Relembrando alguns episódios de sua infância com a Irmã e sua irmã Dorothy, David Stang, em entrevista exclusiva por e-mail à página IHU On-Line, testemunha toda a admiração pela vida e pela entrega de Dorothy, derramando seu sangue “que corre nas terras brasileiras que ela tanto amou, levantando-se em nome dos que não têm direito e em nome da Floresta Amazônica”.
Ex-missionário católico no Quênia e na Tanzânia, e hoje residente no Colorado, EUA, David Stang critica ainda a justiça e alguns setores da imprensa brasileira, por seu preconceito em retratar sua irmã como uma revolucionária e traficante de armas, uma “agente norte-americana” – sem levar em consideração a sua cidadania brasileira e o seu trabalho de mais de 30 anos no Brasil – e por insultar a sua fé católica e “a bela e simples cruz católica que ela sempre trazia ao redor de seu pescoço”. E afirma que a família Stang ainda luta para que o caso seja federalizado.
Mas muito além dos limites da justiça terrena, David Stang relata a sua esperança naquilo que sua irmã, com o seu martírio, plantou na sociedade e na Igreja brasileiras. “Nós dois tínhamos o desejo de ajudar os pobres, os desejos do Vaticano II de que abríssemos os nossos corações às pessoas e descobríssemos com elas as suas necessidades”, afirma. “Ambos sentíamos o Espírito Santo dentro de nós e o Reino de Deus em nossos corações. Com a grandeza de Deus dentro de nós, não tínhamos por que ter medo”.
E é daí que surge a sua convicção em afirmar que sua Irmã Dorothy o “encorajou a estar vivo” e a dizer, sem hesitar, que Dorothy é uma mártir, uma profeta, uma mística e uma santa, tão proclamada pelo povo.
IHU On-Line – Quatro anos depois do assassinato da Irmã Dorothy, como é possível avaliar o legado que ela deixou com relação à defesa da ecologia e dos direitos humanos?David Stang – Os dois Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) são legados de Dorothy. Esses PDSs estão vivos e saudáveis na área de Anapu. Seus agricultores estão plantando, colhendo e vendendo sua produção contra as ameaças dos fazendeiros e dos madeireiros ilegais locais. O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] está trabalhando melhor com esses PDSs e começando a proteger esses programas federais.
Quando Dorothy foi assassinada, havia 35 grupos de fazendeiros que queriam trabalhar a terra de uma maneira sustentável, isto é, 80% de floresta para 20% de fazendas. Agora, há 70 grupos de agricultores que se uniram. Esses 70 grupos são independentes dos PDSs. Obviamente, esses agricultores estão se levantando contra muitos fazendeiros, madeireiros e pistoleiros que roubam ilegalmente a floresta.
Eu acredito que o martírio dessa senhora de 73 anos deu coragem a milhares de agricultores na área de Anapu, para cultivar, proteger e conservar a Amazônia, contra a influência poderosa dos madeireiros e fazendeiros que querem queimar, destruir e transformar a região em uma terra de fazendas, sendo que mais e mais cientistas afirmam que essa transformação não tem mais volta.
Em novembro de 2008, Regivaldo [Pereira] [fazendeiro acusado de pagar pelo crime] foi a um encontro em Anapu convocado pelo Incra e declarou que o Lote 55 era dele. Ele não apenas foi desmentido quanto a essa petição, mas foi também preso depois por apropriar-se ilegalmente dessa terra, especialmente desde que fora libertado da prisão, afirmando que não tinha interesse no Lote 55.
Tivemos quatro júris públicos nos quais conseguimos que Clodoaldo [Batista], Rayfran [Sales] e Tato [Amair Feijoli da Cunha] fossem sentenciados a vários anos de prisão. Também conseguimos que Bida [Vitalmiro Bastos de Moura] e Regivaldo ficassem presos por um tempo. Esses julgamentos públicos tiveram enorme publicidade, mas as pessoas foram educadas à falta de justiça para com os pobres no Estado do Pará. Apelamos por um novo julgamento de Bida e estamos pedindo um julgamento para Regivaldo. Esses julgamentos realmente dão esperança para os pobres e certamente estão provocando uma maior consciência da necessidade de um sistema judiciário honesto. Depois do novo julgamento de Bida, ele foi libertado com base em mentiras. Essa impunidade foi tão descarada que até o Presidente do Brasil declarou publicamente que o julgamento de Bida foi uma paródia. A governadora do Estado do Pará, Ana Julia Carepa, também declarou que o julgamento foi uma paródia.
