Na madrugada do dia 18 de novembro de 2008, um líquido leitoso escorreu silenciosamente para as águas barrentas do rio Pirapetinga. Veneno. Os peixes que entravam em contato com aquilo tinham o sistema nervoso atacado. Convulsões. Hemorragia interna. Morte. O vazamento seguiu por horas, sem que ninguém percebesse. Tempo suficiente para que o produto químico saísse do afluente e chegasse ao principal rio que abastece o estado do Rio de Janeiro: o Paraíba do Sul. Ninguém sabia ainda, mas as próximas horas trariam pânico aos municípios próximos.
Os relatos são muitos, e por isso não se sabe ao certo quem primeiro avistou a nuvem de peixes mortos que chegava em Barra Mansa (RJ), a primeira cidade afetada. A notícia era de que havia algo de muito errado com as águas do rio que percorre 37 municípios no Rio de Janeiro e abastece 12 milhões de pessoas, segundo a Fiperj (Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro). “Nós não fomos comunicados por Resende [cidade onde ocorreu o vazamento]. Um agente ambiental nosso viu e então as providências foram tomadas. Ficou todo mundo apavorado, porque ninguém sabia de onde era o problema”, conta Marco Chiesse, secretário do Meio Ambiente de Barra Mansa
O município avisou a capital, que tomou uma decisão drástica, sem saber ao certo o que estava acontecendo, como explica a secretária de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, Marilene Ramos: “Mandamos fechar o abastecimento na quarta-feira [o acidente ocorreu na terça de madrugada]. Tomamos essa decisão no escuro, porque nossa equipe só chegou no local na quarta de tarde. Achamos estranho, mandamos fechar. Isso significa comprometer o abastecimento de milhões de pessoas. Mas foi para prevenir riscos”.
A nuvem tóxica andou 500 quilômetros do rio, até o mar. “Percorreu toda a extensão do rio, e por onde o veneno passava foi aniquilando o manancial de peixes”, relata o delegado Fernando Reis, responsável pela investigação criminal do caso, da Delegacia de Meio Ambiente. Várias cidades recolheram peixes mortos, tentando aliviar o cheiro que infestava as casas ribeirinhas, procurando evitar doenças. Muitos foram incinerados, outros levados para o lixão de Carmo, município da região. Caso fossem enterrados próximos, poderiam contaminar o solo e os lençóis freáticos.
Sérgio Coelho, presidente da Associação dos Canoeiros Defensores da Natureza de Barra Mansa, conta que só ele tirou uns 3 mil quilos de peixe, num barco pequeno, desses com um motor simples atrás. “Ensacamos e levamos para o forno da CSN. Estava um mal-cheiro do cacete. O rio e aquilo branco, tomado de peixe. Doía. Dói. A gente depende dos peixes”.
A contagem final do estrago ainda não está pronta, porque cada município retirou toneladas do leito. Só a Federação de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro cedeu quatro caminhões, com capacidade para 25 toneladas cada, que saíram cheios. Outras 50 toneladas ficaram presas nas grades de contenção da Usina Hidrelétrica Ilha dos Pombos, próximo ao município de Carmo. Até no mar é provável que houve estragos. “Tivemos 40 quilômetros de praia onde tiramos peixes mortos. Teve tartaruga, capivara. Não podemos afirmar que foi relacionado, mas foi na mesma época”, diz Marilene Ramos, secretária de Meio Ambiente do RJ. O Ibama fala em centenas de toneladas de peixes mortos.
Na trilha da morteA causa do desastre foi descoberta seguindo a trilha dos peixes mortos. Na verdade, a toxina vinha de um afluente do Paraíba do Sul chamado Pirapetinga. Mais precisamente, do ponto em que o afluente passa nas costas da Servatis, empresa que envasava o endosulfan. Hoje está com a produção interditada. A Servatis soube do vazamento na madrugada. O caminhão que faz o transporte do produto teria estacionado e o encarregado fez a ligação para bombear o tóxico para os tanques.
“Só que ele se ausentou por um instante dessa operação, porque ele já fez isso centenas de vezes. Nisso, rompeu o diafragma e soltou o engate do caminhão. Em consequencia, o produto que restava ainda no caminhão derramou no dique de contenção. E como chove, tinha água no dique. O produto entrou lá dentro, e em conjunto com a água, forma um tipo de leite. Exatamente como o agricultor usa. Pega um litro, joga em um metro cúbico de água, e pulveriza”, explica o presidente da Servatis, o alemão Ulrich Meier. “O operador avisou que vazou e que o produto estava contido. Tinha 14 metros cúbicos daquele leite. Pensávamos que estava tudo bem, até recebermos indicações do rio Paraíba.”
Ocorre que o dique de contenção tem uma válvula, que quando aberta despeja o conteúdo do dique no rio Pirapetinga. Uma pergunta óbvia seria por que um dique de contenção tem uma válvula virada para o rio – ao que Meier explica que isso era “para uma operação de água de chuva. Analisa-se a água, e se não estiver contaminada ela é descartada para a rede pluvial. Só que essa válvula estava com defeito, não estava totalmente fechada”.
