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cerrado impactos de hidrelétricas
2009-02-15
O presente texto tem como propósito formular alguns questionamentos e ainda trazer, a partir de experiências vivenciadas, contribuições para a reflexão sobre a degradação humana e ambiental francamente em curso no Cerrado brasileiro. As proposições construídas, frutos de debates amplos e democráticos, tão ausentes no momento, poderão resultar em ações concretas no seio da sociedade e que devem ser implementadas por uma vigorosa política de educação ambiental formal e informal, em conjunto com os movimentos sociais e por mobilizações populares, tendo em comum o posicionamento que questione os empreendimentos voltados para o setor produtivo, em especial o agronegócio e hidronegócio no Cerrado.

É nesse contexto que surge, em particular, a preocupação sobre os empreendimentos para fins de geração de energia elétrica, nos rios do bioma do Cerrado, sustentado pelo modelo da matriz energética brasileira, cada vez mais vulnerável e quase monolítica, que é por força hidráulica, potencializada pela queda d'água dos grandes lagos e dos barramentos artificiais.

Para a qualificação do debate e construção de um posicionamento político e ideológico, que leve em consideração a diversidade e a complexidade do tema, foram feitos análises, estudos e debates de riquíssimos e vastos documentos. Portanto, é necessário uma construção histórica e coletiva sobre os processos de licenciamentos ambientais de empreendimentos diversos e de construções de usinas hidrelétricas, com assessoramento de segmentos atingidos direta e indiretamente por barragens e por instalações de empreendimentos econômicos regionais de várias naturezas, visando sempre às intervenções e controles sociais plurais e democráticos, possibilitando, junto a outros setores, a inclusão de todos os atores e agentes sociais.

É oportuno introduzir no debate um novo instrumento para a proteção do meio ambiente e de interesses sociais difusos e coletivos, com dados e informações para os devidos questionamentos, assegurando à sociedade civil organizada e aos movimentos populares da região geográfica de abrangência, o direito à informação, ao questionamento e ao contraditório.

Vale ressaltar que atualmente estão localizados dentro da área de abrangência das bacias hidrográficas do rio Paranaíba, Tocantins, Araguaia e São Francisco, no estado de Goiás, importantes empreendimentos altamente impactantes, e estudos e enquadramentos de vários outros vinculados ao agronegócio, agroenergético e de aproveitamentos hidrelétricos, que se apresentam nos estudos e licenciamentos, isolados e compartimentados, negligenciando e/ou desconsiderando os efeitos e processos de interações e de sinergia que ocorrem no meio antrópico, físico e biológico.

Diante dos fatos e das intervenções relevantes para o ambiente natural e para a sociedade, especificamente para o segmento dos atingidos direta e indiretamente pelos empreendimentos e atividades de natureza econômica, argumentamos em defesa da participação popular e do controle social e democrático, tendo como finalidade precípua o direito à formação e à informação formal e informal.

A nossa preocupação se fundamenta, ainda, nas discussões e questionamentos apresentados junto aos licenciamentos ambientais de vários empreendimentos que, no passado não foram considerados por parte dos órgãos ambientais. São fartos os documentos analisados e discutidos em momentos apropriados, sempre por profissionais e militantes das causas socioambientais, percebendo com perplexidade que a maioria da população, ou quase a sua totalidade, desconhece a relevância do assunto.

Dentro de Goiás, estado totalmente inserido dentro do bioma do Cerrado, no eixo sul/sudeste/sudoeste, busca-se o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos mananciais mais altos da bacia do Paraná. No eixo sudoeste e oeste, o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos mananciais do alto e médio Araguaia. No eixo norte, busca-se o aproveitamento hidrelétrico dos mananciais do alto do rio Tocantins. É nesse ambiente genuinamente de Cerrado, ecossistema marginalizado pelas leis ambientais e constitucionais e pelos programas governamentais diversos, que vários projetos estão em fase de estudo, de licenciamento e de implantação, especificamente para irrigação e geração de energia elétrica.

