nenhum de crianças.
Política integracionistaBranco, Ângela, Carmindo e Emília concordam em um ponto. A inserção dos Paresi na sociedade do consumo é bem anterior ao estabelecimento das parcerias agrícolas. O antropólogo Ivar Bussato, atual coordenador da ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), apoiou os Paresi na batalha pela garantia de seu território. Ele afirmou que o contato desse povo com o modelo civilizatório capitalista data do século XVII, quando parte dos indígenas foi escravizada pelos bandeirantes. Desde então, o cotidiano dos Paresi passou a ser impactado pelos ciclos econômicos que marcaram a região: eles trabalharam na coleta da seringa e da poaia - erva de cujas raízes se extrai a emetina, usada como princípio ativo em medicamentos -, como guarda-fios e guias das comissões telegráficas - motivo pelo qual ficaram conhecidos como "os índios de Rondon" -, como vendedores de artesanato na beira da BR-364 - construída em 1961, cortando o território Paresi de leste a oeste - e, a partir da década de 70, com a expansão da fronteira agrícola por colonos do sul do país , como mão-de-obra barata na implementação das fazendas.
"Em 1945, os jesuítas criaram um centro missionário em Utiariti, onde desde 1910 funcionava uma estação telegráfica", relata Bussato. Para Emília, foi o início da desestruturação da cultura Paresi. "As coisas começaram a mudar com os jesuítas, tinha crianças de várias aldeias que estudavam lá e eram proibidas de falar o idioma", explica ela. De fato, as aldeias onde atualmente há menos falantes do Paresi, língua pertencente ao tronco Aruak, são aquelas nas quais a ação catequisadora da chamada Missão Anchieta foi mais forte.
A mãe de Branco e Ângela, por exemplo, foi interna do centro missionário e só aprendeu a língua indígena com o marido, já adulta. Apesar disso, o casal sempre privilegiou o Português nos seus diálogos. Branco fala bem Paresi porque passou parte da infância com os avós, na aldeia Formoso. E Ângela seguiu o caminho materno: tornou-se fluente em Paresi apenas quando se casou e passou dois anos na aldeia do marido, Juininha. Em Bacaval, as lições da professora indígena Graciele Zuizukaeru são todas em Português. Pela manhã, ela dá aulas a 11 crianças de 4 a 12 anos, todas reunidas na mesma sala. Os jovens que chegam à quinta-série são obrigados a estudar na cidade: todos os dias, 13 estudantes de Bacaval pegam o ônibus na aldeia às 11h00 e só retornam às 19h00, enfrentando uma esburacada estrada de terra por onde transitam também muitos caminhões carregados de soja.
O histórico de interação com a chamada cultura ocidental ajuda a explicar por que desde 1992 os Paresi reivindicam ao governo federal apoio para a agricultura em grande escala. De acordo com o administrador-executivo regional da Funai em Tangará da Serra (MT), Carlos Márcio Vieira Barros, a demanda inicial era por financiamento direto. Em setembro de 2003, após um protesto no qual os Paresi retiveram cinco funcionários da Funai durante uma semana, o presidente do órgão assinou a Portaria 865, na qual autorizava o gestor local da Funai a assinar documentos junto ao Banco do Brasil para obter financiamento agrícola por meio da penhora da safra. O banco não liberou qualquer crédito, mas os 19 contratos de parceria agrícola que começaram a ser firmados em dezembro citam a Portaria 865 na cláusula que trata "da garantia entre a comunidade e o fornecedor".
Branco foi o primeiro Paresi a trabalhar com agricultura mecanizada dentro do território indígena, ainda em 1997, após ser funcionário de uma fazenda durante nove anos. "Quando saí de lá, meu ex-patrão me doou uma plantadeira velha e me emprestou um trator. O combustível, eu conseguia com a prefeitura de Sapezal", revelou. De início, ele plantou 45 hectares de arroz. Na safra seguinte, foram 60 hectares. No terceiro ano, em 1999, quando a área da lavoura mecanizada atingiu 90 hectares, o arroz já dividia espaço com a soja. Em 2000, a soja já era a cultura principal dos 150 hectares plantados pela família Zunizakae.
A lavoura mecanizada nas terras indígenas Paresi, que somam 1,3 milhão de hectares, não pode se expandir além dos 15.450 hectares já aceitos a contra-gosto pela Funai e o Ministério Público Federal (MPF), divididos em 17 lavouras não contínuas. Os outros dois contratos são referentes a mais duas plantações de mil hectares cada uma, na TI Irantxe, do povo de mesmo nome, e na TI Tirecatinga, dos Nambikwara. A localização de cada lavoura levou em conta preocupações ambientais: áreas planas, distantes de cursos d´água e das aldeias. Ainda assim, o desmatamento nessas áreas não foi autorizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que agora cobra da Funai a regularização ambiental. A região onde vivem esses três povos indígenas é considerada um berço de águas: lá nascem os rios Paraguai e Guaporé, além dos principais afluentes do rio Juruena.
A busca por alternativasOs contratos de parceria entre os indígenas e os fazendeiros são válidos até 2012. As aldeias cujos moradores já tinham contato anterior mais intenso com agricultura mecanizada, como a Bacaval, devem utilizar a verba guardada no Banco do Brasil para tentar permanecer no agronegócio por conta própria. Branco afirmou que comercialização direta da soja será o grande desafio e que aposta no mercado de agrocombustíveis para superá-lo, embora na região, até o momento, haja apenas usinas canavieiras. "Eu adoraria dizer que estamos exportando nossa produção, mas não é verdade. O Blairo Maggi [governador do Mato Grosso] é meu amigo pessoal e não compra um grão da nossa soja, porque sabe que pode dar problema. Nossa soja hoje vai para produção de ração", declarou o indígena.
A conta-investimento na qual é depositada metade da renda líquida da soja está em nome da associação Waymaré. De acordo com Branco, o saldo dela é de R$ 1,4 milhão e deve atingir R$ 2,2 milhões até o fim do ano. Dinheiro que, por exigência da Funai e do MPF, só pode ser sacado ao fim dos contratos. O índio empreendedor reconhece, no entanto, que a maioria das comunidades envolvidas na agricultura mecanizada deve investir em fontes de renda mais familiares à sua cultura tradicional, como a produção e a venda de artesanato.
A Associação Halitinã, inclusive, usou parte do lucro já disponível da soja como contrapartida para a criação de peixes em tanques-rede, com apoio da Secretaria Nacional de Aqüicultura e Pesca. Além disso, desenvolve o projeto Kani - Sustentabilidade e Geração de Renda na Extração do Pequi, com financiamento do pelo programa Petrobrás Fome Zero.
"Esses projetos alternativos em geral carecem de acompanhamento técnico regular e de viabilidade econômica", opinou Ivar Bussato. "Os Paresi lutaram pela terra, sobreviveram, têm direito a decidir sua história e seu jeito de viver hoje. O modelo agrícola que eles adotam é o da região, direcionado pelas multinacionais de semente e agrotóxicos", ponderou o do antropólogo. "Se eles plantassem organicamente, ninguém iria criticar, poderia ocupar dez vezes a área atual. Mas eles não dispõem desse modelo: o que têm é o da concentração de renda", completou.
(Por Thaís Brianezi,
Repórter Brasil, 27/03/2009)