Um dos temas de ordem política mais controversos em discussão em Brasília é a reforma do Código Florestal brasileiro, sobretudo nos pontos que se referem às atribuições legais de responsabilidade sobre o meio ambiente que são impostas aos produtores rurais. No que diz respeito à conservação, o Código estabelece que os produtores têm duas obrigações legais: cumprimento da reserva legal (RL) e, adicionalmente, proteção de áreas de preservação permanente (APPs). Pela RL, os produtores que estão fora da Amazônia Legal devem manter preservados, sem uso produtivo agrícola, 20% da área da propriedade rural. Nos Estados da Amazônia Legal o porcentual é de 35% nas áreas de cerrado e de 80% nas áreas dentro do bioma Amazônia.
A questão da RL e das APPs sempre foi motivo de contencioso entre produtores e o governo brasileiro. Especialmente no caso da RL, desde que, há mais de dez anos, o Judiciário passou a determinar a averbação das áreas nos cartórios de registro de imóveis, o nível de tensão vem crescendo. O aumento da fiscalização, a recente regulamentação das leis de crimes ambientais e a popularização do uso de ferramentas de georreferenciamento detonaram, do lado dos produtores, ações para reformar o Código Florestal. Como ficou claro no mês passado, organizações ambientais e o Ministério do Meio Ambiente são o outro lado da moeda.
Esse é o contexto político em que o tema é tratado. Mas a complexidade dele vai muito além desses elementos. Por um conjunto de razões que listo a seguir, o Código precisa ser reformado. No entanto, dada a enorme mudança institucional que representa a reforma, ela só fará sentido se passar por um processo de escrutínio pela sociedade brasileira.
A reforma do Código não é motivo de disputa apenas entre produtores e ambientalistas, mas também entre os próprios produtores. Cada Estado com relevância na produção agropecuária tem uma condição específica e, idealmente, gostaria de ver o Código alterado para acomodar sua situação. Além disso, há questões de legitimidade econômica e ambiental que são simplificadas pela abordagem legal utilizada no Código - e que já são suficientes para justificar uma reforma. Assim, uma estratégia de reforma concentrada apenas na mudança de seus aspectos legais tem poucas chances de dar certo, pois é mais do que evidente que o Código, de 1965 e repleto de emendas, está fora da realidade em que vivemos.
O primeiro elemento que justifica a reforma é a necessidade de encontrar soluções para equacionar o problema do passivo ambiental que hoje atormenta os produtores. Os dados indicam que nos Estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste há cobertura vegetal insuficiente para atender às exigências de RL e APPs. Do ponto de vista legal, tais Estados deveriam recuperar essas áreas, incluindo a compensação fora da propriedade, no caso da RL, desde que na mesma bacia hidrográfica.
Existem três saídas nesse caso: incorporar as APPs, pelos menos as de margem de rio, na contabilização da RL; desenvolver um enorme programa, com ajuda governamental, de recuperação de matas e florestas; e buscar uma solução que flexibilize os esquemas de compensação. Em qualquer dos casos, não faz sentido recuperar APPs de morro que há anos estão ocupadas com produção agrícola e pecuária. A primeira solução é boa para os produtores, mas não sairá de graça. Dado que o passivo deverá continuar elevado, os produtores poderão ser cobrados a se comprometer a resolver o remanescente.
A segunda faz sentido somente se o restauro florestal ocorrer em áreas de baixo valor produtivo e se houver uma forte política de incentivo governamental. A terceira solução, de baixa probabilidade de aceitação pelos Estados que estão livres de passivo, deveria estender, no mínimo, a compensação a todo o Estado, não importando a bacia hidrográfica. Considerando que a RL e as APPs devem ser atendidas pela propriedade, é impossível mapear todos os casos para medir qual das soluções acima é mais viável. Assim, um pacote combinado de todas elas parece ser a solução.
Em situação diferente estão os produtores da Amazônia. Do ponto de vista legal, usar terras na Amazônia para fins agropecuários é considerada uma exceção. Não somente por conta dos 80% de RL, mas porque os objetivos de proteção ambiental são atingidos com as unidades de conservação ali estabelecidas. A grande questão da Amazônia é que, por força da obrigatoriedade dos 80%, os produtores são transformados em prestadores de serviços ambientais sem nada receberem por isso. Claramente, é uma construção jurídica que não poderia funcionar porque a única forma de renda de um produtor, exceto pelo desmatamento ilegal, é o uso de apenas 20% de sua terra para produção.
O caminho de reformar o Código com a redução dos 80%, que seria a solução ideal aos produtores da Amazônia, provavelmente não vai prosperar, porque isso pode levar ao aumento do desmatamento, fato que governo e sociedade não desejam mais. Assim, garantir os 80% de RL passa, obrigatoriamente, pela inclusão dos serviços ambientais na matriz de custo da sociedade brasileira.
Dois outros elementos complicam ainda mais o debate. A questão da regularização fundiária e a inclusão dos produtores num sistema de cadastro rural. São temas que, por sua interdependência, não evoluem. Um produtor com passivo ambiental não tem interesse em fazer parte do cadastro. Um produtor que não tenha título da terra não tem interesse em fazer desmatamento legal. E a falta de um sistema de cadastro deixa o governo de mão atadas para fiscalizar.
A reforma do Código Florestal é necessária e precisa contemplar soluções para o passivo ambiental, o pagamento pelos serviços ambientais, a regularização fundiária e a criação de um cadastro rural nacional. Uma reforma que não ataque esses temas será, mais uma vez, parcial.
(Por André Meloni Nassar,
Estado de S. Paulo, 18/02/2009)
* André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone)