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cerrado desmatamento
2009-02-16
Por quatro séculos nenhuma comunidade ou sociedade (indígena, de colonizadores ou bandeirantes) abalou a integridade desse complexo ecossistema. Nossa colonização focara basicamente a costa e o interior ficou em segundo plano. Na década de 1950, porém, Brasília foi instaurada no “coração do Brasil” e, a partir daí, a região centro-oeste se tornou a nova fronteira agrícola e o Cerrado, assim como outros grandes biomas em todo o mundo, entrou na luta pela sobrevivência frente ao “progresso”. E o progresso, em termos modernistas, que balizou também a arquitetura da capital, não deixou muito espaço para que o projeto da natureza continuasse a se desenvolver sem a interferência do homem. Brasília, aliás, foi seu algoz novamente quando, em 1988, os parlamentares responsáveis pelo capítulo do meio ambiente da Constituição Federal não incluíram o Cerrado nem a Caatinga como patrimônios nacionais. Desde então esse bioma resiste à degradação.

Os mais de 2 milhões de quilômetros quadrados que o Cerrado ocupa no Brasil central somam espantosos 23,92% do território nacional, quase ao longo de todo o estado de Goiás e Tocantins, grande parte do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, além de porções de outros 6 estados, de acordo com dados do IBGE. Além disso, ele adentra os territórios do Paraguai e da Bolívia. Tamanha dimensão perde apenas para a Amazônia, bioma que está muito mais presente no noticiário e no imaginário popular. A consequência é que poucos se dão conta dos problemas que o Cerrado enfrenta por abrigar a região que mais produz grãos, gado e carvão vegetal do país, além do algodão e biocombustível, resultando em cerca de 30% do PIB. Mas o preço tem sido alto: o bioma está bastante impactado pela ação humana, e sua destruição vem ocorrendo de maneira agressiva.

Esses efeitos antrópicos não são resultado da urbanização da região, uma vez que há baixa densidade demográfica, que possibilita vastas regiões disponíveis para cultivo, este sim, responsável pela maior pressão ao bioma. Ao mesmo tempo, os altos investimentos na produção agropecuária da região – estimados em R$ 41 bilhões, apenas em 2007 – parecem não se reverter para melhorias no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Os estados onde o Cerrado é predominante têm, na média, IDH equivalente a 0,768, ou seja, abaixo da média brasileira de 0,771 (incluindo o Distrito Federal), considerado desenvolvimento médio.

Multipaisagem
“A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado”, enfatiza José Carlos Souza Silva, que coordena o Núcleo de Recursos Naturais da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados, lembrando que o bioma é considerado o “berço das águas” e compreende as nascentes dos rios Tocantins, Paraná e São Francisco, além de vários rios que abastecem a região amazônica e o Pantanal. De acordo com o pesquisador, essa imagem se deve à maioria dos livros didáticos, consequência do pequeno esquecimento dos parlamentares da Constituição de 1988. Consequência também de um estigma que acompanhou o Cerrado por muito tempo: ser um bioma de “segunda classe”. O jornalista Washington Novaes – atualmente supervisor geral do programa Repórter Eco, da TV Cultura de São Paulo – conta que em uma das reuniões para o relatório da Rio 92, um dos participantes indagou o presidente do Ibama sobre a inclusão, no relatório final, do desmatamento e das queimadas no Cerrado. A resposta, testemunhada pelo jornalista, foi “ainda bem que é no Cerrado e não na Amazônia”.

Em meio ao apagamento do Cerrado, os representantes de produtores agrícolas festejam a demora em se estabelecer políticas conservacionistas, fruto de disputas frequentes dentro do governo federal, entre o Ministério do Meio Ambiente e o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Exemplo disso é a disputa que envolveu o veto da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, à concessão de crédito agrícola para produtores que desmatavam ou em municípios de áreas de transição de biomas, no início do ano de 2008. A lista contava com 527 municípios. Desses, 96 foram excluídos por uma nova portaria assinada pelo ministro que a substituiu no cargo, Carlos Minc, no que os ambientalistas classificaram como uma vitória dos desmatadores.