Há um documentário sobre Dorothy, "Mataram Irmã Dorothy" [assista o trailer do filme aqui], que foi exibido no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília e em Belém, no Fórum Social Mundial de 2009, antes da Assembléia Geral [da Comissão Pastoral da Terra] em Brasília, nos dias 12 e 17 de fevereiro em Anapu. Esse filme está aumentando as esperanças e a consciência pela justiça em milhões de brasileiros.
Há também dois livros, "Mártir da Amazônia" (Paulus Editora, 2008), de Roseanne Murphy, e "A dádiva maior" (Editora Globo, 2008), de Binka Le Breton, escritos sobre Dorothy, ambos publicados em português.
Há novas escolas, parques melhorados e centros comunitários no Brasil que receberam o nome de Dorothy. A enorme quantidade de jornais, rádios e TVs brasileiras que cobriram o trabalho de Dorothy deu mais consciência às pessoas para se colocarem de pé por si mesmas.
Milhões de acres da Floresta Amazônica foram declarados terra pública e de preservação desde o assassinato de Dorothy. Um cientista me contou que isso nunca teria acontecido sem o clamor público em torno à sua morte.
Poderia nos contar um pouco sobre a sua relação com sua irmã Dorothy? Quais são as suas lembranças mais valiosas dela e de sua relação fraterna com Dorothy?Stang – Dorothy era uma das minhas irmãs mais velhas que cuidou do meu irmão gêmeo e de mim. Ela brincava, jogava futebol, basquete e patinava no gelo com o meu irmão gêmeo e comigo.
Ela também tinha um grande amor pela terra. Então, o nosso vínculo começou quando nós éramos pequenos, seis e sete anos de idade, quando cuidávamos juntos do jardim orgânico do nosso pai ou íamos a uma fazenda próxima de casa para colher frutas e ganhar um pouco de dinheiro para ajudar o nosso pai a educar todos nós, nove irmãos, durante a Depressão. Dorothy era alguém com quem nos sentíamos seguros e com quem também gostávamos de estar. Era uma pessoa feliz, amorosa. Todos comíamos juntos no entardecer, lavávamos a louça juntos e rezávamos juntos antes de ir para a cama.
Em dezembro de 2004, ela me telefonou e disse: “Por favor, venha para Belém para participar da entrega do Prêmio dos Direitos Humanos da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] que vou receber”. Quando cheguei a Belém no dia 04 de dezembro, ela estava atrás de toda a multidão [no aeroporto], pulando para cima e para baixo com o seu sorriso enorme, dando-me as boas-vindas ao Brasil. Pude passar uma semana com ela, viajando de ônibus pela cidade de Belém e falando sobre nossas vidas.
Enquanto estive com ela, senadores, advogados, irmãs e amigos se encontraram com ela e avisaram-na que havia ameaças de morte contra ela. Essa viagem de dezembro, em retrospecto, foi uma grande celebração de despedida.
No dia 11 de fevereiro, ela me telefonou novamente, contando-me que gostaria de ir para Esperança [um dos PDSs na região de Anapu, onde Dorothy foi assassinada] para ajudar as 12 famílias de agricultores que tiveram suas casas e suas colheitas queimadas intencionalmente, pois não tinham para onde ir nem o que comer. Ela disse que estava levando comida, lençóis e até mesmo martelos e pregos para reconstruir, para dar-lhes apoio e esperança. Porém, ela me disse naquele momento: “Eu estou um pouco nervosa”. Eu disse para ela: “Então não vá”. E ela disse: “Eu não posso fugir do povo que eu amo”. Ela me mandou um beijo pelo telefone e me deu tchau. Esse telefonema me traz muito boas lembranças.
É incrivelmente ingênuo e maldoso como os advogados de defesa puderam retratar a minha irmã como uma revolucionária, uma agente dos norte-americanos, e como o júri acreditou nisso. Se os pistoleiros tinham medo de Dorothy, por que eles ficaram e esperaram por ela no dia seguinte?
