Sob a égide da Unesco, 27 agências da ONU trabalharam nesse documento, publicado a cada três anos sempre antes de cada Fórum. Pela primeira vez, o tom é alarmante. “Apesar do caráter vital da água, o setor sofre de uma falta crônica de interesse político, de uma má gestão, e de falta de investimentos”, afirma Koïchiro Matssura, diretor da Unesco, no preâmbulo ao texto. “É preciso agir com urgência para evitar uma crise global”.
Demografia. O crescimento da população mundial, de 80 milhões de pessoas por ano, aumenta as necessidades em água em 64 bilhões de metros cúbicos a cada ano. Fator agravante: esse crescimento é concentrado nas cidades, cujo fornecimento será um dos maiores desafios no futuro.
Usos. A parte da água potável no consumo doméstico ainda continua baixa. As exigências são maiores para a agricultura, para a produção de energia e para o desenvolvimento econômico. Na questão agrícola, a evolução dos hábitos alimentares pesa fortemente. “O crescimento econômico nos países emergentes leva ao aparecimento de uma classe média consumidora de leite, pão e carne”, destaca o texto. A produção de um quilo de trigo necessita entre 400 e 2.000 litros de água, de acordo com as regiões, ao passo que um quilo de carne necessita entre 1.000 e 20.000 litros.
Indústria. A energia é o segundo setor que mais utiliza água. A luta contra as emissões de gás de efeito estufa estimula o desenvolvimento da hidroeletricidade, que representa hoje 20% da produção elétrica mundial, e os agrocombustíveis. Ora, são necessários 2.500 litros de água para a produção de um litro de combustível “verde”. Um recurso abundante é também indispensável para o resfriamento das centrais térmicas e nucleares. As empresas, em particular nos setores têxtil, eletrônico, agroalimentar, mineiro e metalúrgico, também têm necessidade de grandes quantidades de água para funcionar.
Mudança climática. Ao mesmo tempo, os regimes hidrológicos são desregulados pelo aquecimento global. Os modelos climáticos concordam em prever secas mais longas e inundações mais frequentes. Nas regiões alimentadas por glaciares ou neves, o degelo é mais precoce, disponibilizando a água na primavera e não no verão, quando há maior necessidade.
Ecossistemas degradados. Múltiplas facetas da crise da água são visíveis. Os conflitos entre usuários, as tensões entre países se multiplicam. Os ecossistemas, super-explorados, se degradam. “Em algumas regiões, a redução dos estoques e a poluição atingiram um ponto de não retorno”, afirmam os autores do relatório. Alguns grandes rios, como o Colorado, o Nilo, ou o rio Amarelo, não correm mais ao mar. O desaparecimento das zonas úmidas, a queda dos lençóis freáticos subterrâneos, a poluição pelos dejetos industriais, agrícolas ou urbanos, a proliferação de algas nocivas, não têm somente graves consequências para a biodiversidade, mas elas hipotecam a capacidade dos ecossistemas em fornecer uma água potável às gerações futuras.
Impacto econômico. As secas na Austrália, China, Califórnia, implicam uma limitação da produção agrícola e perdas econômicas. No Quênia, o impacto combinado das secas e das inundações ocorridas entre 1977 e 2000 foi avaliado em 4,8 bilhões de dólares, ou seja, 16% do Produto Interno Bruto (PIB).
Saúde. A crise da água tem consequências sanitárias dramáticas. Nos países em desenvolvimento, 80% das doenças estão ligadas à água. Elas causam 1,7 milhão de mortes por ano. A ausência do acesso a uma água potável de qualidade e, sobretudo, a falta de infra-estrutura de saneamento, estão em xeque. A epidemia do cólera no Zimbábue, que causou mais de 4.000 mortes desde agosto de 2008, dada a ruína da infra-estrutura hídrica do país, é um caso ilustrativo.
Desafio político. “Após décadas de falta de ação, os problemas são enormes e se agravarão caso não forem atacados”, afirma o texto. “Mas se os desafios são grandes, não são insuperáveis”. O primeiro imperativo é parar de pensar o recurso como inesgotável, e refundar uma gestão até aqui “não sustentável e desigual”. É preciso “utilizar melhores o que temos”.
O déficit de financiamento das infra-estruturas (de fornecimento, saneamento ou estocagem) foi considerado durante muito tempo como o principal obstáculo. “Os recursos consagrados à água são minúsculos comparados às somas investidas na luta contra as emissões de gás de efeito estufa ou a crise financeira”, constatam os autores. Segundo eles, “um equilíbrio melhor” deverá ser encontrado entre a luta contra a mudança climática e a adaptação aos seus efeitos.
Entretanto, o que mais faz falta é a tomada de consciência política. “A água deverá estar no centro das políticas agrícolas, energéticas, de saúde, de infra-estruturas, de educação”, afirma Olcay Unver, coordenador do relatório. “Os gestores da água estão convencidos, mas não são eles que tomam as decisões. São os chefes de Estado e de governo que devem se inteirar do assunto”.
(Por Gaëlle Dupont, Le Monde, IHU, 11/03/2009)