O Aquífero Guarani, uma das maiores reservas mundiais de água doce, subjacente aos territórios de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, vai ficar impróprio para o consumo humano se nenhuma medida urgente for tomada para frear a poluição dos rios, lagos, arroios, o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas e a exploração excessiva de atividades sócioeconômicas. O desastre ecológico é iminente, tendo em vista que o reservatório chega a abastecer populações inteiras.
À falta de saneamento e consciência ambiental, soma-se o desperdício e as mudanças climáticas, o que pode levar à diminuição do reservatório, privando seu uso pelas futuras gerações.
Essa são algumas advertências feitas por geólogos e engenheiros de diferentes áreas, entre outros especialistas de diversos organismos internacionais, que durante seis anos mapearam as regiões onde se localiza o Aquífero Guarani e realizaram um estudo envolvendo centenas de testes com o solo e com a água extraída das rochas areníticas.
O estudo foi batizado como Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani (SAG) e iniciou em março de 2003, sendo concluído nos primeiros dias do mês passado. Foi organizado pelos governos dos quatro países, supervisionado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e bancado com recursos do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF – Global Environment Facility). O custo total entre as fases de preparação e execução do projeto foi de US$ 26,7 milhões, a metade doada pelo GEF e a outra parte como contrapartida dos governos.
Para a execução dos estudos foram eleitas quatro áreas pilotos identificadas com críticas: nas cidades de Concórdia (Argentina) e Salto (Uruguai), em Itapua, no Paraguai, em Ribeirão Preto (SP) e em Rivera (Uruguai) e Santana do Livramento (Brasil).
"Nessas duas últimas cidades o aqüífero está em regiões de afloramentos e apresenta níveis da água bastante superficiais, o que o torna vulnerável à contaminação. É o caso de Rivera, onde se fez necessário fechar os poços por apresentarem altos índices de nitratos. Em Livramento, apesar da cobertura de saneamento ser similar, não se registrou tal tipo de contaminação", explicou o engenheiro brasileiro Luiz Amore, que chefiou a secretaria-geral do projeto, sediada em Montevidéu, no Uruguai.
"Nessas áreas urbanas, além das atividades potencialmente contaminantes, o uso relevante para abastecimento público, traz problemas relativos ao rebaixamento acentuado dos níveis do Aquífero Guarani e à qualidade da água, devido às crescentes pressões populacionais e uso e ocupação do solo desordenado", ressalta o engenheiro. O projeto mostrou , nesse sentido, que o aqüífero não é um mar de água doce, como chegou a ser difundido mas são como bolsões de água com diferentes características "ora águas quentes, ora acessíveis e vulneráveis, ora muito profundas e protegidas", completa.
Na fronteira seca entre Rivera e Livramento, foram definidas ações para assegurar a qualidade da água muito utilizada para o consumo humano, e por ser uma área de recarregamento do SAG, o aqüífero nesta zona está próximo à superfície e, somado à concentração de atividades, representam ameaça de poluição.
Na cidade paulista de Ribeirão Preto, o Guarani também é a fonte de abastecimento público, por isso foram desenvolvidas políticas urbanas para suprir o uso intenso do recurso e compensar a diminuição da recarga em áreas periféricas.
Em Itapúa, no Paraguai, predomina o uso da água para atividade agrícola. Aqui foram desenvolvidas estratégias para o uso do solo a fim de atender as alterações por desmatamento e desenvolvimento agrícola, visando reduzir os riscos de contaminação por agroquímicos e pesticidas em áreas de recarga.
Na zona transfronteiriça Concórdia, na Argentina, e Salto, Uruguai, as águas termais do aquífero são os mais importantes atrativos turísticos das cidades e, por isso, apresenta riscos de interferência entre poços e esfriamento em uma zona confinada do aquífero.
Legislação tem que prever cobrançaAmore acredita no sucesso do projeto na medida em que se conseguiu colocar na agenda política dos países a questão das águas subterrâneas e, em especial, do Aqüífero Guarani. "Um ponto importante foi a legislação que autoriza o uso (outorga) e até a cobrança, que já ocorre em algumas regiões no Brasil, como nas bacias dos rios Paraíba do Sul e Piracicaba, Capivari e Jundiaí", destaca, acrescentando que o projeto permitiu criar modelos matemáticos que possibilitam prever o comportamento do aqüífero em situações como exploração mais intensa, suscetibilidade à contaminação em áreas próximas da superfície ou uso das águas termais.