O senhor também tem uma grande história pessoal de missão e trabalho pelos direitos humanos. Pode nos contar um pouco a respeito disso? Como o seu trabalho e a luta de Dorothy em defesa do povo e do Reino de Deus estão conectados?Stang – Eu fui às missões na África pela primeira vez em 1964. Ela foi ao Brasil em 1967. Nós dois tínhamos o desejo de ajudar os pobres e aqueles que tinham muito pouco, os desejos do Vaticano II de que abríssemos os nossos corações às pessoas e descobríssemos com elas as suas necessidades, tanto físicas quanto espirituais. Nós dois vínhamos de uma história de ter muito pouco e de acreditar fortemente nos direitos humanos, nos nossos próprios direitos de partilhar os bens de Deus que ele livremente deu a todo o ser humano, de acreditar nas palavras de Jesus, que dizem que devemos amar os nossos próximos como a nós mesmos. “Bem-aventurados os pobres porque deles é o Reino dos Céus”. Essas palavras nos tocaram muito profundamente.
Eu iniciei duas cooperativas entre os Wakuria do Quênia e da Tanzânia nos anos 60, com mais de cinco mil membros. Dorothy e eu geralmente conversávamos sobre como esse trabalho junto com as pessoas protegia os pobres da ganância e do poder dos ricos. Esse trabalho em conjunto ajuda as pessoas a entrar na grande economia do Brasil.
Durante 30 anos, eu também trabalhei no Colorado, nos Estados Unidos, como administrador de uma casa de saúde, cuidando de idosos, portadores do mal de Alzheimer, doentes mentais e pessoas com problemas de comportamento. Eu fui o Administrador do Ano duas vezes no Estado do Colorado.
Nós entendíamos que, por causa desse libertar as pessoas, seríamos odiados por muitos ricos e pelos poderosos, porque eles querem escravos e pessoas sem educação. Nós também sabemos que muitos ricos e os poderosos chamam os pobres de preguiçosos e de “vidas boas”. Será que eles não se dão conta que sua ganância e sua opressão ajudam a causar o lado escuro da pobreza?
A primeira escola que Dorothy construiu junto com as pessoas foi demolida por alguns fazendeiros ricos, que forçaram a todos a cortar a mesma madeira com a qual eles construíram a escola e a colocá-la na carroceria de seus caminhões. A estação de rádio que Dorothy iniciou para que as pessoas pudessem ouvir as notícias foi destruída em uma noite. O PDS como o conhecemos foi e é odiado por muitos fazendeiros e madeireiros ainda hoje.
Essa pessoa Dorothy que teve tamanha energia, que deu a eles uma grande esperança durante 30 anos, foi assassinada intencionalmente. Tínhamos grande esperança de que a humanidade cresceria em beleza e consciência. Isso não pode acontecer se nos satisfizermos com a nossa vida pessoal de oração. Não ver a pobreza, o sofrimento e a desesperança dos pobres seria contra a nossa fé cristã, espiritual. Então, Dorothy teve um grande desejo de colocar seus braços ao redor do mal que existia e que criava tanta dor e desesperança, para educá-lo e transformá-lo. Obviamente, Dorothy queria dar a sua vida por esses ideais. Sobre esses princípios, Dorothy e eu tínhamos profundo respeito e amor recíprocos.
Dorothy e eu sentíamos a presença de Deus nas nossas atividades, e essa fé nos encorajou a fazer o nosso trabalho da melhor maneira. O fato de ela ter sido convidada para o Brasil em 2004 foi um grande presente para mim. Quando ela me ligou um dia antes de ser assassinada, sabendo que ela estava em uma jornada perigosa, foi o seu beijo de despedida para mim.
Ambos respeitávamos e compreendíamos o trabalho que estávamos fazendo para ajudar a humanidade e que esse amor e compaixão pelos outros é o sentido mais verdadeiro da Igreja Católica. Ambos sentíamos o Espírito Santo dentro de nós e o Reino de Deus em nossos corações. Com a grandeza de Deus dentro de nós, não tínhamos por que ter medo.
Como o senhor vê o reconhecimento e a repercussão do trabalho e da morte de Ir. Dorothy nos EUA e em outros países fora do Brasil? Recentemente, ela recebeu postumamente o Prêmio de Direitos Humanos das Nações Unidas, em razão de seus trabalhos na Região Amazônica.Stang – Dorothy recebeu diversos títulos Honoris Causa de diversas universidades nos EUA desde a sua morte. Ela recebeu um Congressional Award do Senado e do Congresso dos EUA. O governador do Colorado, Bill Ritter, declarou, por Proclamação Honorária, o dia 25 de setembro de 2008 como o Dia Dorothy Stang. O filme "Mataram Irmã Dorothy" ganhou muitos prêmios nos EUA. Como mencionei antes, há dois livros em inglês sobre a vida de Dorothy. As editoras Orbis Books e Random House me disseram que esses livros têm sido verdadeiros best-sellers.
