Entre a cruz e a espada, a mineração foi um dos temas mais "quentes" do Fórum Social Mundial (FSM) 2009, em Belém. A cruz, no caso, pode ser entendida como a crise financeira global, a redução da demanda por produtos minerais primários e o temor por cortes em massa de postos de trabalho. Já a espada simboliza os riscos sociais e ambientais associados a grandes empreendimentos do setor, que historicamente têm pressionado a vida dos povos locais e afetado o bioma da Amazônia.
Em se tratando de Pará, duas cadeias produtivas estiveram, em especial, no centro da arena de debates: a do ferro e a do alumínio. Nas salas e nas tendas do FSM, painéis trataram de diversos assuntos relacionados às formas de exploração dos ricos minérios da Amazônia: de reuniões sobre a campanha pela reestatização da Vale - 3,4 milhões votaram favoravelmente à anulação da controversa privatização da companhia ocorrida em 1997 - até oficinas sobre aspectos ambientais, econômicos e jurídicos da atuação da Vale, convocadas por organizações civis e setores ligados à Igreja Católica numa iniciativa batizada de Justiça nos Trilhos, em referência à área de influência da Estrada de Ferro Carajás (EFC).
A partir de questões apresentadas pela sociedade civil no FSM, a Repórter Brasil entrou em contato com as principais empresas envolvidas e representantes do poder público para obter os seus respectivos posicionamentos referentes aos projetos de mineração de ferro e alumínio. Este primeiro texto enfocará as inquietações sobre a exploração do ferro. Um texto seguinte apresentará um quadro sobre a cadeia do alumínio.
FerroNuma das oficinas do Fórum, o perfil econômico de uma das principais empresas do setor - a Vale - foi dissecado por Francuccio Gesualdi, do Centro Nuovo Modello di Sviluppo (Centro Novo Modelo de Desenvolvimento), da Itália. Criada em 1942 durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a Vale é a maior produtora de ferro no mundo. Em 2006, a mineradora incorporou a canadense Inco e passou da quarta para a segunda posição em seu setor.
Em termos de faturamento (US$ 32 milhões), fica atrás apenas de outra gigante do setor: a australiana BHP Billiton (US$ 39 milhões). O faturamento anual da Vale é maior que o Produto Interno Bruto (PIB) de mais de 100 países. A nação africana do Quênia, por exemplo, dispõe de uma população de 37 milhões de habitantes e ostenta um PIB de US$ 27 milhões.
Com negócios nos cinco continentes (América, Europa, Ásia, África e Oceania), a Vale mantém diversas explorações na Amazônia como nas regiões de Carajás - de onde extrai 103 milhões de toneladas de ferro dos mais puros do mundo por ano. O minério é utilizado para a produção de ferro-gusa - em grande medida, para exportação - nas siderúrgicas da região de Carajás. De Oriximiná e Paragominas, respectivamente no oeste e no leste do Pará, a empresa extrai a bauxita. Um mineroduto de 350 km leva a bauxita misturada à água de Paragominas até as usinas de alumínio da Albras e da Alunorte, ambas ligadas à Vale, em Barcarena (PA) (aguarde matéria sobre alumínio).
Detentora de participação acionária em diversas outras empresas de mineração, a Vale mantém 124 mil trabalhadores em todo o mundo, dos quais 62% de terceirizados. Fora do Brasil, segundo Francuccio, a faixa dos terceirizados é de 48%. Entre os principais acionistas da mineradora, despontam a Litter Participação (ligada à Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil), a Bradespar, a japonesa Mitsui, e o BNDESpar, braço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Porém, as ações preferenciais de classe especial (golden shares), que garantem poder de veto para algumas decisões ligadas à exploração de ferro, devem ser obrigatoriamente de titularidade da União.