Tamanho confronto deveria colocar o Cerrado na linha de frente das prioridades nacionais de conservação. O bioma é residência de, aproximadamente, 40 grupos étnicos (cerca de 45 mil índios) dentre os quais representantes dos Xavantes, Xerentes, Krahôs, Bororos, Karajás, Kayapós, Canelas, além dos Avá-Canoeiros, Tapuyas e Karajás, que beiram a extinção. Dentre suas mais de 12 mil espécies conhecidas de flora e outras mais de 2 mil de fauna (leia matéria sobre biodiversidade), há muitas que ocorrem exclusivamente nesse bioma (são endêmicas), e de 2 a 5% (segundo autores mais otimistas) do seu território está seguro em parques ou unidades de conservação.

Iniciativas
Depois da mudança da capital federal para o coração do país, a população teve um rápido e drástico aumento, transformando a região Centro-Oeste na mais nova fronteira agrícola, concentrando, atualmente, 34,8% da produção nacional de cereais, leguminosas e oleaginosas (especialmente soja), e quase o mesmo percentual de pecuária, segundo dados do IBGE. Há ainda a queima da vegetação nativa para produzir carvão vegetal, que alimenta boa parte das indústrias de ferro-gusa. “É uma das formas mais improdutivas de degradação do Cerrado”, afirma Leandro Baungarten, coordenador de ciências do programa Savanas Centrais, da organização conservacionista The Nature Conservancy.

O resultado disso é fácil de imaginar. de acordo com estimativas feitas em 2002, pela Conservação Internacional, o Cerrado teria perdas médias de 1,5% do território ao ano. Para se ter idéia do ritmo de desmatamento, a Amazônia perdeu cerca de 0,24% de seu território em 2008. “Alguns pesquisadores chegam a falar que as atuais faixas de proteção não garantiriam a sobrevivência do bioma, por não contemplarem a contiguidade dos territórios originais remanescentes” alerta Washinton Novaes.

A rápida transformação do Cerrado e a ameaça às suas diversas espécies fez com que iniciativas governamentais e não-governamentais (através de ONGs), pesquisadores e mesmo a iniciativa privada fossem forçadas a tomar providências. Em 1996, foi criada a Rede Cerrado, uma iniciativa de várias ONGs para promover a implantação de projetos sustentáveis. Em 2003, após quase dez anos de debate entre os diversos grupos envolvidos com o tema, a Rede publicou uma carta aberta endereçada ao Ministério do Meio Ambiente (à época para a ministra Marina Silva) com recomendações de ações urgentes para a conservação da área, o que proporcionou a criação do programa Cerrado Sustentável. Há iniciativas estaduais, por exemplo, como as de Goiás que, através da Agenda 21 Goiás, baseando-se nas idéias do Global Environment Outlook da ONU, criou áreas de proteção, aumentando e consolidando áreas existentes, especialmente projetos que consolidassem “corredores ecológicos”.

Há ainda outras iniciativas como as de ONGs internacionais, a exemplo da Conservação Internacional (CI), a World Wildlife Foundation (WWF) e a The Nature Conservancy, que trabalham focando em alternativas de economia sustentável junto às populações locais próximas aos parques. Iniciativas privadas como da empresa O Boticário, que visa a criação de reservas privadas, em parceria com ONGs, e iniciativas não governamentais nacionais como o Instituto Cerrado.

A boa notícia é que os dados do IBGE, em levantamento feito em 2005 sobre Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil), mostram que o número de ONGs envolvidas com meio ambiente e proteção animal, na região dos estados que compõem a floresta amazônica, era de aproximadamente 143 unidades, contra 184 ONGs trabalhando na região Centro-Oeste. Com mais projetos de engajamento esperar-se-ia que o quadro fosse positivo para o Cerrado, mas não é o que ocorre.

