Este relato é baseado nos documentos do processo aberto pelo Ibama para apurar os fatos que levaram à mortandade de dezenas de toneladas de peixes ocorrida em dezembro de 2008, nas obras da usina de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia.
O resgate dos peixes
Em 23 de dezembro de 2008, a coordenação de fiscalização da Superintendência do Ibama, em Rondônia, fez uma Comunicação de Crime pedindo providências ao MPF para instauração da competente ação penal e/ou Ação Civil Pública (ACP) visando a reparação de dano ambiental. O pedido encerra um extenso relatório técnico do IBAMA acerca do dano ambiental caracterizado por destruição da biota, ocorrido na área das obras das ensecadeiras da Hidrelétrica Santo Antônio de responsabilidade da Madeira Energia S.A.(MESA). Continua...
Os procedimentos de resgate dos peixes nas obras das ensecadeiras da Hidrelétrica Santo Antônio começaram em 20 de outubro de 2008, na margem direita do rio Madeira, no local da já extinta cachoeira de Santo Antônio, chamado Ilha do Presídio. O processo construtivo dessas ensecadeiras consiste no lançamento de diques de terra, a montante e a jusante da área a ser ensecada, formando reservatórios isolados do leito rio, com área e volume de água variáveis. Essas áreas represadas devem ser esgotadas por meio de bombas hidráulicas de sucção para que se possa construir a barragem.
“As capturas deverão ser realizadas por uma equipe da usina treinada e acompanhada por profissionais de nível superior especializados em resgates de peixes e/ou com conhecimento na identificação de possíveis novas ocorrências de espécies ainda não inventariadas.”
Os peixes retidos nessas grandes poças de água precisam ser “translocados” (expressão técnica) ou devolvidos ao rio, pois do contrário morrem por falta de oxigênio em conseqüência das alterações nas propriedades físico-químicas da água. É necessária, para esse procedimento, a atuação de equipes com experientes especialistas que devem ter por objetivo minimizar as perdas de peixes. O resgate tem que ser rápido, tecnicamente irrepreensível, bem planejado e com todo o equipamento indispensável.
Ressalto que, no caso das ensecadeiras de Santo Antônio, o período escolhido para o início do resgate coincidiu exatamente com o “defeso”, época em que os peixes sobem o rio para desova e reprodução. Estão aí, portanto, relatados neste preâmbulo, os quesitos que, não cumpridos, levaram ao desastre. Fazer o resgate da ictiofauna durante o “defeso” incorporou uma exponencial probabilidade de fracasso. E assim, aconteceu.
O desastre
Os eventos que conquistaram as manchetes da mídia começaram no dia 10 de dezembro de 2008, quando o IBAMA, que já tinha sido comunicado pela população sobre o mau cheiro e a presença de urubus que disputavam as carcaças dos peixes mortos, enviou uma equipe para fazer vistoria. De cara, detectaram a agonia de toneladas de peixes, a falta de oxigenação da água, o equipamento inadequado e a demora na operação de resgate.
Apesar das recomendações feitas aos responsáveis no dia 10/12, em 12/12, de volta ao local, a equipe do IBAMA verificou que os problemas continuavam com toneladas de peixes mortos e a falta de planejamento do pequeno grupo designado para o resgate. Na parte da manhã desse dia (12), os membros da equipe de resgate, ainda sem coordenação e em número insuficiente priorizavam a remoção dos peixes mortos em detrimento do salvamento dos que ainda agonizavam. À tarde havia mais peixes mortos.
No Projeto Básico Ambiental (PBA) está expressa a necessidade de se evitar a mortalidade nessa fase das obras. O documento de constatação de ordem técnica de 12/12, cita os fatores que induziram ao desastre: a rápida retirada da água das poças, cujo nível baixou 1,5 a 2 m em apenas dois dias; a alteração da temperatura; a qualidade da água; a lentidão na retirada dos peixes; a utilização de equipamento inadequado e insuficiente para a quantidade de peixes; a falta de equipamento para oxigenar a água, entre outros.
No dia seguinte, 13/12, ainda com um monitoramento insipiente, a situação estava tão incontrolável que era impossível proceder à análise e biópsia dos peixes devido ao estado avançado de deterioração da biomassa. A equipe técnica do IBAMA detectou alterações nas propriedades físico-químicas da água, negligência, imperícia e imprudência do consórcio MESA. Foi feita, então, uma notificação de grave lesão ao meio ambiente e violação da legislação.
Somente nesse dia (13/12), segundo o relato técnico do IBAMA, a responsável técnica pelo resgate da ictiofauna se apresentou à equipe e informou que toda aquela mortandade “era normal” e que os níveis de oxigênio não eram medidos desde o dia 10/12 graças a uma “pane” no aparelho de medição. A coordenação técnica do resgate dos peixes nas obras das ensecadeiras da usina de Santo Antônio, no rio Madeira, era da Dra. Carolina Rodrigues da Costa Doria, bióloga, professora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Sua função no Programa de Resgate da Ictiofauna era de “planejar e coordenar”, “orientar e acompanhar”.
