Sob o calor da lona preta, a grama, aos poucos, vai desaparecendo, gasta pelo pisar dos pequenos pés, descalços ou apenas de chinelos, que embaixo da lona passam parte de suas vidas. O mesmo plástico preto que serve de abrigo, em barracos improvisados, também serve de cobertura para a escola, não menos improvisada. No acampamento Filhos de Sepé, em São Gabriel, cerca de 55 crianças em idade escolar têm a lona como escola.
Aos filhos dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o aprendizado é debilitado. Mas as crianças de nada reclamam. Fazem questão de elogiar a escola, mesmo diante da falta de livros, professores qualificados e toda a estrutura de ensino de uma escola regular. Tão itinerante quanto efêmera, a escola, que muda de lugar com os acampamentos, tem missões diferenciadas. As crianças não têm um ensino regular de disciplinas. Aprendem a escrever e a somar, mas também as diferenças entre capitalismo e socialismo, entre invasão e ocupação. São ensinadas a seguirem na busca por terras.
Ao manterem o controle da educação das crianças, os líderes do movimento impedem que os pequenos tenham contato com realidades diferentes das dos acampamentos. Eis o motivo da batalha entre o MST, o Estado e o Ministério Público Estadual (MP), que determinou o fechamento das escolas itinerantes e o encaminhamento das crianças para escolas do Estado. O termo de ajustamento foi assinado entre Estado e MP, mas o MST não aceitou. As crianças seguem sob a lona, em uma escola que, agora, é ilegal.
– Reclamavam que a gente não ensinava ditongo para as crianças. Ensinamos as coisas do nosso jeito, de acordo com a nossa realidade. Essa não é a melhor forma, mas ao menos temos nossos filhos perto de nós – diz o historiador Alberto Bamberg, 35 anos, um dos responsáveis pela escola itinerante em atividade em São Gabriel.
Sem cadastro – Na escola itinerante do acampamento Filhos de Sepé, não há um cadastro com informações das crianças. Segundo os líderes, devido à variação ocupacional. Na última quarta, dois barracos eram usados como escolas. Sob a lona preta, estavam três grupos de crianças, que seriam do 3º ao 5º ano. Cada grupo estudava uma disciplina: português, história e matemática. As aulas são ministradas por três integrantes do acampamento. A maioria não tem qualificação na área.
– Quem sabe um pouco mais dá aulas. Alguns até têm formação, como magistério ou história – disse Neimar do Nascimento dos Santos, 21 anos, que ensinava matemática, mas não tem formação.
Sem notas – Autorizadas em caráter experimental pelo Conselho Estadual de Educação em 1996, as escolas itinerantes nunca foram regularizadas pela Secretaria Estadual de Educação. Também não foram fiscalizadas. Foi então que o Ministério Público determinou seu fechamento. Desde fevereiro, os recursos deixaram de ser repassados pela ONG Instituto Preservar, responsável pela manutenção das escolas. Eram R$ 16 mil mensais para sete itinerantes no Estado. O dinheiro servia para comprar materiais e para pagamento dos professores, que recebiam R$ 570 mensais.
– O problema não é o que está sendo gasto, mas a falta de critérios do que é ensinado – diz a promotora Lisiane Veríssimo da Fonseca, de São Gabriel.
Na escola itinerante, as crianças não recebem notas, mas uma avaliação, que, segundo o MST, está disponível na Escola Base, em Nova Santa Rita. Nela consta, entre outras coisas, se o estudante participou de lutas sociais no período e de discussões políticas.
– Aqui é menos puxado. Lá (na escola tradicional), as provas eram difíceis – disse Katrine Patricia Machado, 11 anos, que cursa a 4ª série na itinerante.
Nas aulas do MST, os livros utilizados são, segundo os líderes, vindos de doação. O MST garante que os 200 dias letivos são cumpridos.
– As aulas da itinerante são todos os dias. Cumprimos a lei, mas também inserimos a criança dentro do espaço dela (o MST) – diz Rudimar Amaro, 28 anos, um dos líderes da itinerante.
Além dos livros didáticos, há outros utilizados. Obras como O Risco dos Trangênicos e Para Entender a Alca estão entre as bases do ensino. Literatura considerada necessária para a formação dos futuros integrantes do MST.
Entenda a pendenga
- Desde 1996, as escolas itinerantes do MST funcionam por meio de uma autorização fornecida pelo Conselho Estadual de Educação nos acampamentos do movimento
- As escolas estavam autorizadas, em caráter experimental, a ministrar cursos de Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA)
- Os professores são escolhidos pelo próprio MST. Boa parte não tem formação profissional na área
- Não há uma grade curricular a ser seguida nas escolas itinerantes. Os livros usados vêm de doação. O MST garante que os 200 dias letivos de aulas são seguidos
- Os alunos da escola itinerante não recebem notas dos professores, mas uma avaliação. O currículo, segundo o MST fica disponível na Escola Base, que centraliza as escolas itinerantes do Estado
- O Ministério Público (MP) alega que as escolas nunca foram regularizadas pelo Conselho Estadual de Educação, que também não controlaria as notas dos estudantes fornecidas pelas escolas
- No começo deste ano, o MP determinou o fechamento das escolas. Um termo de ajustamento foi assinado entre o MP e o Estado, a fim de que as crianças das itinerantes fossem encaminhadas às escolas do Estado
- O MST não aceitou o termo e segue com as crianças nas escolas itinerantes, que deixaram de receber recursos financeiros do Estado
- O MP deu um prazo até dia 18 de março para se manifestar. Se as crianças não forem encaminhadas para as escolas normais, os pais e os líderes do movimento podem ser processados na Justiça por crime de abandono intelectual. A pena pode chegar a um ano de detenção, caso forem condenados
(Diário de Santa Maria, 10/03/2009)