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rppns ambientalistas
2009-03-10
Quando eu e a Elza, minha esposa, décimos comprar a propriedade rural em Guaramirim (SC), em 1994, hoje transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), denominada de RPPN Santuário Rã-bugio, procuramos construir boas relações de amizade com todos os moradores, sendo correspondidos com alguns, e tolerar ao extremo os crimes ambientais para não criarmos problemas.

Tivemos que tolerar os furtos freqüentes de palmito, os caçadores, os traficantes de animais silvestres etc. Lembro-me do dia em que fomos nos apresentar para um dos vizinhos e observei na propriedade dele um viveiro com cerca de 50 saíras-de-sete-cores e saíras-militar e vários alçapões armados para qualquer lado que você olhasse. Obviamente, eles não sabiam que éramos defensores da natureza e fingimos que considerávamos normal aquela situação.

Não agüentei ficar observando a agonia daquelas saíras se debatendo no viveiro e estraguei tudo: acabei me revelando ao final da visita. Com muita delicadeza, implorei para soltar as saíras e parar com a captura. Surpreso e meio desconfiado o vizinho respondeu: “Tá bom, o senhor tem razão, no Natal vou soltar todas”. No Natal? É que no Natal, dali a duas semanas, estava programada a vinda do filho de Joinville, que levaria as saíras para atender as encomendas naquela cidade. Eu fiquei sabendo disto depois

A nossa presença lá trouxe, com certeza, muita paz para a natureza. Logo após nossa chegada e a revelação, que não conseguimos esconder, de que tínhamos outros valores e defendíamos a natureza fez cessar o intenso movimento de caminhões com lenha nativa, carvão e madeira, os traficantes de animais silvestres (uma motociclista passava com freqüência com uma pilha de gaiolas e alçapões na garupa) e também silenciaram as motosserras. Chegamos a testemunhar toda esta movimentação durante as primeiras semanas que fincamos os pés lá, mas desapareceu subitamente logo após eu ter acabado com o tiroteio para matar as marrequinhas selvagens (Dendrocygna viduata).

Todos os sábados, na parte da tarde, vinha um grupo de pessoas de Jaraguá do Sul (incluindo até empresários), em vários carros, e promoviam um grande tiroteio para matança de marrequinhas selvagens que habitam as imensas lagoas e banhados dos agricultores. Era um horror.

Certo dia, ao ouvir os tiros incessantes, eu não resisti e fui até lá, só de shorts e camiseta. Diante de uns 20 caras armados até os dentes eu disse: “mais um tiro aqui e eu vou chamar a polícia e colocar todos vocês na cadeia!”. Eu lembro da cena: os caras de cabeça abaixada e com as duas mãos na ponta do cano da espingarda com a coronha apoiada no solo, à frente, sem dizer uma só palavra, só me ouvindo falar. O mais importante é que eles respeitaram e nunca mais apareceram. Depois, descobri que tinha vizinhos que também abatiam as marrequinhas com tiros e passaram a mudar o método de captura: armando anzóis com milho. Matavam até as fêmeas no ninho (as mamães não fogem quando estão chocando).

Pagamos um preço alto demais por devolver um pouco de paz para a natureza. Na verdade, nunca chegamos a denunciar ninguém pelos crimes ambientais, mas as hostilidades aumentavam a cada dia e o furto de palmito em nossa propriedade também não cessava. A coisa ferveu após a fiscalização ter pego em flagrante um grande desmatamento em áreas de restinga de interior (mata virgem), numa fazenda nas proximidades. Funcionários da fazenda e o capataz eram nossos vizinhos. Eu fui acusado de ser o denunciante porque havia visitado a fazenda (para conhecer aquele ecossistema) uns três dias antes de a fiscalização baixar lá.

Praticavam tiro ao alvo com revólveres aos sábados e domingos de manhã numa casa ao lado da nossa (uns 50 metros). Nas madrugadas de sábado, paravam carros em frente de casa que buzinavam e os ocupantes faziam xingamentos. Eu lembro de um tatu que resolver viver durante meses no entorno de casa e às vezes freqüentava até a rua em frente. Já tinha virado mascote de todo mundo. Certo dia, encontramos o casco dele jogado na nossa calçada. Foi assado, comido e ainda fizeram a sacanagem de jogar o casco na nossa calçada para provocar.

Certa vez, num sábado de manhã, ao retornar do meio da mata, onde fui fotografar anfíbios, vejo uma viatura da polícia militar em frente de nossa casa. A Elza estava atendendo. Os policiais revelaram que foram acionados por uma moradora, muito desesperada, dizendo que eu estava querendo explodir a localidade inteira com uma poderosa bomba.

