O Supremo Tribunal Federal (STF) não pode simplesmente ignorar o fato de que índios e não-índios são todos brasileiros e têm assegurada a garantia constitucional de livre locomoção no território nacional em tempo de paz, “podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Esse foi um dos argumentos do ministro Marco Aurélio ao votar pela anulação da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
O julgamento do caso foi retomado nesta quarta-feira (18/3) cedo com um voto minucioso de Marco Aurélio, de 121 páginas. Oito ministros já votaram pela demarcação contínua da área. Em tese, contudo, podem mudar o voto depois das conclusões do ministro.
O voto de Marco Aurélio abordou possivelmente todas as questões envolvidas no conflito. O ministro mostrou omissões processuais na citação das partes interessadas, apontou problemas nos laudos em que se baseou a demarcação da área, alertou para os direitos das pessoas que têm títulos de propriedade na área e lembrou os prejuízos que a demarcação contínua das terras pode trazer à economia do estado.
Marco Aurélio votou pela anulação da Portaria 534/05 do Ministério da Justiça, homologada pelo presidente da República em 15 de abril de 2005, que fez a demarcação contínua das terras da reserva indígena em Roraima. Para o ministro, deve ser feita uma nova ação administrativa demarcatória, na qual seja observada uma série de parâmetros propostos por ele.
Segundo o ministro, antes de demarcar as terras, é preciso ouvir todas as comunidades indígenas, posseiros e titulares de domínio na área. Marco Aurélio também defende que seja feito levantamento antropológico e topográfico para definir a posse indígena, “tendo-se como termo inicial a data da promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os integrantes do grupo interdisciplinar, que deverão subscrever o laudo a ser confeccionado”.
O estado de Roraima e os municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia, que têm a área atingida com a demarcação, também têm de ser consultados no processo de demarcação, de acordo com o voto. O ministro exigiu, ainda, que seja ouvido o Conselho de Defesa Nacional quanto às áreas de fronteira.
Soberania nacional
Para Marco Aurélio, mais do que a marcação de limites de terra, o pano de fundo das ações que discutem a demarcação de terras é a soberania nacional. “Revela-se, portanto, a necessidade de abandonar-se a visão ingênua.”
O ministro citou artigos de juristas como Ives Gandra e Paulo Bonavides, que tratam da tentativa de internacionalização da Amazônia, e frases de chefes de estados estrangeiros, como François Mitterrand, ex-presidente da França, que em 1989 disse: “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”.
O general Augusto Heleno de Freitas, comandante militar da Amazônia, foi lembrado no voto. Marco Aurélio citou frases do militar, entra as quais se destaca o seguinte trecho: “A cobiça internacional não se manifesta por ações explícitas de força. Ela age de forma sub-reptícia, pouco transparente e dissimulada. Fica difícil entender por que pouquíssimas ONGs dedicam-se a socorrer a população nordestina enquanto centenas delas trabalham junto às populações indígenas”.
O ministro concordou com Heleno de Freitas. “Sim, é preocupante haver tantos olhos internacionais direcionados à Amazônia enquanto população carente, como a nordestina, não conta com o apoio desejável”, disse.
Miscigenação nacional
O ministro defendeu que a visão romântica, “calcada em resgate de dívida caduca”, fosse alijada do julgamento. “A demanda dos índios é por postos de saúde, e não pela volta do pajé”, disse.
“É certa a necessidade de interpretação dos dispositivos que conferem proteção aos índios em conjunto com os demais princípios e regras constitucionais, de maneira a favorecer a integração social e a unidade política em todo o território brasileiro. O convívio harmônico dos homens, mesmo ante raças diferentes, presente a natural miscigenação, tem sido, no Brasil, responsável pela inexistência de ambiente belicoso.”