Num primeiro momento, a empresa afirmou que 1,5 mil litros haviam vazado. Dias depois, corrigiu a informação: seriam 8 mil litros. O caminhão que fazia o transporte tinha capacidade para 30 mil litros. Como cada litro do agrotóxico precisa ser misturado a mil litros de água para pulverização, caso o caminhão todo tivesse vazado, seriam 30 milhões de litros de veneno. Para ter uma idéia de quanto agrotóxico isso significa, é como se as Cataratas do Iguaçu jorrassem veneno em vez de água durante 30 segundos.
A polícia e o Ministério Público investigam as responsabilidades pelo ocorrido. O assunto começa a ficar nebuloso quando a história da Servatis vem à tona. A empresa, fundada em 1957, se chamava Cyanamid Química do Brasil Ltda. Em 2001 foi adquirida pela multinacional Basf S.A., que decidiu fechar a empresa em 2005. Num acordo inédito, os funcionários a compraram através de empréstimo do BNDES e rescisões contratuais, e passaram a denominá-la Servatis.
“A Cyanamid já tinha a obrigação de recuperar o lençol freático local, porque houve um vazamento forte de produtos químicos antes”, diz o delegado Fernando Reis. Hoje, a Cyanamid foi incorporada à área de defensivos agrícolas da Basf. Outra parte da Cyanamid foi vendida aos funcionários e hoje é a Servatis. “Que é o quê? Nada mais do que a junção do Ulrich [Meier] e do Uataul [Teixeira de Lima], dois diretores da Cyanamid e da Basf. Quando o Ministério Público for determinar responsabilidades, indenizações, fatalmente vai arrastar uma dessas outras empresas. Você tem uma empresa, e funda outra constituída por ex-funcionários. E eles passam a produzir para a empresa anterior. Não consigo imaginar como não haverá co-responsabilidade do ponto de vista cívil”, diz o delegado.
A Basf alega que vendeu a fábrica em 2005, portanto não há correlação da Basf com o acidente. Segundo a empresa, ela nem mesmo tem o endosulfan no rol de produtos que trabalha. Outro que acusa a empresa é o advogado Leonardo Amarante, que representa a Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro. “O que já foi apurado e provas documentais mostram é que a relação da Servatis com a Basf não é meramente comercial. Há uma subordinação à Basf, uma ingerência. Então nosso processo também é dirigido contra a Basf. Temos certeza de que a Basf também será responsabilizada”.
A empresa alemã garante que o contrato que tem com a Servatis é meramente comercial, “padrão”.
Um rio de incertezasA Servatis já recebeu multa de R$ 33 milhões aplicada pela Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca), ligada à Secretaria do Meio Ambiente do RJ. A empresa chegou a ser interditada, mas foi liberada em seguida, após uma vistoria. Em audiência pública realizada em dezembro, em Resende, Ulrich Meier afirmou que esse valor pode levar a empresa à falência, se não conseguir crédito no BNDES.
“Os 20 dias parados causaram muito prejuízo para a empresa. Reconhecemos a lambança que fizemos no meio ambiente e queremos reparar nosso erro. Por isso temos que conseguir dinheiro para pagar nossa conta de luz, fornecedores e funcionários. Se não conseguirmos o crédito, teremos que decretar a falência da empresa. E isso será muito mais danoso para o ambiente”, afirmou.
O rio Paraíba do Sul está repleto de empresas em suas margens, “verdadeiras bombas prontas para explodir”, conforme define o Presidente do Inea (Instituto Estadual do Ambiental), Luiz Firmino Martins. Isso porque não há auditorias, não se sabe como essas empresas operam – e elas estão lá há mais de 30 anos. Além das empresas, falta conscientização das pessoas. “Tem muito mecânico que joga óleo. Dá pra ver na água. E todo mundo joga o lixo no rio. É uma cultura”, diz o conselheiro municipal de Meio Ambiente de Barra Mansa, Denival da Costa. “A quatidade de coliformes fecais é enorme. As grandes indústrias estão cuidando do esgoto, porque exportam e precisam de um selo verde. O problema é a pequena indústria e o esgoto doméstico”. Quase não existe tratamento de esgoto nas cidades ribeirinhas do Paraíba do Sul. “A gente bebe esgoto”.
E muita gente comeu os peixes intoxicados pelo endosulfan. Guilherme Souza, diretor do Projeto Piabanha, conta que enquanto retirava peixes do rio para medir a toxidade dos animais, após o acidente, as pessoas comiam os peixes. “Enquanto eu abria o peixe viscerado, intoxicado, o pesssoal pegava e comia. Tinha peixe agonizando e o pessoal pegando pra comer. O cara nunca viu um robalo de cinco quilos, ainda vivo. Eu falava pra não comer, mas não adiantava”. Há relatos de pessoas com irritações na pele (justamente um efeito do produto), mas nenhuma quantificação. “Isso dava um bom doutorado”, diz Souza, que viu inclusive pessoas armazenarem nas geladeiras os peixes mortos, para consumo ou venda.
