Bucólico refúgio da contaminação urbana, o campo argentino, para muita gente, se tornou um local de onde se quer fugir. O emprego maciço de herbicidas nos cultivos de soja, primeiro produto de exportação, está criando uma catástrofe sanitária no âmbito rural, afirmam ecologistas. Um informe redigido pelo não-governamental Grupo de Reflexão Rural (GRR) descreve casos de câncer precoce com pouca idade, más-formações congênitas, lupus, problemas renais, doenças respiratórias e dermatite, baseado em testemunhos de médicos rurais, especialistas e moradores de dezenas de localidades do interior do país.
O GRR realiza desde 2006 campanha para identificar os povoados afetados pela fumigação com glifosato, o herbicida tolerado pelas variedades de soja transgênicas plantadas na Argentina, que elimina toda espécie vegetal que não seja a oleaginosa. Quando lançado desde aviões, a forma mais eficiente de aplicação, cai sobre áreas povoadas, diz o informe Parem de Fumigar. Cinqüenta por cento da área agrícola argentina está ocupada pela soja. Na central província de Córdoba a proporção passa dos 80%. O país produz cerca de 48 milhões de toneladas que exporta para China e Índia. E, segundo dados oficiais, são necessários 200 milhões de litros de glifosato por ano para pulverizar os campos.
Por seu fácil manejo e pelo aumento da demanda em mercados asiáticos, a soja se estendeu desde meados da década de 90 à custa de outros cultivos, da pecaria e das florestas. Mas, aparentemente, não foi apenas diversidade agrícola e natural que se perdeu. A soja arrasou corredores verdes de proteção que margeavam os povoados, formados por hortas familiares, fazendas leiteiras e de pequenos animais e plantações de frutas, afirma o estudo. E a população dessas áreas ficou exposta aos danos causados pela fumigação aérea.
O glifosato é o componente ativo do herbicida Roundup, patenteado pela multinacional da biotecnologia Monsanto, que o vende junto com sua semente transgênica de soja Roundup Ready. A empresa negou que, em condições adequadas de uso, o produto seja nocivo para a saúde humana. O glifosato também é principal ingrediente de fumigações áreas contra plantações ilegais de coca na Colômbia, e seu uso em zonas fronteiriças com o Equador deu lugar a denúncias deste país por danos à agricultura e às pessoas.
O processo de controle do mato e das pragas acontece sobretudo mediante glifosato e pesticida endosulfan. Na zona Ituzaingó Anexo, nos subúrbios da capital da província de Córdoba, os moradores reclamam desde 2000 o fim das fumigações. Depois de várias denúncias judiciais e estudos sanitários, no final de 2008 um promotor entrou com uma medida cautelar e, no momento, a pulverização em zonas vizinhas a Ituzaingó Anexo está suspensa. Como parte da campanha Parem de Fumigar, o GRR apoiou demandas dos moradores, ouviu depoimentos de afetados e incorporou estudos médicos de pessoas prejudicadas. Essa pesquisa foi apresentada esta ano à justiça federal e à presidente da Argentina, Cristina Fernández.
O advogado Osvaldo Fornari, do GRR, disse à IPS que foi pedido à justiça federal que investigue o processo de aprovação dos herbicidas e pesticidas e que, com base no princípio precautório, adotasse uma medida cautelar como a suspensão da venda e do uso de produtos suspeitos de contaminar o campo. A idéia é que a medida aplicada em Ituzaingó Anexo seja adotada nacionalmente: uma paralisação preventiva no uso de herbicidas muito tóxicos. Os ativistas afirmam que as autoridades provinciais têm dificuldade para deter o uso de agroquímicos, cujo uso foi autorizado nos anos 90 por autoridades nacionais. Também se pediu à presidente que declarasse emergência ambiental por esta razão.