A Elza, que sempre é muito calma, ficou furiosa naquele dia e exigiu que policiais revelassem quem foi que aplicou este trote e pediu para eles trouxessem esta pessoa diante de nós. Os policiais perceberam a verdade e foram buscá-la. Era uma moradora, a mulher de um dos funcionários da fazenda. Mas junto com ela vieram umas 30 pessoas, incluindo a família inteira do sujeito das saíras e dos principais suspeitos de furtarem nossos palmitos. Então, a Elza perguntou? Que mal fizemos a vocês? Após um longo silêncio, um deles respondeu: “Entregam todo mundo para a Polícia Ambiental” (que é uma divisão especializada da própria polícia militar). Espero que se um dia este pessoal precisar realmente da ajuda da polícia, ela tenha condições de atender tão prontamente como naquele dia.

Após a polícia ter ido embora eles fizeram questão de passar em frente de casa dando gargalhadas, achando que tinham conseguido nos intimidar finalmente. Mas eles não sabiam que isso até nos estimulava a desenvolver com mais empenho ainda nosso projeto de educação ambiental para conscientização com as crianças e adolescentes. No meio de toda esta hostilidade, atendíamos 80 estudantes por dia nas trilhas interpretativas da RPPN. Eles atacavam mais nos finais de semana, quando eu estava lá.

Creio que as escolas mandando todos estes alunos lá em casa para a gente ensinar que a natureza precisa ser preservada incomodava muito. Então, decidiram ser mais ousados. Tiveram a coragem de fazer um abaixo-assinado e entregaram no Fórum de Justiça da comarca de Guaramirim, com o propósito de nos expulsar dali, por meio da justiça. A imagem do cabeçalho pode ser vista neste artigo, cuja cópia eu obtive do próprio Fórum. Quem confeccionou este cabeçalho e coletou as assinaturas foi uma professora da rede municipal de ensino de Jaraguá do Sul (SC), filha do funcionário da fazenda e da moradora que deu o trote na polícia militar (da bomba), que eu mencionei acima.

O mais chocante de tudo, é que nós conhecíamos apenas cinco das 45 pessoas que assinaram. Estávamos incomodando as pessoas que nem conhecíamos e nem elas reciprocamente. Depois, descobrimos que estas pessoas tinham algo em comum: quase todas eram infratores das leis ambientais (infratores e seus familiares), foram processados e multados antes ou depois de terem assinado a lista. Teve um que foi pego por furto de palmito em outra localidade, duas semanas após ter assinado. Era reincidente e tinha uma fábrica clandestina de palmito, onde usava água contaminada de esgoto doméstico (sanitário) para o preparo dos vidros. Como tiveram dificuldade em conseguir as assinaturas na localidade (a maioria se recusou a assinar) foram buscá-las até em outro município.

É muito triste o fato que não tínhamos dado motivo para tanto ódio, pois até aquele momento nunca denunciamos ninguém pelos crimes ambientais. Os fiscais comentam que quando vão fazer a autuação, a primeira pergunta do infrator é sobre quem lhe denunciou. Numa das autuações de um loteamento irregular na nossa localidade, o infrator fez a seguinte pergunta para a fiscalização: “Quem me denunciou foi aquele cara das formigas?” No início, foi assim que eu fiquei conhecido após ter dito para alguém que as formigas em áreas preservadas não causam problemas, que são importantes e não se deve matá-las (com veneno). Esta declaração em defesa das formigas arruinou minha reputação.
 
Por falar em reputação, nossas placas de sinalização para indicar o acesso à RPPN Santuário Rã-bugio e facilitar a vida dos motoristas das centenas de ônibus com estudantes e carros particulares que atendemos eram frequentemente depredadas. Não duravam nem uma semana. E eram placas bem caras e bem instaladas em vários cruzamentos. E uma placa grande na BR-280 que indicava a entrada tinha ao lado uma placa para indicar também o acesso a uma casa de prostituição (boate), que são muito comuns ali. A nossa placa era apedrejada, arrebentada e derrubada, mas a placa da boate, não. Permanece intacta até hoje.

Nesta boate já ocorrem assassinatos, flagraram várias vezes prostituição infantil, drogas e só foi fechada recentemente após uma grande apreensão de drogas. Obviamente que nunca passou pela cabeça de alguém fazer um abaixo-assinado para fechá-la. Isto a sociedade tolera, mas não uma RPPN que recebe estudantes para aprenderem a valorizar a natureza.

Após recolocarmos oito vezes as cinco placas, desistimos delas As professoras e os motoristas geralmente reclamam muito da dificuldade de achar o caminho e sugerem: “Por que vocês não colocam placas para indicar o caminho?” Temos até constrangimento de contar a verdade sobre a reputação de quem defende a natureza e a nossa resposta costuma ser: “Nossa! Boa idéia! Nem tínhamos pensado nisso ainda”. Só falta eles dizerem: “Pô, até a boate que nem funciona mais tem placa...”.

(O Eco, 10/03/2009)

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