Industrialização periférica nunca foi garantia de ingresso no clube restrito dos grandes acumuladores do mundo. Sabemos por experiência que o mínimo reboliço nas esferas produtiva e financeira no coração do sistema é o bastante para mandar um país já todinho industrializado (Argentina, Chile, Brasil) à condição originária de país marginal no desenvolvimento desigual e combinado das nações», dispara o filósofo Raphael Alvarenga na entrevista exclusiva que concedeu ao site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, por e-mail. Para ele, é um engodo falar em desenvolvimento, e ainda mais, desenvolvimento sustentável, adjetivo que serve para neutralizar o discurso ecológico, que garante «a dominação de classe a nível nacional e a projeção de poder oligárquico no plano internacional». Por outro lado, o conceito de decrescimento é contraditório: «Sob o pretexto de salvar o planeta e a “boa velha convivialidade”, tal discurso visa ao mesmo tempo salvar o fundamento responsável pela destruição sistemática da natureza e das relações humanas, que não é outro senão que o nexo social capitalista».
Alvarenga acredita que a saída «só pode estar na quebra da inércia da segunda natureza multisecular, que não é outra senão que a da insociável sociabilidade capitalista, o que só acontecerá através da negação prática e coletiva da vida anemizada e atomizada que levamos em nossos desertos residenciais». E arremata: «Está mais do que na hora de dizermos um “não” a esta vida que não vive, darmos um “basta” à não-vida do trabalho alienado ou da ausência do mesmo, não-vida normalizada e entretida quotidianamente pelos anestesistas-reanimadores do espetáculo». Avaliando o Fórum Social Mundial, o filósofo acentua que é imperativo que a insatisfação com a sociedade da mercadoria não se transforme, ela própria, em mercadoria.
Raphael Alvarenga é graduado, mestre e doutor em Filosofia e Letras pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, com a tese Dialectique négative et critique du capital. Expérience, subjectivité et non-identité: lecture d'Adorno. É autor do artigo Dentro da noite veloz : um balanço do FSM de Belém, publicado pelas Notícias do Dia do site do IHU, em 11-02-2008.
Instituto Humanitas Unisinos - Que relações foram estabelecidas entre a crise financeira, a crise energética, a climática e a alimentar no Fórum Social Mundial em Belém do Pará?Raphael Alvarenga - O que já era óbvio para alguns, mas não para todos, e que chega a ser banal, é que todas as crises atuais remetem à crise fundamental e estrutural que é a do sistema do capital, que, como já havia previsto Marx, se encontra numa dificuldade crescente de realizar a mais-valia no momento de máximo desenvolvimento das forças produtivas. É impossível abordar fenômenos como o desemprego estrutural, a flexibilização e a precarização do trabalho, ou ainda a “virada financeira” da economia mundial, sem se remeter às determinações da produção, no caso à terceira revolução industrial de meados dos anos 1970 (microeletrônica, bioengenharia, robótica, nanotecnologia de modo geral).
No que concerne à crise energética, alguém ainda ignora que a quantidade de energia necessária à reprodução da vida é definida e determinada pelo modo de produção vigente? Alguém duvida que a crise climática e ecológica de maneira geral seja um resultado direto da utilização de meios baratos, mas altamente destrutivos, na exploração máxima de recursos naturais com vistas a se permanecer competitivo no mercado? E a crise alimentar não é o fruto desta marca registrada do capitalismo desde os primórdios de sua existência, a saber, da destruição dos meios tradicionais pelos quais populações do mundo todo teriam condições de enfrentar a penúria, destruição à qual se soma o bloqueio violento do acesso direto aos recursos naturais e à riqueza social? A crise é indivisível, só não vê quem não quer.
Quais soluções foram discutidas para uma mudança de postura que mitigue essa situação calamitosa?Alvarenga - É preciso ter em mente que em Belém o número de atividades, palestras e oficinas tendo lugar ao mesmo tempo, com a participação dos mais variados movimentos sociais e grupos militantes de todo o mundo, foi como sempre muito grande. Grande demais para que um só indivíduo pudesse se inteirar de tudo o que acontecia durante aqueles dias. Nesse sentido minha experiência é obviamente muito subjetiva. Só posso falar do que pude ver, ler e discutir durante o Fórum.
