Depois de se recusar a atender trabalhadores contaminados, universidade recebe oferta de “contribuição social” da multinacional holandesaQuando a contaminação ambiental praticada pela Shell Brasil S.A. e pela Basf S.A., no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, veio a público, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi uma das primeiras instituições a ser procurada pelo Sindicato Químicos Unificados e pelos trabalhadores das duas multinacionais, em busca de ajuda. O raciocínio era lógico. A Unicamp possui profissionais médicos, pesquisadores e laboratórios em diversas especializações; é conhecida internacionalmente; está instalada quase na divisa Campinas com Paulínia (a alguns poucos quilômetros da área contaminada) e; principalmente, por ter sido criada, construída e se manter com dinheiro da sociedade por meio dos impostos pagos.
O raciocínio era lógico. Lógico, mas talvez, também ingênuo.
Presteza e compromissosMas a Shell não foi ignorada. Para ter o “respaldo científico" do qual tanto necessitava para explicar o inexplicável no crime ambiental que cometera em Paulínia, contaminando a terra, água, ar e seres humanos, a multinacional holandesa foi buscar, e encontrou, todo apoio em membros atuais e antigos da Unicamp. E foi atendida com toda presteza por estes, que têm o compromisso com o lucro.
Por outro lado, é necessário destacar que, de forma pessoal, demonstrando compromisso com a vida e com os interesses da sociedade, diversos integrantes do Departamento de Medicina Preventiva da Unicamp, em caráter pessoal, deram apoio aos trabalhadores e moradores contaminados pela Shell/Basf.
Contribuição ou paga?Após por cerca de seis anos a Unicamp se manter absolutamente omissa na questão a partir da necessidade dos trabalhadores e dos moradores do bairro atingidos pela contaminação, em fevereiro último a Shell propõe a implantação de um centro de toxicologia na universidade. Conforme consta da proposta apresentada pela Shell, isso seria uma sua “contribuição social”, que incluiria também um centro médico de referência no atendimento à saúde do trabalhador, em Paulínia.
Dessa vez, sem ingenuidades, qual seria o raciocínio lógico?
MPT e recusaEssa proposta da Shell foi apresentada dia 04 de fevereiro de 2009 na Justiça do Trabalho de Campinas, junto ao Ministério Público do Trabalho (MPT) quando mais uma audiência buscava um acordo entre ex-trabalhadores e a Shell/Basf. Os ex-trabalhadores recusaram essa proposta da Shell para que o caso seja dado como encerrado.
Judicialmente, está em vigência decisão da Justiça do Trabalho proferida em dezembro de 2008, em Paulínia, que determina que as multinacionais paguem plano de saúde vitalício para todos os seus ex-trabalhadores. A decisão se estende para os familiares de empregados, prestadores de serviços e trabalhadores autônomos que se ativaram no local, perto de mil pessoas, mais a multa de R$ 620 milhões a ser recolhida para o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.
Protesto e manifestoEm novembro de 2001 o sindicato e os trabalhadores oficiaram formalmente à reitoria da Unicamp um “pedido de ajuda” no caso da contaminação Shell/Basf. O ofício nunca foi respondido. Em abril de 2003, foi protocolado novo ofício com a mesma reivindicação, que também foi ignorado. Com a divulgação dessa omissão da universidade, diversas entidades e instituições da sociedade, de profissionais, de trabalhadores, de movimentos sociais e populares e de profissionais da saúde comprometidos com a população e não com os lucros das empresas, sejam elas nacionais ou multinacionais, divulgaram um manifesto de denúncia à atitude da Unicamp.
