Parte fundamental para o resgate de pessoas submetidas ao trabalho escravo, a participação da Polícia Federal (PF) nas operações do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) vem sendo alvo de debates internos no governo federal desde o final de 2008.
Segundo dados do MTE, entre setembro de 2008 a janeiro de 2009, seis ações do grupo móvel - num total de 23 - foram acompanhadas pela PRF, e não pela PF. Os policiais rodoviários são convocados sob regime de urgência, em ações nas quais há risco de se perder o flagrante. Nesse período, a PF não disponibilizou agentes de seu efetivo em sete ocasiões.
Em dezembro de 2008, após uma negativa "verbal" da PF, não houve tempo hábil para solicitar o apoio da PRF e duas operações foram canceladas. "A gente nunca tem o número ideal de pessoas para dar conta de toda a demanda", afirma Ruth Vilela, chefe da SIT, dentro do MTE.
Ruth salienta que as equipes executam operações de risco. "O não comprometimento da PF implica necessariamente na não-realização das operações planejadas", lamenta, citando possíveis comprometimentos nas metas anuais do grupo móvel de fiscalização.
A parceria entre PF e MTE existe desde 1995, quando o grupo móvel foi criado. Coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), as equipes são formadas por auditores fiscais do MTE, procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) e policiais - geralmente da PF ou da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Ao todo, mais de 30 mil trabalhadores já foram libertados.
Reforço
A própria PF classifica o ano de 2007 como o mais "caótico" em relação ao combate ao trabalho escravo. Estimativas do órgão apontam que cerca de 80% dos pedidos do grupo móvel foram negados. A principal causa apontada para o esvaziamento foi a ampla mobilização de agentes para os Jogos Pan-Americanos, realizados no Rio de Janeiro.
Segundo dados da PF, porém, em 2008 apenas 2 pedidos oficiais foram negados. Há uma possível justificativa para o descompasso estatístico. O MTE realiza os pedidos por ofício. No entanto, algumas negativas da PF teriam sido feitas por telefone. Segundo a pasta do Trabalho, os pedidos são encaminhados com 10 a 15 dias de antecedência das operações.
O diretor-executivo da PF, delegado Luiz Pontel de Souza, reconhece a existência de uma demanda crescente por policiais nas Superintendências Regionais de Trabalho e Emprego (SRTEs). "O que pode estar acontecendo (sobre o aumento das reclamações) é a questão das ações nas delegacias. Há uma demanda grande nas delegacias regionais do trabalho", explica. Luiz Pontel ocupa o segundo posto mais importante na hierarquia da PF.
Segundo ele, a PF já providenciou as medidas para solucionar os problemas. Um contingente de 420 agentes tomaram posse em janeiro deste ano. "Uma das medidas que implementamos foi a distribuição desse pessoal da academia, que foi canalizado para a Região Norte, fortalecendo as ações operacionais dos Estados", diz o diretor-executivo da PF.
Entre outras funções, os novos agentes podem ser mobilizados para a fiscalização contra o trabalho escravo, desenvolvendo ações conjuntas nas SRTEs. "Queremos crer que seja suficiente para atender a demanda", afirma Luiz Pontel. A PF tem adotado a política de não lotar agentes no órgão central, responsável pela coordenação e controle das atividades.
Prioridade
Nos últimos anos, a PF apostou em grandes operações no país, como a Satiagraha, Sanguessuga, Hurricane e Navalha, que aumentaram a visibilidade da organização e mobilizaram amplos setores da sociedade. Essas "mega-ações" focaram na investigação de crimes financeiros, lavagem internacional de dinheiro e combate ao tráfico de drogas, numa tentativa de desmantelar redes de corrupção em setores públicos e privados.
O delegado Luiz Pontel de Souza garante que o esforço no sentido de combate ao trabalho escravo também é um tema prioritário para a cúpula da PF. "Identificamos que a grande demanda vem sobretudo das regiões Norte e Nordeste, em questões relacionadas ao desmatamento, trabalho em carvoaria e na lavoura da cana-de-açúcar", explica.
O Serviço de Repressão ao Trabalho Forçado (Setraf) é o grupo especializado da PF no combate ao trabalho escravo no país. Em 2008, a Setraf teve uma mudança estrutural. O serviço migrou da Divisão de Assuntos Sociais e Políticos para a Divisão de Direitos Humanos da organização. A equipe é formada por oito policiais fixos. "Temos uma capacidade operacional muito maior do que isso", garante Luiz Pontel.
Coordenado pela delegada Paula Dora desde fevereiro de 2008, o grupo consegue atender quatro operações do grupo móvel em média por mês - que mobilizam um total de 24 policiais. Além disso, a Setraf promove treinamento de pessoal. "A formação e a qualificação dos agentes são as prioridades em 2009", diz Paula Dora. Cinco cursos sobre trabalho escravo, com 80 policias cada, estão previstos para este ano.