Então, obviamente, muitas pessoas querem saber sobre ela nos EUA. Há também muitas publicações com artigos sobre a vida de Dorothy em inglês. Há também reportagens nas TVs e nas estações de rádio acompanhando os julgamentos em Belém. Houve quatro festivais de filmes no último mês nos EUA, em que a exibição do filme sobre Dorothy teve lotação de público. A HBO irá exibir pela primeira vez o filme sobre Dorothy no próximo mês em Dayton, Ohio, a cidade natal de Dorothy, e depois será exibido em todo o país.
Milhares de pessoas estão pedindo informações sobre Dorothy. Sua popularidade está crescendo imensamente aqui no país. Dorothy é vista como uma pessoa muito espiritualizada, uma mulher muito corajosa, mesmo com sua idade de 73 anos, que amava a Amazônia, os agricultores e os pobres, e a vida espiritual que ela escolheu lhe deu essa grande força. Eu também vejo minha irmã como uma grande brasileira, pela lei brasileira e pelo seu sangue que corre nas terras brasileiras que ela tanto amou, levantando-se em nome dos que não têm direito e em nome da Floresta Amazônica para que tivéssmos um futuro. Como ela sempre dizia, “Eu não posso fugir dos pobres ou dessa grande floresta”.
Dorothy recebeu um Prêmio de Direitos Humanos nas Nações Unidas na Assembléia Geral. Eu recebi o prêmio com a Irmã Joan Burke, das Irmãs de Notre Dame de Namur [congregação de Dorothy], em frente a toda a imprensa mundial. Minha única frustração é que os delegados da ONU do Brasil, que estavam presentes na cerimônia de premiação, nunca vieram me dar as mãos. Então, não sei o que ele pensam sobre essa grande brasileira que entregou sua vida pelo Brasil. Esse prêmio é entregue apenas a cada cinco anos. Eu acredito verdadeiramente que os oficiais brasileiros deveriam ficar orgulhosos por um dos seus ter recebido esse prêmio. Essa falação contínua na imprensa brasileira e nos julgamentos chamando-a de “norte-americana” mostra o preconceito de alguns em aceitar uma estrangeira, independentemente de quanto tempo ela morou ou trabalhou no Brasil, como brasileira.
Eu acho que muitas e muitas pessoas em todo o mundo veem que há corrupção e escravidão dos brasileiros no Estado do Pará. Mesmo se o presidente Lula diz que o último julgamento foi uma paródia, as pessoas pensam que essas são palavras sem nenhuma ação. Matar uma velha irmã católica de 73 anos, uma mulher desarmada, em um país tão católico, sem nenhuma justiça, é um grande choque para muitos católicos de todo o mundo. Os livros, os jornais, as emissoras de TV, as estações de rádio, o filme sobre Dorothy, tudo afirma claramente que há impunidade e escravidão no Pará. O presidente Bush foi uma vergonha nos EUA e para todo o mundo, e o assassinato dessa irmã católica brasileira de 73 anos é uma vergonha mundial para o Brasil.
Existem pesquisas e estudos ou institutos acadêmicos que analisam a vida e o compromisso da Irmã Dorothy com a natureza e com a questão dos direitos humanos nos EUA ou fora do Brasil?Stang – As Irmãs de Notre Dame de Namur são uma congregação mundial. Elas têm escolas e universidades em todo o mundo. Todas as suas escolas e universidades assumiram a causa de Dorothy. Existem programas de estudo sobre Dorothy, sobre ecologia, sobre a vida de Dorothy em todas as escolas. A senhora [Nancy] Pelosi, presidente da Câmara de Representantes dos EUA, foi a uma universidade de Notre Dame em Belmonte, na Califórnia, onde as Irmãs de Notre Dame dão aulas. Há muitas pessoas importantes nos EUA que foram educadas pelas Irmãs de Notre Dame de Namur. Essa tragédia do assassinato de Dorothy está se tornando muito conhecida no país e fora dele.