Isso pode ser explicado pelo fato que o governo brasileiro não investe na proteção da área. Segundo estudos feitos pela Conservação Internacional, apresentados no II Simpósio Internacional de Savanas Tropicais, por exemplo, o dinheiro investido foi da ordem de R$ 107 milhões, suficiente apenas para pagar os salários dos envolvidos em projetos de conservação mantidos pelo Ministério do Meio Ambiente. Na verdade, a palavra correta seria “revertido” pois, considerando os lucros das atividades agropecuárias na região, o dinheiro deveria ser reinvestido na proteção das riquezas naturais, manutenção de fontes de água e auxílio no equilíbrio do clima global e que pertencem, em última instância, a todos os brasileiros. A estimativa da CI é que o ideal seria reverter uma quantia equivalente a R$ 227 milhões, pelo menos, algo como 0,5% do que foi investido na agropecuária através do Plano Safra de anos anteriores.

Pesquisas e soluções
Outra instituição com papel de destaque na região é a Embrapa, que mantém a divisão Cerrados e conta, atualmente, com cerca de 105 pesquisadores, além de parcerias com universidades em todo o país, com programas de manejo sustentável de recursos naturais, recuperação de áreas degradadas e pesquisas com plantas nativas com potencial econômico, além de projetos de agricultura familiar. “Em alguns trabalhos, onde acompanhamos o que acontece com áreas de fazendas abandonadas, percebemos que uma das características do Cerrado é conseguir recuperar, com certa velocidade, a cobertura vegetal original. Os piores casos são aqueles com pastagens que utilizavam espécies de gramíneas africanas para alimentação do gado”, diz José Carlos Souza Silva, da Embrapa e professor de botânica e ciências florestais na Universidade de Brasília (UnB). O pesquisador afirma que a instalação de grandes monoculturas sem um estudo específico do solo (que no Cerrado varia bastante), pode causar sérios problemas, entre eles os impactos do aquecimento global na área, previstos por modelos matemáticos: o avanço da Caatinga sobre o Cerrado. O pesquisador também afirma que as pesquisas na região vêm aumentando. “Não que não houvesse interesse antes, mas trabalhos mais recentes, especialmente de pesquisadores que trabalham com micro-organismos, têm trazido diversas boas surpresas. O Cerrado é riquíssimo em termos de biodiversidade, e falta muito ainda a descobrir”.

“Uma coisa que é preciso entender é que não há antagonismo entre produção agrícola e conservação. Ao aumentar a produção por meio da tecnologia ou projetos de pesquisa de solo não é preciso aumentar a área de plantio com tanta voracidade”, diz Leandro Baungarten. Mas é preciso regularizar a situação de fazendas implantadas irregularmente. “Algumas delas não mantiveram sua área natural de reserva legal. A solução é criar ferramentas e mecanismos para que isso seja resolvido”, sugere. Um dos meios de fazer isso seria regenerando as áreas devastadas, comprando outras áreas para serem conservadas ou comprando participações em reservas ambientais.

Mas ainda falta muito trabalho para que o bioma não pereça nas próximas décadas. Entre outras coisas faltam números confiáveis, de acordo com Baungarten. A maioria dos dados disponíveis para o Cerrado é, ainda, produzida a partir de estimativas (consequentemente há grande variação em quase todas as informações) e observações em trabalhos de campo, que aos poucos começam a ser compilados e transformados em publicações (leia resenha). E falta muito a avançar na legislação também. Ainda tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Proposta de Emenda à Constitução (PEC) 115/95 que inclui o Cerrado (e a Caatinga, graças a uma nova redação) nos biomas considerados patrimônio nacional, mas que está emperrada há quase 14 anos, na bancada ruralista. Será que o “bioma de segunda classe” será um dia promovido ou irá direto para o preocupante rol de ambientes em perigo de extinção?

(Por Enio Rodrigo, ComCiência / Envolverde, 13/02/2009)

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