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parque estadual do jalapão
2009-03-03
Poucos anos atrás, um missionário que trocou o Rio de Janeiro pelo deserto do Jalapão, com seu caminhãozinho quebrado, passou três dias e três noites à base de biscoito cream cracker em uma das estradas que dão acesso à cidade de Mateiros. Ele não esperava socorro especializado. Esperava que alguma alma, além da dele, passasse. Sobreviveu graças à água abundante que brota em uma das maiores extensões de Cerrado do país, numa região esquecida entre o Tocantins, a Bahia, o Piauí e o Maranhão. Por lá, com a densidade demográfica na casa dos 0,2 habitantes por quilômetro quadrado, os dois milhões de hectares de natureza sob proteção legal resultam em conservação de fato.

Naquela época, os areões eram um duro empecilho para que chegassem aos 1.800 moradores de Mateiros itens básicos como combustível, alimento ou transporte para doentes em centenas de quilômetros de terra. Tamanha dificuldade no coração do Brasil hoje só atrai visitantes devidamente equipados com veículos 4x4. Mas, agora, os grandes perrengues restringem-se mais aos dias de muita chuva, como se viu neste último mês de fevereiro. Até meados do ano passado, o governo do Tocantins não demonstrava interesse em melhorar os acessos a uma das regiões mais extraordinárias do Cerrado brasileiro. Mas tudo mudou quando conveio permitir trânsito de carretas de equipamentos e suprimentos durante as gravações do Survivor, reality show norte-americano campeão de audiência, que escolheu o Jalapão como cenário entre setembro e dezembro de 2008.

O set de filmagem foi aberto à base de desmate às margens do rio Novo, no Parque Estadual do Jalapão, que tem 158 mil hectares. Novas estradas, pista de pouso, uma cidade inteira foi erguida. Tem gente em Mateiros que reclama, pois nem nos mercadinhos locais os americanos fizeram compras. Traziam Coca-cola, tudo de fora. Também pudera. Não há quase serviços a serem oferecidos aos visitantes, americanos ou não, nessa parte do país. Doentes precisam ser transportados de favor nas caminhonetes do poder municipal, já que não existem linhas diárias de ônibus, apenas um microônibus que passa duas vezes na semana a partir da capital tocantinense, a 350 quilômetros.

A Internet é discada, e só tem na prefeitura. A maioria dos restaurantes são casas dos moradores, que servem se o turista encomendar com antecedência. Quartos em pousadas são escassos. E como quem chega geralmente está em grupo, a chance de algum desavisado ficar sem leito é relativamente grande. Posto de gasolina só tem um, e traz combustível da Bahia, de onde se percorre “apenas” 80 quilômetros de terra. Se viesse de Palmas (TO), seriam pelo menos 240 quilômetros sem asfalto. Frutas, legumes e verduras são itens de luxo. Caros, viajam milhares de quilômetros e quase nada é produzido localmente.

Vereador complementa renda vendendo artesanato de capim-dourado. O extrativismo representa cerca de 40% da economia de Mateiros, de acordo com a prefeitura.

Numa cidade tão carente de recursos, a sensação é de satisfação com a passagem relâmpago de tanto aparato estrangeiro no comércio. Em Mateiros, a renda média da população é garantida por causa de empregos na prefeitura e programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família, e estaduais, como o Pioneiros Mirins, que dão 45 reais por aluno matriculado na rede escolar. De um mês para o outro, quem podia lavar roupa para fora passou a ganhar mais de dois mil reais, um tradutor beirava os 10 mil. “Eles nos deram emprego, quem é que pode reclamar disso?”, questiona o vereador Otalício Castro da Silva, que vende artesanatos de capim-dourado propagandeando o menor preço da região.

Dizem na cidade que os salários de quem foi empregado temporariamente nas gravações variavam de seis a onze mil reais. Isso deve explicar a grande quantidade de casas em construção, dois meses depois que tudo voltou ao normal. As estradas também resistiram, pelo menos até as próximas chuvas, mas tantas outras benesses pintadas pelo governo durante das gravações agora não estão mais tão visíveis.