Estudantes de mestrado de uma universidade norte-americana também entregaram uma dissertação de mestrado sobre a vida de Dorothy em 2006. A Universidade de Dayton tem uma disciplina sobre Dorothy. A Universidade Notre Dame, em Belmonte, tem um programa inteiro sobre a vida de Dorothy. Muitos estudantes do Ensino Fundamental em todo o país estudam Dorothy em programas que são chamados de "A Rainforest Unit for Primary Grades". Os programas são distribuídos pelo Sister Dorothy Stang Educational Aids, um projeto das Irmãs de Notre Dame de Namur (dotedaids@sndden.org). As irmãs católicas em todo o país abraçaram a vida dessa grande mulher brasileira.
Qual a sua opinião sobre a postura do Judiciário e do Executivo brasileiros e como o senhor avalia o processo de julgamento dos assassinos da Irmã Dorothy?Stang – Eu estive no Brasil dez vezes desde o seu assassinato. Quatro anos se passaram, e Bida e Regivaldo, os fazendeiros que são acusados de pagar pelo seu assassinato, ainda estão livres. Um dos prisioneiros foi espancado violentamente para alertá-lo para não testemunhar durante um dos julgamentos. Outro prisioneiro afirmou claramente que os ricos e os poderosos não vão para a cadeia. Tato, Clodoaldo e Rayfran modificaram seus testemunhos muitas vezes ao longo desses julgamentos. O filme "Mataram Irmã Dorothy" mostra claramente a falta de justiça no Estado do Pará.
Os advogados de defesa mentiram e tentaram retratar a minha irmã como uma revolucionária, que vendia armas. Dorothy era muito conhecida pelos oficiais do governo, pela Polícia Federal, pela polícia estatal e assim por diante. Nunca antes ela havia sido acusada, durante seus 39 anos no Brasil, flagrada ou provou-se o seu envolvimento com armas, exceto pelos falsos rumores dos fazendeiros e dos madeireiros.
Felício Pontes, um procurador federal do Estado do Pará, era um amigo próximo de Dorothy, assim como muitos outros oficiais do governo. Ele chamou essas acusações sobre a Irmã Dorothy, nos dois julgamentos de Bida, de falsas e sem mérito. A única vez em que ela foi acusada falsamente, disse o procurador federal Felício Pontes, a acusação foi montada pela polícia local corrupta e pelos fazendeiros.
O presidente Lula enviou os seus assessores ao funeral e houve muitos senadores e brasileiros famosos no enterro da minha irmã. Será que o presidente do Brasil, que comparou Dorothy a Chico Mendes, teria sido tão incentivador se tivesse qualquer dúvida de que ela era uma traficante de armas ou uma agente da América do Norte?
A imprensa sempre me perguntou se eu achava que haveria justiça, e eu sempre disse: “Dorothy amou o Brasil. Ela era uma brasileira e tinha uma grande esperança no Brasil”. Eu ainda espero que haja justiça. Eu também amor o Brasil e vejo grandes promessas e muitas pessoas lutando pela causa de Dorothy. Eu encontrei muitos advogados brasileiros que estão aterrorizados e envergonhados pela falta de justiça no Pará.
O que se pode dizer quando a Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, afirma que há mais de 800 agricultores que foram assassinados no Pará e nenhum deles está preso por esses crimes? O que eu posso dizer quando vejo Bida livre, mesmo quando menos de um ano antes ele havia sido sentenciado a 30 anos? O que eu posso dizer quando Regivaldo participa de um encontro com o Incra em Anapu, em novembro do ano passado, e diz ser dono do Lote 55, onde minha irmã foi assassinada? Ele foi libertado da prisão com base em sua declaração de não ter interesse no Lote 55. O que eu posso dizer quando, depois de quatro anos, Regivaldo ainda não foi julgado? O que eu posso dizer quando, no julgamento do ano passado, o júri libertou Bida, e então, no tribunal, eu e muitos outros fomos cercados por tropas como se fôssemos perigosos? Por que Bida e sua família não foram cercados por policiais no antigo julgamento em que ele foi indiciado a 30 anos?
Nós, a família Stang, estamos novamente pedindo a federalização desse caso, pois fomos profundamente insultados no último julgamento, quando o juiz leu os resultados e libertou Bida, quando a defesa disse que os pistoleiros estavam com medo e mataram Dorothy em legítima defesa e que não havia provas de que os fazendeiros pagaram pelo seu assassinato. Nós da família Stang fomos insultados quando o juiz permitiu que os advogados de defesa insultassem a sua fé católica, a bela e simples cruz católica que ela sempre trazia ao redor de seu pescoço, a sua cidadania brasileira, o seu trabalho de mais de 30 anos com o governo brasileiro e a Igreja Católica.