Não obstante, a posição de observador particular, uma ideia me pareceu predominar na maior parte das discussões de que pude me inteirar. Para grande parte dos movimentos, não se trata mais de salvar o sistema, visto ser ele próprio o causador da situação calamitosa atual. O que significa dizer que o problema não é o “neoliberalismo” – última expressão política do capital –, mas a própria lógica da acumulação capitalista, que desde o século XVI vem devastando tudo o que pinta pela frente na perseguição de uma finalidade autotélica irracional e externa às necessidades sociais e sensíveis: a valorização do valor. Quando esta entra em pane – é posta em pane pela própria lógica do capital – a capacidade destrutiva do sistema parece não ter limites. Essa compreensão coletiva das raízes do problema é o começo, diria mesmo que é o mínimo, um passo indispensável na direção de uma transformação qualitativa radical da sociedade.
Poderia explicar com mais detalhes por que afirma que a expressão “desenvolvimento sustentável” é um engodo?Alvarenga -Não é só a expressão “desenvolvimento sustentável” que é um engodo; a própria noção de “desenvolvimento”, sans phrases, é em si uma impostura, como antes dela as noções de “civilização”, “progresso”, “industrialização”, “modernização”, “crescimento”... servindo tour à tour a legitimar o esbulho capitalista de sempre. Antigamente se achava que um país pobre e marginal pudesse atingir o nível de desenvolvimento dos países ricos do centro se industrializasse sua produção e, na medida do possível, se suas instituições se modernizassem. Seria, por assim dizer, um processo natural, uma questão de tempo.
Hoje sabemos que isso foi um ledo engano. Industrialização periférica nunca foi garantia de ingresso no clube restrito dos grandes acumuladores do mundo. Sabemos por experiência que o mínimo reboliço nas esferas produtiva e financeira no coração do sistema é o bastante para mandar um país já todinho industrializado (Argentina, Chile, Brasil) à condição originária de país marginal no desenvolvimento desigual e combinado das nações. A lei da ordem mundial capitalista é e sempre foi a competição entre grandes acumuladores pelo monopólio ou oligopólio dos excedentes de valor produzidos mundo a fora, na periferia ou no centro. Competição que pressupõe e resulta em polarização, hierarquia e periferização, isso tanto no interior das nações como a nível internacional.
Resumindo: a ideologia do desenvolvimento – noção que hoje vem acompanhada do adjetivo “sustentável”, com o qual se incorpora e se neutraliza o discurso ecológico – serve no fundo para garantir a dominação de classe a nível nacional e a projeção de poder oligárquico no plano internacional. Ou alguém ainda se ilude quanto à possibilidade de se redistribuir riqueza oligárquica, ainda por cima num país como o Brasil, onde heranças coloniais da dominação direta se combinam sem problema com as mais modernas estruturas de dominação capitalista?
Nesse sentido, a saída seria, então, o decrescimento, como propõe o sociólogo francês Serge Latouche?Alvarenga - No capitalismo o decrescimento é impossível; trata-se de um sistema que só sobrevive caso se expanda continuamente. No contexto atual, quando um político pronuncia a palavra decrescimento, sente-se logo o mau hálito ideológico. “Alte Scheisse in neuen Kleidern”, dizia Marx, ou em termos mais polidos: velhas porcarias vendidas com nova roupagem. Quero dizer com isso que, se outrora nossos avós se sacrificavam em nome da civilização, do progresso, do desenvolvimento nacional, hoje a bola da vez é a ecologia e a conservação do meio ambiente, em nome das quais o cidadão que se preze se verá obrigado a apertar um pouco mais a fivela para... salvar o capitalismo.
Assim como aconteceu com a cultura e o ideário de 1968 a partir do fim dos anos 1970, que acabaram por se acasalar com o novo management flexível, agora é a ecologia que vem se integrar naquilo que Paulo Arantes chamou, na esteira de Adorno, jargão da autenticidade empresarial-cidadã. A voga agora é produzir de maneira ecossuficiente, isto é, respeitando normas ecológicas, mas sem perder em eficiência, óbvio, para que se possa continuar a... produzir; pede-se igualmente que se consuma um pouco menos e de forma consciente, para que se continue a... consumir. Prega-se assim uma sociedade alegremente frugal e convivial, como aquela em que supostamente viveram nossos pais, nos gloriosos anos do pós-guerra.