Hoje, ele diz que as pessoas já não consomem, conscientizadas do risco. Nem pescam, porque não tem para quem vender. Em fevereiro, o Ibama proibiu, até 31 de maio, todos os tipos de pesca na Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul - de Resende, onde ocorreu o acidente, até o fim do rio, em São João da Barra, litoral norte do Estado.
Apesar de ter sido um dos piores acidentes ecológicos da história do Rio de Janeiro, poucos ouviram falar do assunto. Talvez porque novembro de 2008, mês do desastre no rio Paraíba, também foi quando outro estado sofreu uma calamidade: era o ápice das enchentes em Santa Catarina que deixaram milhares de desabrigados. Toda a atenção da mídia se voltou para lá. A contaminação no Rio de Janeiro ficou desinteressante. Fora o jornal carioca O Globo, que deu algumas reportagens – e mesmo assim, no caderno de cidades –, ninguém mais noticiou o envenenamento do Paraíba do Sul.
Há desdobramentos. Em fevereiro, a Servatis (empresa de envase, onde ocorreu o acidente), a Basf (ex-dona da Servatis) e a Agripec (empresa que produz endosulfan), quase três meses depois do ocorrido, foram condenadas em primeira instância na cidade de Resende a pagar um salário mínimo mensal para cada um dos cerca de 1200 pescadores do Paraíba do Sul, enquanto eles tiverem os trabalhos afetados pelo pesticida. A Basf nega participação no acidente e a Agripec, hoje Nufarm, afirma que não tem fábrica em Resende. A Servatis não nega a culpa pelo acidente, mas diz que tem um projeto de recuperação do rio em conjunto com uma ONG local. O governo do Rio de Janeiro afirma que só aprovará um projeto de recuperação realizado em conjunto com diversos órgãos, como o Ibama e secretarias de outros estados por onde o rio passa, como SP e MG. O projeto da Servatis deverá, assim, ser analisado e incluído num projeto maior.
O governo do Estado do Rio de Janeiro promete um relatório final nas próximas semanas, com todos os dados consolidados. Um documento oficial trará, então, o resultado do derramamento de um dos piores venenos produzidos no mundo na bacia hidrográfica de um dos estados mais importantes do Brasil. Talvez aí os jornais se interessem pela notícia – e possam servir para algo além de embrulhar peixe.
O endosulfanBanido da União Europeia e de pelo menos outros 20 países, o endosulfan é um agrotóxico – ou um “defensivo agrícola”, como preferem chamar os produtores – usado principalmente nas lavouras de café, algodão, soja, cana e alguns cítricos. É da mesma família do DDT, já proibido no Brasil e em quase todo o mundo. Aqui, o endosulfan é classificado como “extremamente tóxico” pelo Ministério da Saúde e como “altamente perigoso para o meio ambiente” pelo Ibama. Há uma campanha mundial pela proibição do produto e vários processos tentam impedir a produção local, como nos EUA.
Um relatório de 2002 da ONG inglesa Environmental Justice Foundation (“End of the road for Endosulfan – a call for action against a dangerous pesticide”) mostra danos causados em vários países, como a Índia, onde há casos relatados de deformidades congênitas, doenças neurológicas e até morte, em casos nos EUA, Colômbia e Benin, entre outros. A Colômbia é um dos países que proibiu o uso.
O químico age sobre invertebrados em geral, não apenas insetos. Deve ser misturado em água e depois borrifado nas lavouras. Segundo artigo do professor Philip C. Scott, do Instituto de Ciências Biológicas e Ambientais do Rio de Janeiro, o testemunho mais contundente sobre o efeito do endosulfan na natureza é o de um agricultor do Benin: “Os campos fedem por dois a três dias após a aplicação pois praticamente qualquer ser vivo foi morto e tudo começa a apodrecer”.
Em entrevista à revista Fórum, Scott diz que “moluscos e crustáceos, como o pitú e o lagostin, são facilmente afetados. A fase larval deles mais ainda. É um tipo de inseticida que é feito para atacar a parte respiratória de insetos e invertebrados. E como caiu no rio numa época de desova, para uma larva é mortal. Os peixes são particularmente sensíveis ao endosulfan. Eles tem hemorragias violentas.”
O professor diz que mesmo mamíferos não estão a salvo. “Na Índia, uma aplicação normal - não um desastre - atingiu a água e você vê uma série de doenças de fundo neurológico. Especialmente as de fundo nervoso. Se puder prestar atenção nos hospitais da região, vai encontrar mais pessoas com problemas psiquiátricos, nervosos. Na gestação afeta os fetos.”
Até poucos anos, diz ele, o endosulfan era usado na França. “E precisam de bons pesticidas - fazem uvas, fazem vinho. Mas lá ninguém aceita produtos que não sejam inofensivos à saúde humana. Se as pessoas não se levantam, se a imprensa não reage, a indústria continua produzindo isso. O governo não tem porque usar um produto como esse. É preciso expor os perigos.”
(Por André Deak e Paulo Fehlauer,
Revista Fórum, 22/03/2009)