Em 10 anos, completa o pesquisador italiano, o capital da Vale multiplicou 15 vezes. De tudo o que ganha, 63% são destinados para a composição dos lucros, conforme cálculos apresentados por Francuccio. Outros 24% são destinados ao pagamento de impostos e royalties. Salários e pensões equivalem, nas contas dele, aos 13% restantes. No capítulo dos royalties, não custa nada recordar que a Contribuição Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) está fixada entre 1% e 3% do faturamento líquido da mineração, enquanto os royalties do petróleo chegam a 10% do faturamento bruto.
Para discutir as entranhas e conseqüências desse sistema de exploração do ferro, a prefeitura, acadêmicos, convidados internacionais e organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) participaram do Fórum Social Carajás, em Parauapebas (PA), que antecedeu o FSM 2009. A comitiva visitou minas de Carajás escoltada por um helicóptero da Força Nacional de Segurança Pública e inaugurou as pedras fundamentais do Instituto de Agroecologia Latino-Americano (Iala) e do estádio Che Guevara. Esteve também no lançamento de um bosque na "Curva do S", em Eldorado dos Carajás (PA), ponto exato do massacre de policiais militares subtraíram a vida de 19 pessoas e deixaram mais de 60 feridas em 16 de abril de 1996.
A partir do Fórum Social Carajás e de articulações como a Justiça nos Trilhos, membros de comunidades afetadas, pesquisadores e sindicalistas aproveitaram o Fórum Social Mundial em Belém para extravasar uma série de críticas. Lançado no ano passado e revitalizado no FSM, documento das entidades que fazem parte da Articulação Siderurgia, formada no bojo da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), coloca que o "modelo agro-minero-hidro-exportador adotado no país, cada vez mais, produz situações de injustiças ambientais e riscos à saúde humana ao explorar de forma intensiva recursos naturais para a produção de bens para o mercado global".
Segundo a Articulação Siderurgia, o esquema atual de produção "concentra renda e poder, provoca a degradação do meio ambiente, migração desordenada durante o processo de construção dos empreendimentos, a exploração do trabalho humano e deixa suas marcas de destruição predominantemente em espaços coletivos onde vivem e trabalham populações discriminadas e com restrições econômicas, como as mulheres, as comunidades tradicionais, de agricultores familiares, de populações ribeirinhas, de operários e suas famílias nas periferias urbanas, de moradores do entorno dos empreendimentos e suas infra-estruturas, dentre outros". Não custa lembrar que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) tem flagrado casos de crime de trabalho escravo na produção de carvão vegetal que, muitas vezes, faz parte da cadeia de fornecimento para a indústria siderúrgica.
"Os preços ´competitivos´ das mercadorias brasileiras - como é o caso do ferro e do aço exportado - não expressam na sua contabilidade o vasto rastro de destruição de pessoas, povos, culturas economias regionais e ecossistemas, pois se assim fizessem ficaria evidenciado que o atual modelo de produção é economicamente inviável. Ou seja, em nome do ´progresso´ permite-se que sejam feitas aqui as fases mais sujas da cadeia produtiva - degradando nossos solos, consumindo e contaminando nossa água e ar, comprometendo nossa biodiversidade, a saúde, a qualidade de vida e a cultura de nossos povos - para produzir commodities, que possuem menor valor e maior volatilidade no mercado internacional", emenda o documento da Articulação Siderurgia.
Também presente no FSM, o prefeito de Parauapebas, Darci Lermen (PT), não nega a vocação da Amazônia como fonte de riquezas primárias. "Mas não queremos só isso. Queremos ultrapassar essas fronteiras, a fim de podermos construir alternativas melhores para nosso povo, verticalizando os recursos naturais", adiciona. Darci também se preocupa com o desemprego. Para ele, "a população de Parauapebas não tem nenhuma culpa pela crise econômica" e a presença do prefeito no Fórum também teve o intuito de buscar "alternativas para driblar os efeitos desta crise, pois entendemos que a riqueza do estado deve ser mais bem distribuída entre a população".
