A morte chocou o país. Atacado em 24 de junho do ano passado, o jovem Luiz Alex da Silva Lara, de 21 anos, sofreu lacerações profundas, conforme atestam as 113 páginas do resultado da necropsia – um laudo comum costuma ser dez vezes menor. Em uma das coxas, havia 45 lesões. Na cabeça, as orelhas e quase todo o couro cabeludo foram arrancados. Já morto, ele foi arrastado por 65 metros do local no qual fora surpreendido durante o sono. Seu algoz: uma onça-pintada. “Esse comportamento é fora dos padrões da espécie”, adianta o veterinário Ronaldo Gonçalves Morato, chefe do Centro Nacional de Pesquisa para Conservação de Predadores Naturais (Cenap).
Embora encontros fatais entre seres humanos e grandes felinos sejam comuns em países asiáticos e africanos, como Rússia, Nepal, Quênia e Tanzânia, óbitos ocasionados por onças são raros por aqui. “Foi preciso contatar colegas nesses países em busca de informações, pois não tínhamos referências”, diz Rogério Cunha de Paula, biólogo do Cenap. O terceiro maior felino do mundo – atrás apenas do tigre e do leão – costuma avançar com seus mais de 100 quilos de peso sobre pessoas apenas em situações de caça, nas quais o animal, ferido, se volta contra o caçador. Luiz Alex, porém, não estava caçando.
Ele e seu pai, Alonso da Silva Lara, de 54 anos, eram pescadores. Estavam acampados havia dias na beira do rio Paraguai, perto da Estação Ecológica de Taiamã, no Pantanal Mato-Grossense, em busca de iscas para serem vendidas a turistas. Alonso deixara o filho dormindo em sua barraca, por volta das 19 horas. Meia hora depois, ao retornar, chamou por Luiz Alex, mas não obteve resposta.
Ao direcionar a lanterna, só o que pôde ver foi o filho inerte sendo arrastado mata adentro. A maior razão do ataque, ao que tudo indica, é o aumento no nível de aproximação entre pessoas e onças no Pantanal. “Elas podem estar perdendo o medo instintivo que têm do homem. Isso diminui a distância de fuga, o que aumenta a chance de ataque em situação de confronto”, diz o biólogo Peter Crawshaw, doutor pela Universidade da Flórida e maior estudioso brasileiro da espécie.
E esse tipo de convivência é delicado quando se trata de um bicho que tem, em seu cardápio, jacarés e sucuris. “As onças podem matar um cavalo com uma única mordida”, completa Morato. Tanta força e beleza atraem visitantes, o que, por sua vez, estaria levando alguns empreendimentos turísticos a praticarem a ceva, como é chamado o ato ilegal de alimentar onças com carcaças de animais mortos pelo homem. “Há pousadas em Poconé nas quais elas estão viciadas nesse tipo de refeição fácil”, diz Morato.
Desde a década de 1970, com a proibição da caça no Brasil, a espécie parece ter se recuperado no Pantanal. Hoje, tudo leva a crer num aumento no número de indivíduos na planície alagada – no mínimo 4 mil animais –, situação bem melhor que a encontrada na Mata Atlântica, em pontos da Amazônia e na Caatinga, onde sua condição é crítica.
Por isso, o governo federal estuda a implantação de um corredor ecológico para as onças da Caatinga entre os estados da Bahia, de Pernambuco e do Piauí, com cerca de 3 milhões de hectares. Outro corredor deve ser criado no alto rio Paraná. “A ligação entre unidades de conservação é essencial para garantir a variabilidade genética das onças”, explica Crawshaw.
No caso do Pantanal, a estabilidade da espécie nada tem a ver com sua facilidade de predador de bovinos. “Além do fim da caça, há uma nova consciência de preservação, em paralelo ao fortalecimento do turismo”, diz Morato.
“A onça-pintada é o animal que todos querem ver”, completa ele. Resta saber a que distância. Até a década de 1980, as onças-pintadas eram mortas por caçarem bovinos, muitas vezes por peões de fazendas (acima). Um estudo de 2007 do Projeto Gadonça mostra que os felinos respondem por apenas 0,3% das baixas em um rebanho por ano. Em criações perto de áreas de mata, o número é maior: em torno de 20%.
(Por Thiago Medaglia, Revista National Geographic,
Planeta Sustentável, 10/03/2009)