Mesmo agora, muito antes da estação de furacões, Jean Hubert procura conter o pânico que brota do seu peito todas as vezes que nuvens negras se acumulam no horizonte.
A sua intranquilidade multiplica-se até mesmo a chuva passa, na forma de goteiras, pelo telhado de zinco. No ano passado, as tábuas aparentemente robustas que apoiam o telhado quebraram-se como se fossem palitos de fósforo durante as enxurradas, abrindo buracos no zinco frágil.
"Eu vivo com um pé na porta", explica Hubert, um professor de escola secundária de 35 anos de idade, que está sempre pronto a correr para os morros ao menor sinal de uma tempestade. Do lado de fora da sua casa de quatro cômodos, feita de blocos de concreto, o estrago causado nesta cidade na zona central do Haiti por uma série de furacões que atingiu a ilha seis meses atrás é bem evidente.
A casa de Hubert fica agora a cerca de 1,5 metro abaixo da rua estreita. A lama que invadiu todas as casas, escavada a mão e carregada para a rua, endureceu, formando uma elevação irregular composta de montes sólidos como concreto. Os pedestres que passam pela superfície irregular olham para os telhados de zinco lá embaixo e pisam em objetos domésticos jogados no chão - aqui uma bomba vermelha brilhante, ali um pente de plástico azul-turquesa.
O medo de uma próxima grande tempestade toma conta da cidade inteira. Todo mundo sabe que as chuvas deverão começar em abril, e que por volta de junho os furacões principiarão a se formar no Oceano Atlântico - a estação mortífera que dura até novembro. Hubert reclama de que a cidade não possui um plano de evacuação, e de que o mesmo caos que da última vez o deixou sentado no telhado de um vizinho durante três dias, com os cinco filhos chorando de fome, poderia muito bem voltar como se fosse a repetição de um pesadelo.
A prefeitura, um simples sobrado na praça principal, carece daquela movimentação que seria de se esperar de uma cidade que ainda está se recuperando das tempestades que a atingiram como um ariete. Fay, Gustav, Hanna e Ike - todos os furacões, com exceção do primeiro - atingiram a região em um período de um mês, de agosto a setembro do ano passado. Foi o Hanna que realmente destroçou Gonaives, a quarta maior cidade do Haiti, com 300 mil habitantes.
Nenhuma outra cidade do Haiti foi tão duramente atingida. Mais de 75 centímetros de precipitação pluviométrica atingiram a cidade da noite para o dia. Os morros que tem menos de 2% de sua área coberta por árvores despejaram o material da enxurrada no Rio La Quinta, formando uma parede de água e lama que acabou transbordando cinco metros acima das margens.
Quando as águas baixaram e deixaram as ruas da cidade, a inundação tinha matado 466 moradores; outros 235 despareceram e acredita-se que morreram. Das 33 mil casas da cidade, 5.441 desabaram e cerca de 22,3 mil ficaram danificadas. Em âmbito nacional, os danos totalizaram US$ 900 milhões, ou quase 15% do produto interno bruto do país.
"Basta uma única nuvem, e tudo mundo me pergunta se serão evacuados", diz o vice-prefeito Jean-François Adolphe, quando lhe perguntam sobre o estado de espírito na cidade. Ele diz que a Câmara Municipal tentou criar um plano, mas logo reconheceu que a ideia era basicamente inviável. A cidade não conta com um lugar para abrigar ninguém, e tampouco com os meios para transportar os habitantes para uma área mais elevada.
Adolphe avalia que a possibilidade de um furacão atingir a cidade neste ano é de 30%, e nega terminantemente um boato de que o prefeito e os seus dois vices teriam comprado casas nos morros. Ele observa com orgulho que as tempestades de 2008 mataram menos de 800 pessoas, em comparação com as 3.000 mortes registradas quando o furacão Jeanne atingiu a ilha em 2004, o que significaria que as autoridades devem estar fazendo algo de correto.
O principal problema que permanece após as tempestades é a lama. Calcula-se que Gonaives tenha sido tomada por uma camada de lama de um metro de espessura e com área de até 2,6 quilômetros quadrado.
Adolphe achava que a cidade havia encontrado uma boa solução para livrar-se da lama - equipes de bairros que seriam pagas pelo trabalho de limpeza enquanto iriam se deslocando pelas áreas atingidas. Mas, segundo ele, os moradores limparam as suas próprias ruas e desprezaram as outras áreas, aparecendo apenas a cada duas semanas para receber um pequeno salário. "Eles não estão de fato interessados em fazer trabalho comunitário", diz ele.
Já os moradores reclamam que o governo não está agindo como deveria. Eles só elogiam a Venezuela. O governo venezuelano financiou a construção da usina de energia elétrica Simon Bolivar, que fornece cerca de 16 horas diárias de eletricidade à cidade.
As Nações Unidas também contrataram 21 mil pessoas para construir platôs nas montanhas em torno da cidade, pagando a elas US$ 2 em dinheiro e US$ 3 em alimentos por cada dia trabalhado. Mas menos do que 2% daquilo que precisa ser feito para melhorar a contenção de água foi completado, afirma Alex Ceus, diretor do programa de platôs.
"O pouco que foi feito é insuficiente para proteger a cidade", diz ele. No morro ao lado dos novos platôs, mãos experientes apontam para as ondulações suaves deixadas pelas tentativas anteriores. A força da água despejada pelo furacão Hanna também destruiu os platôs.
Logo após as enchentes, as Nações Unidas organizaram uma campanha de âmbito mundial no valor de US$ 127 milhões para financiar os esforços de recuperação, mas somente a metade dessa quantia foi efetivamente doada.
Cada tempestade parece agravar o estrago causado pela tormenta anterior. Ao sul de Gonaives, um lago de vários quilômetros de comprimento atualmente cobre aquilo que antes era uma planície árida. A água bate contra os batentes das janelas das casas abandonadas, e as cortinas farfalham ao vento forte.
A água oculta uma rodovia elevada que estava sendo construída porque a mesma área foi inundada em 2004. A maioria das estradas haitianas se constitui em trechos cobertos de crateras, mas o contorno que a Rota Nacional 1 atualmente faz em volta do lago, em um percurso de 25 minutos, consiste de uma estrada especialmente esburacada e sem pavimentação, na qual ônibus enormes transitam sem dar espaço a veículos menores.
No início, as pessoas que foram obrigada a abandonar as suas casas acharam que o lago poderia pelo menos fornecer-lhes peixe como alimentação. Mas, depois que dois homens afogaram-se quando as suas canoas viraram devido aos ventos fortes, os moradores locais, que ainda moram em tendas, disseram que não mais se aventurariam perto da água.
Mas o medo de afogamento não se restringe só ao lago.
No mercado comunitário no centro da cidade, Pierre Exante, um vendedor de colchões, faz uma careta dolorosa quando os seus olhos voltam-se para a grande vala de água negra e lixo ao lado da sua casa. O mau cheiro e a reputação ainda pior mantêm os clientes à distância. Exante conta que quatro pessoas se afogaram na vala.
O restante do mercado não é muito movimentado. O proprietário de um estabelecimento comercial diz que recebe mais pedintes do que clientes - a tempestade acabou com a economia local. Os moradores dizem que problemas intermináveis como esses preenchem os seus dias e noites com medo.
Nicole J. Clervius é diretora local da Fonkoze, um banco de microcrédito que ajuda os empresários a tentar se reerguer. "As pessoas não conseguem dormir, elas estão sempre alertas", diz ela. "É como se elas estivessem sempre aguardando algo que está por vir".
(Por Neil MacFarquhar, The New York Times,
Uol, 24/03/2009)