Mateiros tem apenas parte da rua principal pavimentada. Se o município oferece muito ao ostentar as exuberantes serras do Jalapão, na zona urbana ocupada por apenas 850 pessoas, a estrutura para receber turistas é precária. (Foto: Andreia Fanzeres)
 
Jovenice dos Santos Alecrim Cardoso, secretária de administração da prefeitura de Mateiros, critica a maneira com que a produção do programa se aproveitou da região. “A comunidade não sabe nem falar quem são esses americanos. Tudo foi costurado via governo do estado. Eles chegaram, não deram satisfação nenhuma e deixaram rastro de degradação na margem do rio Novo. Eles fizeram tudo, ganharam dinheiro em cima da gente e não sabemos de nada”, reclama.

Em que pesem as palavras da secretária, não dá para culpar os estrangeiros por toda degradação visível na região. Nas proximidades das dunas, uma das principais atrações do Parque Estadual do Jalapão, a falta de manutenção e definição de um caminho único nos oito quilômetros que separam a estrada principal das montanhas de areia, permite que os visitantes criem novas trilhas cada vez que passam. As erosões não tardam e as marcas permanecem por anos a fio, podendo ser vistas até por imagens de satélite.

Quem trabalha com turismo no local também só viu desvantagens na passagem da equipe de gravação. Belêco, guia conhecido na cidade de Ponte Alta do Tocantins, lembra que por três meses esteve impedido de levar seus grupos para as famosas dunas do Jalapão. “Tinha segurança armado e não nos diziam nada”, desabafa o guia, que mantém um bar e serve um saboroso feijão tropeiro com espetinho, uma das únicas alternativas de alimentação nesta cidade que também pertence à região do Jalapão. 

Extrativismo dourado
A simplicidade da vida no Jalapão beira a precariedade em muitos sentidos. Todo o isolamento, no entanto, também fez aflorar a criatividade. Em praticamente todas as famílias da região há quem saiba confeccionar artesanatos de capim-dourado, encontrado também em outros interiores, embora no Jalapão tenha ganhado notoriedade. Cada porta ou varanda que se veja exibe algum cartaz sobre esta arte. Pelas contas da prefeitura de Mateiros, a venda do artesanato responde por 40% da economia local.

Segundo informações do plano de manejo do Parque Estadual do Jalapão, cerca de 560 pessoas vivem hoje dentro dos limites da unidade de conservação. Mas mesmo quem está fora costuma frequentar as áreas protegidas para o extrativismo do capim. A atividade é regulada pelo governo do Tocantins, que emite carteiras especiais a quem pertença a associações de artesãos. Com a medida, desde 2007 o Naturatins, órgão estadual de meio ambiente, permite aos licenciados a extração de capim-dourado entre os dias 20 de setembro e 30 de novembro, recomendando que no momento da colheita as flores sejam cortadas da ponta do capim e deixadas nos campos úmidos, para que novas plantas surjam no mesmo local na temporada seguinte.
 
Segundo a assessoria do Naturatins, o governo tocantinense não considera população tradicional quem colete capim-dourado na região. Entre os extrativistas, boa parte pertence a comunidades quilombolas já reconhecidas pela Fundação Palmares. A mais famosa é a comunidade de Mumbuca, com aproximadamente 200 moradores, entre adultos e crianças, descendentes de ex-escravos vindos da Bahia. Seu pleito territorial pretende morder uma parte do parque do Jalapão, mas os moradores não sabem precisar quanto nem em que etapa se encontra o processo de titularização. A visita ao Mumbuca é roteiro indicado pelos guias de turismo. Depois de abrir porteiras e trafegar por 35 quilômetros a partir da cidade de Mateiros, sempre por estradas de terra e areia fofa em alguns trechos, os moradores dão as boas vindas para qualquer estranho. “Turista aqui aparece sempre, não importa a época”, atesta dona Maureni Matos.

Isso só torna ainda mais evidente a importância do fluxo de turistas para o sustento desta e de outras comunidades do Jalapão. No Mumbuca, as crianças cantam música, declamam poesias, os adultos falam sobre o capim-dourado e garantem que a arte, hoje difundida, surgiu ali décadas atrás. Com toda essa recepção, o preço do artesanato é o menor dos detalhes.

(O Eco, 02/03/2009)

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