Salta aos olhos a contradição do atual discurso do decrescimento. Sob o pretexto de salvar o planeta e a “boa velha convivialidade”, tal discurso visa ao mesmo tempo salvar o fundamento responsável pela destruição sistemática da natureza e das relações humanas, que não é outro senão que o nexo social capitalista. Enquanto este não for questionado, problematizado e superado por uma práxis transformadora, discursos como este, “progressistas”, só levarão a um maior controle social e político.
Como seria possível subverter a equação perversa do capitalismo e tornar o decrescimento uma alternativa para a salvação do nosso planeta? Alvarenga -Dentre as perguntas que volta e meia vêm à tona quando se critica de maneira radical a sociedade presente, e que demonstram cabalmente o grau zero de imaginação a que chegamos, estão: “Mas o que se pode fazer, afinal?”; “Como proceder então?”; “Onde está a saída?” É como se tivéssemos nos tornado incapazes de imaginar algo melhor do que o mar de pacotilhas desoladoras que inunda e devasta a vida quotidiana e no qual se afogam justamente sonhos de um mundo mais digno e humano.
Para subverter a equação perversa do capitalismo se faz necessário primeiramente uma teoria crítica profunda, que determine e especifique o objeto de sua negação e que contribua à formação militante. No contexto atual, e é dele que devemos nos ocupar, existem, além disso, duas grandes medidas a serem tomadas contra a sociedade dominante, e que devem ser conjugadas para surtir efeito durável.
A primeira, que pode soar estranha aos ouvidos não acostumados, é se organizar contra e para além do trabalho, o que implica desertar coletivamente o regime da mobilização permanente, que aliás não concerne somente à esfera produtiva. Muita gente da minha geração, em Buenos Aires, Salvador, Barcelona e Berlim, já começa a viver relativamente bem sem essa ficção descabida. Para começo de conversa, não somos precarizados, visto ser a precariedade uma característica ligada à atual roda-viva alucinada do trabalho, hoje a única mercadoria que o sistema oferece descaradamente a conta-gotas. Por isso já não mais contamos com aposentadoria, com direitos trabalhistas, e menos ainda com o direito ao trabalho. O discurso da “inclusão social” através da “geração de empregos”, enormidade de uma sociedade do trabalho sem trabalho, nos insulta. Simples assim, não queremos mais ouvir falar dessa danação. A convicção que nos une é a de que o esgotamento da mercadoria-trabalho no processo produtivo capitalista é sinal que as bases materiais para sua superação efetiva estão postas. Acreditamos assim que a reelaboração a um tempo pulsional e moral de uma nova subjetividade social só pode ter lugar se as atividades criativas e produtivas forem libertadas da redundância despótica do valor cobrado pelo capital.
Informação X mercantilização
E por aí chegamos à segunda medida, que concerne à libertação da riqueza socialmente produzida pela inteligência humana da mortalha do valor. Segundo Paulo Arantes, cujos passos estou seguindo aqui, isso aconteceria caso os protagonistas do trabalho com informação – que é a falsa mercadoria da vez – deixassem de ser prisioneiros da tentação rentista. Porque sem o conhecimento mobilizado pela inteligência humana, explica Arantes, qualquer banco de dados vira um arquivo morto. O que significa isso na prática? Que o poder de veto que preludia uma ruptura radical com a sociedade do capital passa pelo fato de o valor de uso de uma informação residir na interação social: divulgada num ambiente mercantil, a informação se desvaloriza completamente.
Se a junção se der, em larga escala, entre a recusa coletiva da mitologia produtivista e o acesso direto e não-hierárquico à riqueza social uma vez aberta a caixa-preta do mundo digital, é bem possível, mesmo provável, que o espectro do capitalismo e suas formas fantasmagóricas deixem de nos assombrar. Esse me parece ser o caminho das pedras.
