Parece inacreditável, mas não é. Como noticiou este jornal (27/2), embora seja um dos países com maior possibilidade de ter uma matriz energética relativamente limpa e renovável, o Brasil "recorre à energia suja" em seu Plano Decenal de Expansão de Energia. Dos 55 mil MW de nova potência previstos nesse documento, nada menos que 20,8 mil MW (quase 40%) virá de fontes térmicas, aí incluídas as usinas a gás, carvão, diesel, óleo combustível ou biomassa, além das nucleares; até 2017 serão 68 novas unidades movidas a combustíveis fósseis, com 15,44 mil MW; e as emissões na área passarão de 14,43 milhões de toneladas anuais para 39,3 milhões de toneladas - na hora em que o mundo, assustado com as mudanças climáticas, esperneia em toda parte para reduzir as emissões. Não por acaso, o plano de expansão fez pipocarem críticas de toda parte, que exigem mais prazo de discussão e mudança de critérios - das organizações não-governamentais; do coordenador do Fórum Brasileiro do Clima, professor Pinguelli Rosa ("estamos na contramão da História"); da ex-ministra Marina Silva; do especialista em energia professor Célio Berman, da USP; da secretária do Clima no Ministério do Meio Ambiente; e de várias outras personalidades.
Mesmo com a implantação das usinas do Rio Madeira, já em curso, e de Belo Monte (Rio Xingu), a participação das hidrelétricas na matriz energética cairá de 85,9% para 75,9% com a expansão da potência instalada, dos atuais cerca de 100 mil MW para 154,7 mil MW (mais 28,9 mil MW em 71 usinas hidrelétricas), e com investimentos de R$ 181 bilhões no setor elétrico em dez anos. E tudo isso no momento em que especialistas e o Tribunal de Contas da União dizem que o Brasil perde pelo menos 17% da energia que gera, principalmente nas linhas de transmissão e distribuição.
É inevitável que diante desse quadro e desses números a memória dê um salto de quase 20 anos para trás, quando foi contratado pela Eletrobrás - para analisar o plano decenal de expansão, que previa mais do que dobrar a potência instalada, chegar a mais de 100 mil MW - um consultor do Banco Mundial, Howard Geller. Este opinou que o plano não fazia sentido: a demanda não cresceria tanto (em dezembro de 2008 o consumo efetivo não precisou nem de 50 mil MW médios) e para atender ao eventual aumento do consumo seria muito mais barato investir em redução/eliminação das perdas do que na construção de novas usinas (como seria ainda hoje). Claro que seu parecer foi jogado no fundo de uma gaveta.
Agora, de certa forma, repete-se o quadro. Argumenta o Ministério de Minas e Energia que o consumo per capita no País aumentará 45% até 2017. E pretende atendê-lo em boa parte com "energia suja", como mostraram vários depoimentos na recente audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal para debate do Plano Decenal, segundo o relato das organizações não-governamentais (www.fboms.org.br). A procuradora Sandra Cureau, por exemplo, mostrou a interferência de 15 das novas unidades hidrelétricas em unidades de conservação e terras indígenas, o número de pessoas afetadas pelos 71 projetos nessa área (cerca de 90 mil), o aumento das emissões de gases nessas usinas (178%) e o quadro preocupante: enquanto as usinas eólicas passarão de 0,3 para 0,9% da potência instalada e as biomassas passarão a responder por 2,7% (hoje, 1%), as usinas térmicas aumentarão sua participação de 0,95 para 5,7% (mais de 500%) - quando mostrou este jornal (1º/1) que os ventos poderiam atender a pelo menos 60% de todo o consumo nacional de energia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), já que em mais de 71 mil km2 do território nacional a velocidade dos ventos é adequada. Não por acaso, Europa, Ásia e Estados Unidos estão investindo pesadamente nessa área (42% da nova geração nos EUA) e na energia solar.
Na audiência pública mencionada, perguntou o professor Célio Berman, da USP: energia para que e para quem se planeja? A seu ver, grande parte da expansão, principalmente com as hidrelétricas amazônicas, destina-se a atender ao mercado internacional, não a necessidades internas (já que grande parte do consumo ficará por conta das exportadoras de eletrointensivos - alumínio e gusa, especialmente; esse setor já responde por cerca de 30% de todo o consumo de energia no País, com altos subsídios, pagos pela sociedade toda). "Temos que redefinir o padrão de produção e consumo", disse ele. "É uma hipocrisia dos países ricos quererem impor esses padrões" (segundo os relatórios do Pnud/ONU, esses países transferem esse tipo de produção que não lhes convém para outros países, que arcam com os custos ambientais e sociais, sem nenhuma compensação). E, na sua opinião, no caso do atual Plano Decenal, não se deve ir em frente sem ouvir a sociedade e as universidades. Na mesma direção se manifestou o professor Carlos Vainer, da UFRJ, para quem o Plano Decenal "mostra uma opção política: a submissão ao mercado", inclusive o dos países desenvolvidos - enquanto "aumenta nossa pegada ecológica".
Críticas semelhantes, em outros fóruns, vieram do pesquisador Philip Fearnside (Instituto de Pesquisas da Amazônia), que demonstra a emissão de gases pelos reservatórios de hidrelétricas, os problemas com abertura e pavimentação de rodovias na Amazônia, a falta de "transversalidade" nas políticas governamentais. Do bispo dom Erwin Krautler ("é um crime enorme o que se está pretendendo fazer com a Hidrelétrica de Belo Monte"). Dos especialistas em energia Joaquim Francisco de Carvalho e Ildo Sauer, principalmente quanto à implantação de usinas nucleares e movidas a carvão - deixando de lado as eólicas.
Por tudo isso e muito mais, não faz sentido que o Plano Decenal de Expansão de Energia seja levado adiante pelo governo federal nos ternos em que está. A sociedade e o saber técnico precisam ser respeitados.
(Por Washington Novaes é jornalista,
Estadão, 06/03/2009)
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