Marco Aurélio ressaltou que, em seu memorial, a União destacou que a Reserva Raposa Serra do Sol corresponde a 7,79% do território do estado de Roraima — quase 12 vezes maior que a área do município de São Paulo. Lembrou, também, que a União admite que a controvérsia envolve, na maior parte, indígenas aculturados e destaca o fato de habitar no território a terceira maior população indígena do país, “produtora de 50 toneladas de milho, 10 toneladas de arroz e 10 toneladas de feijão anuais bem como proprietária de 35.000 cabeças de gado, com venda de 3.000 bezerros ao ano”.
Os dados ajudaram a embasar o argumento do ministro, de que em pleno Século XXI, considerados os avanços culturais, não é razoável cogitar o isolamento da população indígena. “O retrocesso é flagrante, não se coadunando com os interesses maiores de uma nacionalidade integrada”, sustentou.
No voto, Marco Aurélio ressaltou que não é contrário à demarcação de terras indígenas. “Sou favorável à demarcação correta. E esta somente pode ser a resultante de um devido processo legal, mostrando-se imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica — e romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum momento, haver sido habitado exclusivamente por índios. Os dados econômicos apresentados demonstram a importância da área para a economia do Estado, a relevância da presença dos fazendeiros na região.”
Ao concluir sua exposição, que durou cerca de seis horas, o ministro revelou mais uma vez sua mágoa com o fato de seus colegas não terem respeitado o pedido antecipado de vista que fez na sessão do dia 10 de dezembro, quando o julgamento foi suspenso — leia aqui notícia da ConJur a respeito.
Disse Marco Aurélio: “O tema impôs-me uma reflexão maior, em que pese não ter frutificado o pedido antecipado de vista — o qual resultaria no terceiro voto e não no nono — em face da circunstância de os colegas que me antecedem na ordem de votação não haverem consentido. Paciência, o colegiado sempre reserva algumas surpresas. Nem por isso — a documentação o comprova — deixei de debruçar-me sobre a momentosa controvérsia, procedendo como se fosse relator do processo, procedendo como se tivesse que veicular o primeiro voto no caso”.
Discussão em plenário
Depois que Marco Aurélio terminou de votar, o ministro Carlos Britto pediu a palavra para reforçar os argumentos de sua decisão pela demarcação contínua da reserva indígena. Britto disse que os principais obstáculos levantados por Marco Aurélio foram ultrapassados por seu voto e pela exposição do ministro Menezes Direito. E que as questões de "conteúdo periférico" não precisariam ser respondidas.
A afirmação irritou o ministro Marco Aurélio: "Respeite meu voto. Não acho que seja adequado criticar o voto alheio. Vossa Excelência classificou meu voto de periférico, como se eu tivesse aqui delirado". Britto respondeu: "Vossa Excelência se referia a quem quando disse que a questão foi tratada de forma lírica, romântica?". A discussão se seguiu.
Marco — Não se sinta atingido pelo meu voto.
Britto — Eu peço que o senhor ouça minhas razões, já que eu ouvi o senhor por quase seis horas.
Marco — Posso me retirar se o senhor quiser.
Britto — Não. De forma alguma.
Enquanto o ministro Carlos Britto expunha as razões pelas quais mantinha o seu voto, o ministro Marco fazia intervenções. Então, quem se irritou foi Britto.
Britto — Vossa Excelência fica fazendo o contraditório. Estamos em uma espécie de movimento ioiô, de estica e puxa. Deixe-me, por favor, concluir meu raciocínio.
Marco — Por que Vossa Excelência está tão preocupado com o voto discrepante, já que tem o apoio de outros sete ministros? Eu não retruco, não me estendo quando voto. Depois do meu voto, Vossa Excelência pediu a palavra para quê? Para retrucar.
Britto — Não. Não se trata de retrucar. Estou expondo os motivos pelos quais mantenho meu voto. E acho que fiz a leitura correta da questão.
Marco — Ainda bem que Vossa excelência apenas acha.
Britto — Vossa excelência não entendeu meu voto. Estou aqui a confirmar, data vênia, o acerto das posições que sustentei perante a corte. Não há nenhuma contradição no meu voto. Não é romantismo, não é lirismo, é interpretação de direito constitucional positivo.
(Por Rodrigo Haidar, Consultor Jurídico, 19/03/2009)