Que medidas estão sendo tomadas a partir do FSM para tornar um outro mundo possível na prática?Alvarenga -Não vejo o Fórum como um locus da transformação social, mas antes como um espaço internacional de contestação, discussão, reflexão crítica coletiva e troca de informações e conhecimentos, no qual indivíduos e grupos do mundo todo contribuem com suas próprias experiências e procuram dar uma expressão política mais ampla a seus interesses, desejos de mudança e potenciais rebeldes. Numa palavra: trata-se de um “espaço público oposicional”, expressão cunhada por Oskar Negt e Alexander Kluge para designar espaços públicos que se oponham ao espaço público burguês, no qual o interesse das classes proletárias aparece necessariamente sob a forma de um enorme amontoado de interesses privados, nunca como um modo de criação coletiva de formas qualitativamente outras de participação e consciência política. Segundo os mesmos autores, só a força associativa de mulheres e homens religando seus interesses enquanto indivíduos ao bem comum teria condições de produzir um espaço público crítico e democrático, um espaço de discussão, pesquisa coletiva e criatividade social. Apesar de todos os defeitos, o FSM me parece caminhar nesta direção.
Você fala que somos conscientes do que há por trás do consumo, e mesmo assim continuamos a consumir, e em excesso. Por onde passaria uma mudança de atitude?Alvarenga - Não se trata só de uma mudança de comportamento no sentido que habitualmente se dá a este termo; tampouco de uma moralização de atos individuais, de uma conscientização para o chamado “consumo consciente”. O feitiço/fetiche do valor – entendendo-se por valor o nexo social dominante na sociedade da mercadoria – não será quebrado meramente com conscientização; não é questão de consciência. Isso tem que ficar claro. Tampouco será a práxis transformadora fruto de um qualquer voluntarismo, mas antes de um longo processo de mediações produtivas, que por sua vez é uma questão de práxis social efetiva, onde esteja premente a consciência possível, para dizer como Lukács, historicamente possível, que nada tem que ver com consciência moral ou com uma qualquer concepção idealizada da natureza humana.
Não sei se respondo à sua pergunta, mas chamaria a atenção para o seguinte fenômeno: quando o descaso das autoridades governamentais com relação aos mais pobres se torna manifesto, seja na Argentina pós-apagão econômico, seja na Nova Orleans pós-Katrina, a evidência da auto-organização parece ressurgir. Quem sabe com o agravamento da presente crise mundial não surjam em escala internacional novas e antigas formas de solidariedade, redes auto-organizadas de entre-ajuda produzidas por uma sabedoria social espontânea?
A saída então só pode estar na quebra da inércia da segunda natureza multisecular, que não é outra senão que a da insociável sociabilidade capitalista, o que só acontecerá através da negação prática e coletiva da vida anemizada e atomizada que levamos em nossos desertos residenciais. Está mais do que na hora de dizermos um “não” a esta vida que não vive, darmos um “basta” à não-vida do trabalho alienado ou da ausência do mesmo, não-vida normalizada e entretida quotidianamente pelos anestesistas-reanimadores do espetáculo.
Por que razão o FSM também esteve prestes a se tornar uma mercadoria? Hoje a situação é diferente? Por quê?Alvarenga - Essa não é uma particularidade do FSM, é uma tendência por assim dizer “natural” numa sociedade cuja organização da produção tenha por a priori a mercadoria. A partir do momento em que a força humana de trabalho se transforma em mercadoria, tudo, em princípio, pode por sua vez se tornar mercadoria: saúde, moradia, educação, arte - inclusive os sonhos, a revolta, a contestação.
A capacidade da sociedade capitalista de assimilar forças contestatórias é de fato imensa. Basta pensar na história do movimento operário, na sua integração à sociedade do consumo, ou então nos movimentos identitários: feminista, afrodescendente, gay, queer... os quais, em certa medida e até certo ponto, acabaram por se tornar novos nichos do mercado pós-moderno, que soube explorar muito bem o fetichismo das identidades culturais.