Segundo o engenheiro, o projeto cumpriu com seu objetivo de melhorar e ampliar o conhecimento do SAG, permitindo aos especialistas definir parâmetros e um marco regulatório em comum para o uso racional e sustentável das águas do aquífero a fim de garantir essa reserva limpa e na mesma proporção às próximas geração.
"O estudo foi importante porque estabeleceu um marco técnico, legal e institucional para que os países coordenem gestões compartilhadas do manancial, e entre as suas cidades. É preciso pensar globalmente, mas agir localmente, com ações diretas para conscientizar as comunidades sobre a importância de se preservar esse importante manancial de água. As gestões municipais são as responsáveis pela política de uso e ocupação do solo, além de terem relação direta com a proteção das águas subterrâneas", afirma o especialista em Engenharia Ambiental e Sensoriamento Remoto.
Amore adverte, no entanto, que a atual legislação brasileira de recursos hídricos em relação às águas subterrâneas está muito aquém do que seria preciso para sua efetiva proteção. "São raras as iniciativas para a mobilização e educação ambiental que incorporem as águas subterrâneas. Por isso é urgente a inserção da temática águas subterrâneas nos espaços de educação ambiental, difusão de informações e mobilização social.", alerta.
Um mar de água doce, inesgotável ?O Aqüífero Guarani é a principal reserva subterrânea de água da América do Sul e um dos maiores sistemas do mundo, mas não é um mar de água doce inesgotável, como se pensava antes. É água empapada na rocha.
Ocorre numa área de aproximadamente 1,2 milhões km2 na Bacia do Paraná e parte da Bacia do Chaco-Paraná. Pega oito estados brasileiros - Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo -, além de cidades uruguaias, argentinas e paraguaias. Por isso, se diz que é transfronteiriço, mas há controvérsias.
Abrange mais de 500 municípios, onde vivem cerca de 24 milhões de pessoas e outras 70 milhões estão em áreas diretamente influenciadas pelas águas do Guarani. Sua área equivale a dos países da Inglaterra, França e Espanha, juntos.
Por sua porosidade, esse tipo de rocha esponjosa armazena grandes volumes de águas provenientes da chuva, cujos fluxos ocorrem em velocidades muito lentas. Leva décadas para percorrer algumas centenas de metros. A rocha age como um filtro natural. O volume total de água do manancial é de aproximadamente 37 mil km3 – ou 37 trilhões de metros cúbicos –, em grande parte de boa qualidade. Em algumas porções, verifica-se teores elevados de sais, imprórpias para consumo humano e uso na agroindústria.
As formações geológicas que constituem o Guarani se deram há aproximadamente 245 e 144 milhões de anos. São camadas de rochas arenosas, uns chamam de botucatu, outros de taquarembó, dependendo da região. Aliás, botucatu era como chamavam esse aquífero antes de receber a denominação de Aqüífero Gigante do Mercosu e a atual, Guarani, sugerida em 1994 pelo geólogo uruguaio Danilo Anton em homenagem a nação indígena que habitava toda a região. Nas margens do aqüífero, pode-se verificar pedaços do arenito. São os chamados afloramentos.
A espessura das camadas varia de 50 a 800 metros, em profundidades que podem atingir 1.800 metros. Os poços mais profundos encontram águas com temperaturas de até 85oC, que em algumas cidades são resfriadas antes do lançamento na rede de abastecimento.
Outros municípios utilizam as águas termais como atração turística.
O novo mapa básico da área do aquífero articulou as 191 cartas topográficas elaboradas por distintas instituições em um mesmo sistema de projeções geográficas e coordenadas e está disponível na web. Comparando os estados no Brasil, o Mato Grosso do Sul segue sendo o que detém a maior área, cerca de 200 mil km², vindo logo atrás o Rio Grande do Sul, com cerca de 150 mil km².
Resumo das áreas (por país)País/Área estimada no início (km2) % Área atual (km2) % % relação ao país
Argentina / 225.500 19,1 225.118 20,8 8,1
Brasil / 839.800 71 737.084 68 8,7
Paraguai / 71.700 6,1 87.521 8,1 21,5
Uruguai / 45.000 3,8 34.341 3,1 19,5
Total 1.182.000 100 1.084.064 100
(Por Cleber Dioni Tentardini,
Jornal Extra Classe,13/03/2009)