Em consonância com a Justiça nos Trilhos - que busca formas de acentuar a distribuição da riqueza proporcionada pelo minério de Carajás -, os professores Marcelo Carneiro, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e Helciane Araújo, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), apresentaram no FSM alguns dados preliminares do estudo que vêm realizando nos municípios atravessados pela Estrada de Ferro Carajás. Por meio de entrevistas e questionários com membros de 12 povoados de Alto Alegre do Pindaré (MA), entre abril e dezembro de 2008, Helciane buscou aferir as reais condições de vida no local (incluindo o acesso a bens públicos e as formas de sobrevivência) e também a relação dos habitantes com a EFC e a Vale.
Dados primários colhidos pela pesquisa no município de 32 mil** habitantes confirmam o poder público municipal como principal empregador e um peso grande do Bolsa Família e das aposentadorias para a garantia mínima de renda. Por volta de 45% sobrevivem da pequena produção agrícola e grande parte mantém outras fontes informais de renda para complementar a receita familiar de cerca de um salário mínimo por mês. Uma das fontes informais de renda é a própria venda de refeições em "quentinhas" oferecidas pelas janelas no vaivém dos trens de passageiros pela EFC.
O levantamento provisório mostra que 75% dos entrevistados de Alto Alegre do Pindaré afirmam que a vida melhorou com a construção da Estrada de Ferro Carajás, principalmente pelas mudanças na área de transporte. Uma estrada paralela à linha do trem facilitou o acesso ao centro da cidade. Antes, o percurso a partir de algumas vilas demorava bem mais e era feito de barco. Uma parcela também apontou melhorias na geração de emprego e renda, bem como na infraestrutura, em geral.
Dos consultados, 45% também identificaram problemas com a construção da linha férrea. Os acidentes envolvendo pessoas e animais foram os mais citados (35%), mas questões relativas ao meio ambiente - como os desmatamentos, as queimadas e os impactos sobre o Rio Pindaré - também foram lembrados por quase um quinto dos entrevistados. Também preocupam a questão do saneamento, da coleta de lixo e do acesso á água, além de doenças - especialmente as respiratórias, em decorrência das atividades das atividades ligadas à mineração. Em determinados povoados, a linha do trem repartiu comunidades ao meio; apenas 23% dos que detectam a existência de problemas estão satisfeitos com as providências tomadas.
De acordo com Marcelo Carneiro, da UFMA, as previsões milionárias de investimentos na produção e as propostas bilionárias de dividendos para acionistas não condizem com a situação concreta das populações atingidas. Para ele, o nível de organização da população local está fragilizado, frente à crônica dependência das comunidades no trato com a prefeitura e os políticos locais. Entidades como sindicatos e associações de bairro não demonstram força para contestar o quadro vigente de desigualdade social.
A assessoria de imprensa da Vale, por sua vez, diz que a companhia visa "o fortalecimento socioeconômico das comunidades onde a empresa está presente" por meio de programas de desenvolvimento de fornecedores (de incentivo e qualificação da produção local e regional, inclusive para empresas de pequeno e médio porte). Além desses cursos de capacitação e de centros culturais de formação de jovens, oferece também linhas de financiamento.
A Fundação Vale realiza diagnósticos socioeconômicos dessas comunidades com o objetivo de mapear a realidade das regiões e os respectivos impactos dos empreendimentos da mineradora. Segundo a assessoria, são feitas projeções econômicas, demográficas e da demanda dos serviços e infraestrutura com vistas ao futuro. Esses estudos servem de base para um plano de gestão integrada (PGI), com ações conjuntas em parceria com o poder público local e a sociedade civil para atacar problemas.
Em novembro de 2008, a Fundação Vale apresentou o PGI da Estrada de Ferro Carajás, que contempla ações nos 27 municípios cortados pela ferrovia e prevê um investimento de R$ 229,6 milhões para os próximos cinco anos - "de acordo com as condições da economia global e com as condicionantes dos projetos", como bem frisa a assessoria.
Sobre a questão de atropelamentos de pessoas e animais que apareceu na pesquisa da professora da UEMA, a Vale afirma que mantém programas educacionais como "Educação nos Trilhos" e "Olhe o Trem", além de investir na construção de viadutos e passarelas em municípios como Anajatuba, Vitória do Mearim, Pindaré, Tufilândia e Alto Alegre do Pindaré.