Momento delicado
A Repórter Brasil apurou que setores da própria PF reconhecem que o atual momento é delicado. A situação não está totalmente normalizada. A avaliação interna é de que a organização atende "minimamente" a requisação de servidores. "Nós só apagamos incêndio", admitiu um delegado.
Outra possível causa apontada para explicar a baixa mobilização dos agentes seria um antigo pensamento difundido em setores da PF - segundo o qual os trabalhos de acompanhamento e segurança seriam uma tarefa menor, de "segunda linha". Luiz Pontel descarta essa hipótese: "O treinamento tem focado na questão do acompanhamento, que trabalha com a segurança, e no enfrentamento, com a análise criminal".
O diretor-executivo também garante que a convocação da PRF em algumas operações não cria insatisfação entre os policias federais. Ressalta, porém, que cada organização têm o seu papel determinado. "Temos funções específicas. O apoio da PRF deve ser feito, respeitando as devidas atribuições".
No lado da PF, também há críticas sobre a coordenação dos trabalhos por parte do MTE. Embora o canal de diálogo entre as instituições permaneça aberto, os delegados reclamam que o MTE não consegue encaminhar as denúncias com uma antecedência mínima para o planejamento policial.
Ruth Vilela reconhece que a PF pode ter se sentido "um pouco à sombra" em relação aos órgãos envolvidos no grupo móvel, resultando num possível "mal-estar". "As operações levam muito o nome do MTE", admite. "Mas nossa parte é trabalhista. Não mexemos com o criminal. Isso é papel da polícia, do Ministério Público Federal (MPF) e do Judiciário".
Parceria
Segundo Ruth, a relação entre PF e grupo móvel sempre foi marcada por "altos e baixos". Apesar dos obstáculos, ela reafirma a PF como a principal aliada nas operações. "Historicamente, a PF tem sido nossa parceira constante no combate ao trabalho escravo. É a principal e mais antiga parceria", ressalta. "Há mais coisas positivas e negativas no saldo histórico".
A própria PF tentou aperfeiçoar sua atuação ao longo do tempo. Inicialmente, a função dos agentes no grupo móvel era direcionada exclusivamente à segurança das equipes. Nos últimos anos, porém, há uma percepção de que a presença de delegados é essencial para o órgão exercer um papel efetivo como polícia jurídica. Com o olhar do investigador, o objetivo é garantir um melhor desempenho no levantamento das provas.
Uma das funções da PF é abrir inquéritos e, se necessário, prender os culpados quando confirmado o flagrante de crime nas ações do grupo móvel. Para exercer melhor essa responsabilidade, a PF pretende rever o convênio de 1994, que estabeleceu a parceria com o MTE.
Luiz Pontel afirma que o documento está "defasado". O acordo foi firmado antes da criação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e dos dois Planos Nacionais. O convênio não explicita, por exemplo, a atribuição de ato de Polícia Judiciária à PF. "Nós temos acompanhado a atuação da PF no grupo móvel no sentido de tomar providência de polícia judiciária. Não só com acompanhamento e segurança, mas também com inquérito policial".
Uma reunião entre a PF e o MTE deve acontecer na próxima semana para discutir o assunto. "A revisão do convênio é uma sinalização da PF que teremos tranquilidade e um planejamento de longo prazo", acredita Ruth.
Plano Nacional
A PF, contudo, não está conseguindo cumprir algumas das metas estipuladas pelo 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, aprovado em abril de 2008. O documento, elaborado pela Conatrae, apresenta ações para prevenir, reprimir e punir esse crime. O plano representa uma ampla atualização da primeira versão, lançada em março de 2003.
Ao todo, 66 metas foram assumidas por diversos órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de entidades da sociedade civil e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além da questão da Polícia Judiciária (com a presença de pelo menos um delegado e agentes necessários em cada ação), o 2º Plano Nacional prevê, no curto prazo, a autonomia financeira da PF e da PRF nas ações do grupo móvel. O texto lembra que é necessário "garantir recursos orçamentários para custeio de diárias e locomoção dos delegados, agentes policiais federais e policias rodoviários federais, de forma a viabilizar a participação do MJ nas diligências de inspeção de trabalho escravo". Atualmente, esses gastos são pagos pelo MTE.
O 2º Plano Nacional prevê ainda um projeto de emenda constitucional para fortalecer a integração entre as ações da PF e da PRF para instruir ações penais, trabalhistas e civis. Além disso, o documento também orienta o investimento na formação e capacitação dos agentes envolvidos nas operações. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 68,4% das metas do primeiro plano foram total ou parcialmente atingidas.
Entre setembro de 2008 a janeiro de 2009, seis ações do grupo móvel - num total de 23 - foram acompanhadas pela Polícia Rodoviária Federal. Polícia Federal anuncia reforços nos estados e reafirma prioridade à questão
(Por Maurício Reimberg,
Repórter Brasil, 06/03/2009)