Em julho de 2003 foi realizado um ato público de protesto em frente à reitoria da Unicamp, com a divulgação do manifesto que, em um trecho, destaca:
“Assim, considerando o descaso da Unicamp e do Conselho Universitário em responder a nossas demandas, fazemos uma ampla denúncia pública, através da emblemática postura da universidade, que em nome de pretensa autonomia universitária permite que um grupo de docentes pratique um fervilhante balcão de negócios dentro de suas instalações, sem ter uma firme postura ética que regule tal atividade, incompatível com a boa ética e moralidade... “
AmiantoO caso do envolvimento de profissionais da área de medicina do trabalho da Unicamp com interesses da indústria na defesa do uso do amianto no Brasil é um exemplo clássico de conflito de interesses entre a saúde e dinheiro público com o lucro privado. A poderosa indústria do amianto financiou um "trabalho científico" na Unicamp, ao mesmo tempo em que este mesmo estudo era financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), portanto, com dinheiro público.
Assim os interesses das indústrias do amianto, obviamente encontrados em seu particular “trabalho científico”, foram divulgados publicamente também com a chancela (o aval) da Unicamp e da Fapesp em suas conclusões. Conclusões que deixaram bastante felizes as poderosas indústrias do amianto e seus lobistas. Já os trabalhadores continuaram a adoecer e a morrer devido a problemas pulmonares relacionados à exposição e à manipulação do cancerígeno amianto.
Punido até pelo CRMEm 2001, a Prefeitura de Paulínia divulgou um relatório sobre os níveis de contaminação de moradores do Recanto dos Pássaros. Eles foram examinados por especialistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) contratados pela prefeitura. Os resultados indicaram que dos 181 moradores do bairro examinados, 86% tinha em seu organismo pelo menos um metal (chumbo ou arsênio) ou organoclorados (os “drins”) acima dos níveis considerados toleráveis. O laudo apontou que 88 adultos e 27 crianças apresentavam um quadro de contaminação crônica.
Conforme o toxicologista Igor Vassilieff, um dos responsáveis pelo laudo, sinais de intoxicação foram encontrados entre habitantes com idade entre 9 meses e 37 anos. Na ocasião, os profissionais recomendaram a remoção imediata dos moradores para evitar que continuassem expostos aos elementos químicos. As pessoas que moravam ou moram no bairro podem ter se contaminado ao beber a água ou usá-la para lavar ou preparar alimentos.
A Shell do Brasil desqualificou os resultados e, na ocasião, informou que não pretendia tomar qualquer iniciativa para a remoção de famílias. O especialista em saúde pública e toxicologia Flávio Zambrone, contratado pela Shell, argumentava que: “O material apresentado é inconsistente e não comprova que qualquer morador tenha sido contaminado” (Correio Braziliense, 25/08/2001).
Em setembro de 2002, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CRM-SP) abriu um processo contra o médico Flávio Zambrone a partir de uma representação da Associação de Moradores do bairro que o acusava de infringir 14 artigos do Código de Ética Médica. Entre as acusações está o fato de que exames médicos patrocinados pela Shell não contemplaram moradores do bairro, foram insuficientes e não abrangentes, já que verificaram a contaminação por apenas duas substâncias, enquanto a Shell, na realidade, manipulou pelo menos 20 na planta industrial.
À época, Flávio Zambrone era professor de Toxicologia da Faculdade de Ciências Medicas da Unicamp.
Relações estranhasSão estas as razões que levam os ex-trabalhadores Shell/Basf, hoje organizados na Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq), e o Sindicato Químicos Unificados a recusarem, de forma definitiva e como instrumento de denúncia, a proposta da Shell para que o caso se encerre com a implantação de um centro de toxicologia na Unicamp.
A Atesq e o Unificados querem o fim da promiscuidade entre os interesses da população e os interesses dos lucros das empresas. Querem que instituições públicas deixem de ser um balcão de negócios, no qual a vida, a saúde, a educação, o transporte, enfim, todos os direitos da sociedade sejam geradores de lucros privados. Em resumo, que deixem de existir estranhas relações como essa da Unicamp com a Shell/Basf e que todos os responsáveis pelas já praticadas ações sejam devidamente julgados e punidos.
(Atesq /
Sindicato dos Químicos Unificados, 20/03/2009)