Juntamente com suas controladas e coligadas - Albras, Alunorte, Cadam/Pará Pigmentos S.A. e Mineração Rio do Norte (MRN) -, a Vale declara ter investido US$ 17,3 milhões em projetos sociais apenas no terceiro trimestre de 2008 (42% a mais que os US$ 12,2 milhões investidos no mesmo período de 2007). Na área ambiental, o desembolso entre julho e setembro de 2008 foi de US$ 45,7 milhões (101% superior aos US$ 22,7 milhões investidos no mesmo intervalo do ano anterior).
Além da preservação e da vigilância da Floresta Nacional (Flona) de Carajás em parceria com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a assessoria realça que a Vale vem atuando para reduzir os déficits de infraestrutura urbana das cidades sob sua influência. A empresa declara ter conseguido articular junto ao Ministério das Cidades a liberação de R$ 180 milhões do Orçamento Geral da União (OGU) para sete municípios do Sudeste do Pará. Desse total, R$ 51,6 milhões iriam para Parauapebas, com vistas à construção de 1,8 mil moradias.
O fantasma do desemprego que ronda o universo em torno da Vale também pairou sobre o Fórum Social Mundial. Samuel Aguiar, da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Açailândia (MA), destacou que a maioria dos trabalhadores das siderúrgicas do lado maranhense do Pólo Carajás veio da roça para a cidade. Eles temem perder o emprego principalmente por que o retorno ao campo se tornou inviável. "A pecuária e as plantações de eucalipto tomaram tudo", emenda. Numa das siderúrgicas de Açailândia fomentadas pelo minério extraído pela Vale, só 70 dos 260 empregados foram mantidos. De acordo com o sindicato, a média de cortes atingiu 23% do quadro funcional, sem contar a dispensa generalizada nas empresas terceirizadas.
A terceirização, na visão da Vale, "faz parte da estratégia de gestão" da empresa, "assim como da maior parte das grandes empresas globais". "De acordo com as principais escolas de gestão do mundo, a terceirização ajuda a gerir custos e focar esforços na atividade fim das empresas. No caso da Vale, tanto os empregados próprios quanto os terceiros trabalham dentro do mesmo padrão de treinamento, qualidade e segurança", assegura a assessoria.
Com relação às milhares de ações trabalhistas contra a Vale apenas na Vara de Trabalho de Parauapebas, a Vale realça que a legislação trabalhista é "bastante complexa" e "permite vários pontos de debate, de maneira que uma grande parte das ações em andamento diz respeito às divergências de interpretação jurídica". Além disso, a Vale, segundo sua assessoria, começou 2008 com 42 mil empregados e terminou com 47 mil. Ou seja, fechou o ano com um saldo positivo de cinco mil empregos, apesar da crise.
Sindicalistas estimam que a Vale já demitiu até janeiro deste ano mais de mil trabalhadores diretos. A queda no ritmo de produção acarretou ainda na demissão de outros 12 mil em nível indireto (terceirizadas). A empresa vem propondo aos sindicatos de trabalhadores uma licença remunerada com garantia de emprego até o final do próximo mês de maio mediante redução de 50% dos salários. Algumas representações de empregados espalhados pelo Brasil já aceitaram a oferta, mas outras ainda resistem.
Pelo menos três questionamentos são apresentados pelos sindicalistas. Primeiro, eles declaram que a empresa dispõe de US$ 15 bilhões em caixa acumulados, dinheiro mais que suficiente para bancar com folga a folha de pagamento anual que não ultrapassa US$ 1 bilhão. Sugerem ainda que a Vale promova cortes na remuneração dos acionistas para poupar dinheiro. E, para completar, apontam a ironia do pagamento de indenizações aos demitidos com ajuda da própria classe trabalhadora, pois a mineradora obteve créditos de peso junto ao BNDES, banco estatal regado pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Por Maurício Hashizume*,
Reporter Brasil, 12/02/2009)
*com informações de assessorias