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cana-de-açúcar passivos dos biocombustíveis trabalho escravo
2009-03-23
Neste mês de março, em homenagem a luta das mulheres trabalhadoras, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a Via Campesina Pernambuco mostram, nesta reportagem especial, a realidade das trabalhadoras rurais da zona da mata do estado, vítimas da exploração cotidiana protagonizada pelo monocultivo da cana de açúcar. Os relatos e depoimentos das canavieiras mostram o lado ainda mais perverso do modelo de produção baseado no agronegócio e são a prova da necessária luta contra o agronegócio e pela Reforma Agrária e Soberania Alimentar para o povo brasileiro.

No município de Água Preta, zona da mata de Pernambuco, às 4h da madrugada de um dia em fevereiro, homens e mulheres saíam de suas casas, carregando marmitas e facões, e caminhavam até o ponto onde os ônibus das Usinas os levariam para trabalhar no corte da cana da região. Nos períodos da safra de cana-de-açúcar em Pernambuco, essa cena se repete todos os dias com milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Todos os 43 municípios da zona da mata - região de maior produção de cana do estado - têm o monocultivo da cana como atividade econômica hegemônica. As plantações chegam a atingir uma área de aproximadamente 450 mil hectares. Em 2008, a produção de etanol (extraído da cana-de-açúcar) no estado, superou em 49% a de 2007. São recordes e mais recordes de produtividade extraídos da terra e do esforço desumano dos canavieiros e canavieiras.

Raízes da pobreza
Enquanto o Brasil se destaca no cenário internacional como um dos maiores produtores de etanol do mundo, as grandes regiões de produção de cana no país apresentam índices lamentáveis. A zona da mata Pernambucana possui índices GINI de concentração de terras que chegam a atingir 0,9 - pelo índice de GINI, quanto mais próximo do numero 1, maior é a concentração de terras – e o estado, como um todo, aparece com o quinto pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país.

Em Pernambuco, a pobreza no campo sempre esteve intrinsecamente ligada à economia desenvolvida pelo modelo de produção da cana. Mesmo quando o estado era o maior produtor nacional do monocultivo - até a década de 70 -, os níveis de pobreza eram um dos maiores do mundo e foram incansavelmente denunciados por cientistas pernambucanos como Josué de Castro e Nélson Chaves. Atualmente, a face moderna da produção da cana se reveste do discurso governamental "pela busca da energia limpa", porém, a custos sociais, ambientais e econômicos muito altos.

A situação de miséria e escravidão se agrava ainda mais com o aumento dos investimentos estatais e privados destinados ao agronegócio e para impulsionar a produção dos agrocombustíveis. Os números comprovam: a oferta de crédito rural do Governo Federal para a agricultura empresarial nesta safra (2008/09) é de R$ 65 bilhões, contra apenas R$ 13 bilhões para a agricultura familiar. No último dia 06 de março, o Governo Federal anunciou mais um “socorro” ao setor sucroalcooleiro paulista e do centro-oeste, com dinheiro público. Na ocasião, foi divulgando a liberação imediata de R$ 2,5 bilhões para financiar o estoque de etanol e prometeu renegociar uma dívida de R$ 3,45 bilhões das grandes usinas junto ao BNDES - que só no ano passado liberou mais de R$ 6,5 bi para várias empresas do milionário agronegócio sucroalcooleiro, utilizando verbas da sociedade e dos trabalhadores, a exemplo do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador).

Trabalho escravo
O modelo de produção do agrocombustível, através do etanol, não esconde que uma de suas bases de sustentação é o trabalho escravo. A introdução de novas técnicas produtivas e o excesso de mão de obra disponível aumenta a cobrança por melhores rendimentos dos trabalhadores. Para garantir um salário, o trabalhador precisa atingir determinados níveis de produtividade que exigem esforços desumanos. "O salário daqui, se o cara puxar muito, faz. Se não puxar, não faz não. Pra fazer um salário aqui é um sufoco, tem que trabalhar muito. O trabalho da cana é muito ruim. É um salário e pronto, nós não passa de um salário aqui não", comenta Dona Sebastiana, do município de Água Preta, que trabalha na cana desde os 11 anos. "É três tonelada o salário. Eu trabalho junto com meu marido, aí tem que fazer o que? Seis toneladas",complementa. Relatos de problemas de saúde, por conta do esforço físico exigido, também são freqüentes: "É muita dor que eu sinto no meu corpo. Eu tenho problema de gastrite e coluna. Incomoda muito eu abaixando, levantando, abaixando, levantando. Tem dia que eu vou me deitar doente e acordo pior, tomo remédio e é o mesmo que nada. Eu tomo remédio, vou pro médico e não passa a dor. Eu vou trabalhar assim mesmo, um dia boa, outro dia doente", desabafa Dona Sebastiana.