Dadas as hesitações judiciais no caso Dorothy, qual é a perspectiva que se apresenta para os outros defensores dos direitos humanos do Brasil, como os três bispos e demais lideranças que receberam ameaças de morte?Stang – É uma barbárie ameaçar qualquer pessoa de morte, e ainda mais bispos católicos que amam os pobres. Muitos católicos, porém, me disseram que estão perplexos por um país católico como o Brasil ter seus próprios bispos ameaçados. Esse terrorismo vai contra qualquer crença espiritual que tenhamos e talvez nos indique que o governo também é fraco para proteger o seu próprio povo.
Minha irmã Dorothy teve que sobreviver durante anos com ameaças de morte. Por quê? Bida e Regivaldo tem histórias públicas e bem conhecidas de posse ilegal de terras. Mesmo no primeiro julgamento de Bida, ele foi acusado pelo juiz de ser um criminoso. Será que o governo não sabe quem são essas pessoas que fazem essas ameaças de morte? Se há impunidade, o que claramente existe no Estado do Pará, por quê existe? Por que são permitidos a destruição das terras públicas e o assassinato de brasileiros?
O senhor ainda acredita no sonho da Irmã Dorothy no que se refere à Amazônia e ao seu povo?Stang – Os PDSs ainda estão indo muito bem, e muitos outros agricultores na área de Anapu estão se levantando contra os pistoleiros, os madeireiros ilegais e aqueles que se apossam das terras. Tivemos quatro julgamentos, e eu acredito que ainda haverá mais.
Os brasileiros amaram o filme "Mataram Irmã Dorothy". Eles sentem que o filme tem relação com eles e com o medo ao qual se referem como "impunidade", a falta de justiça no Estado do Pará. Assim como Dorothy dizia: “David, todos temos esperança na Amazônia”. Muitas pessoas do governo, advogados, brasileiros me disseram: “David, não há justiça no Estado do Pará”, e mesmo assim essas pessoas continuam a ser grandes cidadãos. Todos temos uma grande esperança. Quando os assassinos, aqueles que destroem o futuro do Brasil, serão detidos e julgados?
Como o senhor vive e experimenta a presença da Irmã Dorothy hoje? O que você faz e se sente impulsionado a fazer em sua memória?Stang – Dorothy foi uma pessoa muito espiritualizada. Essa espiritualidade tocou muitos e muitos brasileiros, incluindo eu. Dorothy nos apresentou uma forma de vida humana, pessoal, compassiva. Ela demonstrou como os seus assassinos e muitas outras pessoas a viam como um objeto, assim como a terra, a ser subjugado e destruído por dinheiro.
Como é possível matar uma pessoa espiritualizada e não sentir remorso ou medo de que Deus não viu o que foi feito?
Dorothy acreditava que o divino está em todo o lugar, que Deus nos deu esta grande terra para ser compartilhada por todos nós. Dorothy é uma mártir, uma profeta, tão proclamada por Dom Erwin [Kräutler], uma mística, por causa de sua relação próxima com Deus e com a sua grande terra. E uma santa, tão proclamada pelo povo.
Eu converso com a minha irmã em minhas meditações, alguém a quem amei. Eu tenho 71 anos e sei que o meu tempo é limitado, e eu também quero estar diante de Deus no momento certo. Por que eu não quereria me encontrar com uma amiga de Deus como ela? Por que eu quereria entrar em contato com a mesquinharia, com a crueldade, com o mal, exceto para transformá-los em algo bonito? Ela me ajudou a olhar o meu estilo de vida e ver como eu sou amável com os outros, como eu vivo de maneira simples, para que outros possam viver e denunciar os violentos, os assassinos e aqueles que nos destroem e destroem a terra que nos dá vida.
Ela me encorajou a ver os demais como pessoas, não como objetos, e a ver a terra em que vivemos como algo vivo e não apenas uma coisa morta. O martírio de Dorothy me encorajou a estar vivo e a ser uma pessoa melhor.
(Por Moisés Sbardelotto,
Instituto Humanitas Unisinos, 02/03/2009)