O descaso
A demora entre a retirada dos peixes da água, o despejo nas caçambas metálicas (essas que se usam em ambiente urbano para colocar lixo ou entulho) e o transporte até o rio, comprometia sua sobrevivência. Outros problemas como o controle deficiente da temperaturas das poças, da caçamba e do rio; falta de procedimentos adequados que minimizassem a mortalidade; alta concentração de peixes devido ao “defeso”; além da falta de entendimento prévio sobre a escala da operação, foram apontados.
Os técnicos do IBAMA concluíram que faltou um planejamento que considerasse todas as variantes envolvidas, que não havia conhecimento prático e sobrava displicência. Deixaram, também, consignada, a omissão dos responsáveis, consórcio MESA e Dra. Carolina, quanto às alternativas técnicas que poderiam ter evitado os danos. Não sem certa indignação, registraram no documento que as fiscalizações do IBAMA autuam pequenos pescadores locais durante o “defeso”, quando a pesca é proibida, enquanto o empreendedor, nesse caso, por incúria, causava a mortandade dos peixes e o “comprometimento de milhares de espécimes da ictiofauna.”
Durante as vistorias entre os dias 10 e 12/12 o IBAMA exigiu que os peixes ainda vivos, que não teriam condições de sobrevivência devido ao estresse provocado pelo manejo inadequado, fossem acondicionados em câmara frigorífica para posterior distribuição a instituições beneficentes. Para isso seria preciso obter um laudo que atestasse a saúde dos peixes para consumo humano. O laudo da análise macroscópica foi assinado pela mesma Dra. Carolina Rodrigues da Costa Doria, Coordenadora do Laboratório de Ictiologia e Pesca / UNIR.
Encontrei nesse processo uma planilha de uma página, encaminhada ao Ibama pelo consórcio MESA, sem identificação, timbre ou rubrica de responsável, que confirma que os procedimentos de resgate dos peixes tivera início em 20 de outubro de 2008, na ensecadeira 4 e em 26 de outubro na ensecadeira 2 (de jusante), concluídos em 31/11. Em 1° de novembro começaram os trabalhos na ensecadeira 3, do córrego Mato Grosso, que duraram até 20/11. Em 21/11 começaram os preparativos na ensecadeira 1 [a do desastre]. E em 8/12 iniciaram o resgate nessa ensecadeira que durou até 12/12, quando já haviam sido detectadas as dezenas de toneladas de peixes mortos.
A equipe técnica do IBAMA voltou a fazer vistoria no período entre 15 e 17/12. Constatou que havia ainda um forte odor putrefato, muitos urubus e os peixes coletados estavam sendo levados e soltos na área de atracação de embarcações, local com muitas rochas onde eram arremessados de uma altura de 2,5m. A equipe ainda chamou a atenção para a proximidade do lugar de soltura com o canteiro de obras, onde não havia tratamento de água e esgoto. O último relatório de constatação do IBAMA, de 19/12, concluiu que houve negligência, falta de monitoramento sistemático, imprudência da equipe técnica e imperícia. Recomendaram a substituição da equipe por outra, com coordenadores e responsáveis técnicos com ampla experiência.
O PBA não foi cumprido
O resgate na ictiofauna ”visa evitar a mortandade de peixes que eventualmente fiquem aprisionados em trechos do rio que sofra redução ou interrupção da vazão”. Está expresso no PBA aprovado da usina de Santo Antônio, item 7, página 104. Porém, há um dado ainda mais interessante no item 7.5, Metodologia: “De acordo com o projeto de construção da empresa o lançamento das ensecadeiras ocorrerá nos 2º e 3º anos [grifo meu]. Portanto, as equipes devem ser treinadas antecipadamente e ficar a postos para realização de resgates.” (...) “As ações de resgate previstas nesse documento durarão cerca de 10 dias. Nestas serão resgatados os peixes encalhados e/ou aprisionados em poças de água, bem como os indivíduos que se acumulam nos poços formados a jusante da barragem em função do aumento da velocidade da água durante o desvio do canal do rio, especialmente durante o período de piracema [defeso]”.
“As capturas deverão ser realizadas por uma equipe da usina treinada e acompanhada por profissionais de nível superior especializados em resgates de peixes e/ou com conhecimento na identificação de possíveis novas ocorrências de espécies ainda não inventariadas.” Em que momento o lançamento das ensecadeiras [4 na margem direita] sofreu alteração no cronograma e acabou por coincidir com o “defeso”? Além disso, não foram encontrados relatórios de monitoramento do resgate da primeira fase, iniciado em 20 de outubro de 2008. Faltaram, também, os relatórios das vistorias do IBAMA nas obras das ensecadeiras 2, 4 e 3 (do córrego Mato Grosso).
Devido às informações insuficientes e contraditórias fornecidas pelo consórcio MESA e pela Dra. Carolina, no seu relatório ao Ibama, de 20/12 [depois dos eventos], seria importante conhecer os registros históricos detalhados das ocorrências e os monitoramentos da primeira fase. Há evidências de que a mortandade de peixes nas obras das ensecadeiras da usina de Santo Antônio tenha sido muito maior que a demonstrada.
(Por Telma Delgado Monteiro, telmadmonteiro.blogspot, 15/02/2009)