Fernández ordenou a formação de uma comissão, coordenada pelo Ministério da Saúde, para investigar as causas e os efeitos vinculados aos contaminantes, trabalhar na prevenção e dar assistência e tratamento às pessoas intoxicadas. O decreto presidencial prevê ainda a adoção de pautas para o uso racional de agroquímicos e, se necessário, sua eliminação. A engenheira agrônoma Alida Gallardo, agricultora orgânica do município de Trenque Lauquen, em Buenos Aires, afirma que ali o problema é gravíssimo. Estamos na área complementar, ao redor do centro do povoado. Ao lado temos campos de soja com fumigação. Há três anos queimaram nossa produção e agora está mais controlado, disse à IPS.
A soja deu lugar a estes tóxicos e agora estão sendo aplicados em outros produtos, como o trigo. As pessoas têm de entender que a contaminação não é apenas para o campo, mas para o que consome alimentos também, afirmou Alida. Entretanto, o também agricultor Omar Barzeta, da Federação Agrária da Província de Santa Fé, disse à IPS que os tóxicos, com precaução, podem ser usados porque é preciso combater o mato e as pragas, mas sempre com cuidado. Existe uma lei proibindo fumigar em zonas povoadas, mas é certo que muita coisa não é cumprida. O município deveria cuidar para que seja usado, sempre com consenso de todos, dos produtores, dos moradores, acrescentou.
Para Fornari, a contaminação por glifosato é consequência do modelo agro-exportador baseado no cultivo intensivo de soja. A essência do modelo, a produção de soja, é um campo deserto, sem agricultores, um esquema que propicia o despovoamento, afirmou. O informe do GRR afirma que a plantação de soja chega até às ruas de alguns povoados. Maquinas e recipientes usados para fumigar são lavados e guardados em zonas urbanas, e os grãos, que espalham partículas tóxicas, são armazenados em silos localizados entre casas, escolas e outras instituições da cidade.
Os depoimentos correspondem a dezenas de lugares nas províncias de Buenos Aires, Córdoba, Entre Rios e Santa Fé, coração da área agrícola, cujos moradores reclamam um cinturão de proteção impedindo a aproximação de aviões fumigadores. Há 30 anos viver no campo era sinônimo de vida saudável. Agora é uma prática suicida, afirma Mario Córcora, de Junín, uma cidade do norte da província de Buenos Aires (centro-leste), muito afetada pelo herbicida. Em Santa Fé, os moradores do bairro Malvinas da cidade de Rosário conseguiu a transferência de oito depósitos de cereal com silos em zonas urbanas, denunciando que a saúde da população era afetada por sua presença.
Um estudo do Hospital Italiano Garibaldi, de Rosário, revelou que em seis cidades da região os casos de câncer de testículo e gástrico em homens são três vezes mais frequentes do que a média nacional; os de fígado, 10 vezes mais freqüentes, e os de pâncreas e pulmão, duas vezes mais freqüentes. Na localidade cordobesa de Alta Gracia, que nos anos 30 atraiu a família do então menino Ernesto Che Guevara que sofria de asma, agora é um dos locais afetados pelas fumigações. O revolucionário argentino-cubano não suportaria viver hoje em Alta Gracia, que foi uma vila turística reconhecida por seu clima seco, apto para recuperação de doenças respiratórias.
Em Basavilbaso, em Entre Rios, o ex-fumigador Fabián Tomasi, de 43 anos, perdeu massa muscular, tem problemas nas articulações, afecções digestivas e respiratórias e ardor na pele, que o obrigam a dormir sentado. Nenhum destes males pode ser atribuído a outra casa que não a exposição ao agrotóxicos. Outro caso investigado nessa província é o da família Portillo. O pai, Walter, que vive em Costa Lãs Masitas, está em cadeira de rodas por uma neuropatia. Seu filho morreu aos 8 anos de idade, após sofrer cefaléias, vômitos e febre, igual a dois sobrinhos pequenos. A justiça investiga se há contaminação no rio dessa região rural, onde se banhavam as crianças que morreram e do qual a família retira água, pois nele é lavada a maquinaria agrícola. (IPS/Envolverde)
(Por Marcela Valente, da IPS/Envolverde, 28/02/2009)