Voltando à sua pergunta, a partir do momento que investimentos privados começam a fazer parte da organização do FSM, o conteúdo do mesmo não fica imune. É uma tendência contra a qual é preciso lutar. A autonomia do Fórum é condição indispensável de sua legitimidade. Já assistimos ao filme da “anarchy for sale” (título de uma canção do grupo Dead Kennedys nos anos 1980). É imperativo não deixar que a insatisfação com a sociedade da mercadoria se transforme ela própria em mercadoria.
O FSM deste ano experimentou uma renovação, ou melhor, um retorno às suas origens?Alvarenga - Não vejo como um retorno às suas origens – vale dizer, um fórum internacional alternativo, privilegiando a dimensão social, por isso mesmo oposto à política econômica propagada pelo Fórum de Davos – possa ser experimentado como uma renovação. O deste ano foi sem dúvida um Fórum diferente dos demais, por causa da magnitude da crise mundial. Ao mesmo tempo, ouviu-se certas declarações meio arrogantes, além de ingênuas, do tipo: “Viram só como tínhamos razão! Os poderosos de Davos se enganaram! O mercado sem amarras não traz prosperidade, e sim a precarização de todas as esferas da vida.”
E alguém lá ignorava isso? É o próprio do atual capitalismo-cassino o ímpeto suicida. Os agentes de mercado não só não desconheciam as consequências sociais e ecológicas desastrosas do capital financeiro correndo o mundo sem freios, como estavam bem cientes dos riscos de perda pessoal. Quem não sabia no que dariam as políticas de crédito e a especulação imobiliária? Talvez não se imaginava que o buraco fosse ser tão grande, o que não impede que ninguém duvidasse que um dia a conta chegaria e que alguém teria de esvaziar os bolsos para pagar.
Voltando ao FSM, a novidade maior, creio eu, talvez tenha consistido na centralidade dada à questão ecológica, como já disse, agora associada à compreensão da crise como indivisível, como crise da sociedade capitalista em todas as suas dimensões.
Em que sentido a não compreensão da superação da sociedade atual como um imperativo histórico pode tornar tarde demais ações contra o capitalismo?Alvarenga -No sentido de que só temos este planeta para viver e que se não pusermos um fim à marcha de destruição em curso – marcha irreversível dentro de coordenadas capitalistas, principalmente depois da terceira revolução industrial – daqui a poucas décadas não restará ninguém para contar a história.
Qual é a importância da participação e do diálogo entre os quatro chefes de Estado, de esquerda, no FSM: Chávez, Correa, Lugo e Morales?Alvarenga -Começo a resposta por um comentário de Boaventura de Sousa Santos, que chamou atenção para o problema da visibilidade do Fórum, de sua influência sobre a sociedade e do risco de se tornar irrelevante. Que o evento não apareça senão em poucas linhas e imagens da grande mídia, em geral de forma depreciativa, é compreensível: há muito se sabe que numa sociedade de classes a opinião dominante é a opinião das classes dominantes, um reflexo de sua mentalidade e de suas práticas. Sendo o FSM um vetor de denúncia das mazelas da sociedade capitalista global, é “normal” que não apareça como deveria nos principais meios de comunicação, atrelados que são aos interesses das elites. O fato de não aparecer, senão como caricatura, na grande imprensa e nos principais canais de televisão, não torna de modo algum o evento irrelevante, pelo contrário.
Isso posto, é inegável que a participação dos presidentes em questão tenha trazido uma maior visibilidade para o Fórum do que teria tido sem a vinda deles, mas assim se confirmou a já esperada superinflação de tal presença pela mídia dominante em detrimento de atividades e discussões paralelas, de longe mais importantes e significativas. Ademais, o grande encontro dos presidentes – do qual também participou Lula – entretem uma crença pequeno-burguesa, que a meu ver contradiz o espírito do FSM, a saber, de que o futuro do mundo e a resolução dos problemas da humanidade residiriam nas mãos de governantes e chefes de Estado.