Em 2008, foram encontrados 529 trabalhadores em situações de escravidão e super exploração nas usinas de cana em Pernambuco. Um dos casos mais emblemáticos foi o da Usina Vitória, localizada no município de Palmares, quando, no mês de novembro de 2008, foram resgatados de uma só vez 241 trabalhadores rurais em situações degradantes. Outro caso foi o da Usina Ipojuca, que mantinha em um regime de exploração mais de 150 canavieiros. Já em 2009, no mês de fevereiro, em uma operação do Grupo Móvel de Erradicação do Trabalho Escravo, foram resgatados 252 trabalhadores rurais, dentre eles, 27 menores de idade. Todos encontrados sem as condições mínimas de trabalho exigidas por lei, na Usina Cruangi, município de Aliança, também zona da mata do estado. A realidade de trabalhadores e trabalhadoras rurais que vivem sob essa condição é muito maior do que se tem registro.O Grupo Móvel não consegue acompanhar todas as denúncias de trabalho escravo feitas pelos movimentos sociais do campo.

Mulheres canavieiras
O caso de Dona Sebastiana se repete em milhares de mulheres que trabalham na cana-de-açúcar. Segundo dados da DRT (Delegacia Regional do Trabalho) e dos registros dos Sindicatos em cada município, a participação das mulheres nos canaviais do estado varia de acordo com a região. Chega a ser 20% a participação feminina nas usinas de cana em alguns municípios da zona da mata sul do estado. Já na zona da mata norte é quase inexistente a participação das mulheres no processo produtivo da cana. Líderes sindicais avaliam que a força de trabalho feminino no campo tem diminuído gradativamente nos últimos anos. Para a diretora de mulheres da Fetape (Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco), Maria Aparecida, a Molica, os pagamento de benefícios, como a licença maternidade, são alguns dos elementos que têm contribuído para esta diminuição na contratação de mulheres. A causa central é a busca por índices elevados e permanentes de produtividade, com o menor custo possível e sem garantir direitos trabalhistas.

As histórias das mulheres que sobrevivem nos canaviais mostram o lado ainda mais perverso da produção do monocultivo. Além do trabalho na usina, há o trabalho em casa e com os filhos. "Acordo às 2h da madrugada, pegamos o ônibus às 4h e largamos lá pelas 15h, 16h, dependendo da cana. Quando eu chego em casa é muita luta ainda, viu... eu vou arrumar a minha casa né, e a casa do meu pai", comenta a trabalhadora rural Ivanusa Maria da Silva Ribeiro, de 46 anos, cortadora de cana e moradora do município de Água Preta.

Famílias inteiras
A trabalhadora rural Dona Maria José, de 46 anos, comenta que começou a trabalhar na cana com 11 anos. "Comecei no lugar da minha mãe, quando ela engravidava e ficava de resguardo." O depoimento de Dona Maria José alerta para um dos grandes problemas, conseqüência do modelo de produção do monocultivo no estado: "Um grande número de famílias da região são prisioneiras do modelo de produção da cana-de-açúcar. Todos trabalham: pai, mãe e filhos e filhas. O monocultivo criou uma grande dependência na economia da região. A maioria é submetida ao trabalho desumano e não encontra outra oportunidade de trabalho", comenta Bethânia Mello, da CPT.

As mulheres quando engravidam, trabalham até a última hora, para conseguir completar a produção e garantir um salário. "Fiquei meio assim, passando mal, fui pro hospital já era tempo de ganhar o bebê. Trabalhei de manhã, à tarde já fui ganhar o bebê", comenta uma das trabalhadoras rurais do município de Água Preta.

Ao saírem para enfrentar o trabalho da cana, muitas mães não tem com quem deixar os seus filhos. Muitos desses jovens não conseguem se manter nos estudos e são obrigados a trabalhar. Em muitos dos casos, a cana de açúcar é vista como a única oportunidade. "Eu tive cinco filhos, quando um ia crescendo, ai ficando com os outros. Deixava comida pronta em casa, mamadeira. Quando eu chegava, dava banho, dava mais comida e era assim. Assim criou-se tudinho. Já tá tudo de maior.

Tudo trabalhando na cana" comenta Helena Maria da silva, de 43 anos, que há 27 trabalha na cana de açúcar. Neste período, criou os cinco filhos sozinha, sem o pai das crianças. De acordo com Molica, da Fetape, as principais reivindicações específicas das mulheres na luta sindical do campo é a criação de espaços de creche, a liberação para a realização de exames preventivos duas vezes ao ano, além de medidas de prevenção contra o assédio sexual, sofrido por muitas trabalhadoras. Segundo Molica, apesar dessas reivindicações já terem sido aprovadas, nenhuma delas são garantidas pelos usineiros.

Mas as trabalhadoras seguem resistindo a esta situação imposta pelo estéril latifúndio, que lhes negam a Reforma Agrária e a dignidade humana. Mulheres, companheiras capazes de gerar vidas e mestras na arte de “descansar”, têm a paciência para cultivar a esperança e sonhar com um outro Brasil em que a terra seja partilhada e que haja distribuição de renda. As mulheres se negam a dar continuidade a este modelo de escravidão, causado pelo monocultivo da cana, como diz Dona Maria José: “Não quero gerar nenhum filho para trabalhar na cana, não. Porque isso não tem futuro. Aqui a gente não tem nada, não somos nada.”

(MST, 18/03/2009)

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