Nesse ponto tem razão Marina Silva em afirmar que não podemos mais depositar nossas esperanças na figura de líderes – o que, diga-se de passagem, vale também para o “imperador negro”, como chamam Obama em Cuba. O processo político, lembrou ainda a ex-ministra do meio ambiente, deve ser policêntrico, ou seja, a transformação social não deve ocorrer tão-só de cima para baixo. Até porque, para os grandes líderes – e isso não só na América Latina, obviamente – o ideal de sociedade continua sendo aquele, jurássico, baseado no crescimento econômico constante (só que “sustentável”), na mobilização para o trabalho e na criação de empregos, pouco importando aliás o conteúdo dos mesmos: catador de lixo, webdesigner, flanelinha, dançarina de funk, professor de escola pública, fabricante de armas, massagista, fritador de hambúrgueres, babysitter ou prostituta... “Qualquer emprego é melhor do que nenhum”, segundo a antológica boutade de Bill Clinton.
Então, a luta por uma nova sociedade deve se travar em diferentes frentes e embora ache que não devamos abandonar sem mais nem menos os recursos do Estado nas mãos das elites, tem que ser muito ingênuo para se crer que uma transformação qualitativa da sociedade ocorrerá no interior da decadente forma política burguesa.
E qual é o significado da ausência de Lula nessa discussão?Alvarenga -A discussão em questão, com Lugo, Correa, Morales e Chávez, foi proposta e organizada pelo MST, e se Lula não foi convidado a participar, a razão é simples: ao contrário dos outros países ali representados, o Brasil não faz parte da Alba (Alternativa Bolivariana para América Latina y el Caribe), que seria o tema central abordado. Não creio que na ausência do presidente brasileiro haja um significado maior para além deste fato.
Em termos latino-americanos, como podemos compreender a eleição de quatro líderes de esquerda em menos de dez anos? Nosso continente é o canteiro para o renascimento do socialismo?Alvarenga - Há quem sustente que em tal fenômeno tenha pesado uma certa “mudança de consciência coletiva” frente à intensificação da desintegração social e da degradação ecológica em curso. Mas não é uma explicação que me convence. A questão para mim é outra: no contexto atual, uma vez no poder, partidos de esquerda ideologicamente consistentes fazem ainda alguma diferença? Quero dizer, são qualitativamente superiores aos demais, da direita? Deixo ao leitor se decidir. Só chamaria a atenção para o seguinte: as exigências globais da acumulação capitalista e a decorrente gestão nacional da miséria deixam pouca margem de manobra para reformas sociais não triviais.
América Latina como canteiro para o renascimento do socialismo? Penso que sim, que pode ser, mas não por causa da eleição de líderes de esquerda. A América Latina dos piqueteiros, dos sem-terras, dos zapatistas, essa sim pode vir a apresentar alternativas socialistas. Como disse, não acredito em mudanças estruturais vindas de cima, ainda menos nos moldes clássicos da política burguesa, que há muito deixou de ser deste mundo. Uma mudança qualitativa se vier, virá de um grande movimento emancipatório transnacional, que deverá ter o cuidado de não se deixar paralizar numa nova unidade burocrática; um movimento sem falsa síntese, com envergadura política suficiente para opor ao fim-de-feira capitalista uma alternativa social e ecológica radical e conscientemente formulada. Caso surja tal movimento, e a atual crise é quiçá propícia à sua emergência, é provável que se aglutinem em torno dele os rebeldes “sem causa” que somos, os insatisfeitos e indignados com a barbaridade que é a sociedade capitalista dita “em crise de legitimação”, no seio da qual só podemos nos reconhecer verdadeiramente na injustiça absoluta do fato de sermos rejeitados à margem da vida.
Ainda nesse raciocínio, considera a América Latina a concretização da Utopia, de Morus, como Chávez assinalou citando Bolívar em seu discurso no FSM? Por quê?Alvarenga - Só se for a concretização de uma má utopia, uma utopia às avessas. Não dá para levar a sério uma declaração dessas. Trata-se de um continente explorado até os ossos por séculos a fio, com feridas sociais e históricas profundas e não cicatrizadas, que nem de longe estão em vias de serem curadas. Aqui o estado de exceção, ou seja, a não-liberdade e a anomia social, sempre foi a regra. É uma enormidade pretender que estas terras de miséria, sofrimento e impotência sejam a utopia realizada.
(Por Márcia Junges,
Instituto Humanitas Unisinos, 16/02/2009)