O total de empreendimentos instalados e planejados para o estado de Goiás é superior a 100 hidrelétricas (Central de Geração de Energia - CGE; Usina Hidrelétrica - UHE; Aproveitamento Hidrelétrico - AHE; e Pequena Central Hidrelétrica - PCH), somando os em estudo, enquadramento e licenciamento, deverão inundar uma área superior a 6.500 quilômetros quadrados (Km2), com os 3.500 Km2 já inundados, chegará ao montante de um milhão de hectares de terras férteis, ocupadas quase sempre por pequenos e médios produtores que trabalham em regime familiar.

Sendo que da margem esquerda do rio Paranaíba, no estado de Minas Gerais, mais de uma dezena de barragens completarão o futuro cenário da região do Cerrado brasileiro - espaço territorial que é considerado o berço das águas e refúgio da fauna e flora endêmicas ou em risco de extinção, e remanescente dos últimos laços culturais e das tradições seculares dos povos da região central do Brasil: a cultura cerradeira.

Constata-se que os rios do Cerrado brasileiro têm sido agredidos por ações e lançamentos de dejetos e de outros tipos de efluentes e resíduos de natureza diversa, comprometendo e promovendo alteração física, química, físico-química e biológica, o que é frequentemente noticiado e denunciado pela imprensa, em vários episódios tristemente ocorridos, o que vem reforçar a preocupação.

A região do Cerrado brasileiro já se apresenta em profundo desequilíbrio, quer pela falta de ordenamento e planejamento do uso intensivo e extensivo do solo e pelo adensamento populacional urbano, como no entorno de Brasília e de Goiânia, quer pela abertura das fronteiras agrícolas para a produção em escala comercial.

Elas ocupam os topos e platôs das chapadas e chapadões, induzindo o escoamento e carreamento de grande quantidade de sedimentos erosivos junto aos corretivos de solos (usualmente o calcário calcítico e dolomítico e o gesso agrícola) e nutrientes químicos (NPK), associando-se aos danosos agrotóxicos e lançamentos de esgotos in natura, potencializados pelos desmatamentos incontroláveis, exercendo enorme pressão nos ambientes de nascentes e de veredas, que são consideradas os oásis do Cerrado brasileiro.

Verifica-se que os vales dos rios do Cerrado foram, no passado, habitados e utilizados como refúgios de antigos grupos humanos e das tradicionais nações e povos indígenas, deixando um enorme legado de testemunhos e registros em forma de utensílios líticos, cerâmicos, cemitérios e de pinturas rupestres, o que até o presente momento muito pouco fora feito de concreto para a preservação, recuperação, valorização e disseminação desse patrimônio da humanidade.

Notadamente, esses empreendimentos citados anteriormente, em uma visão de conjunto, vão acarretar uma série de macro-impactos ecológicos e sociais irreversíveis que estão sendo ignorados ou negligenciados pelos órgãos e agências de fiscalização e licenciamento ambiental, uma vez que, frente aos documentos produzidos e discutidos a esse respeito, pouco ou quase nada resultou em algo concreto por parte desses órgãos.

O momento é muito oportuno, pois há o compromisso social e ambiental do atual governo federal e, com a promulgação de leis, resoluções e dispositivos constitucionais, das leis ambientais e dos recursos hídricos, assinaturas de tratados e acordos nacionais e internacionais, tais como o Tratado de Kyoto e a Agenda 21, que coincidem com vários processos de licenciamentos ambientais para o início de obras de hidrelétricas e implantação de um conjunto portentoso de usinas de álcool na região de Cerrado.

Há ainda, a preocupação com a divulgação dos possíveis riscos ambientais com as mudanças climáticas, segundo o que se apresenta no Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), aliado aos impactos regionais nos meios natural e social que esses empreendimentos vão ocasionar, particularmente no sul, sudoeste, sudeste e norte do estado de Goiás, regiões intensamente exploradas nas últimas décadas e que se projetam para um futuro próximo como o celeiro para os biocombustíveis.

São vários os questionamentos que a cada momento surgem em decorrência dos estudos, debates e análises, pois são comprometedores para cada um dos empreendimentos isolados, inicialmente, e em conjunto, posteriormente. Pesa ainda, as riquezas e as variedades da cultura e tradições seculares e da biodiversidade da fauna e da flora do Cerrado, uma existência de milhões de anos. É sempre o paradoxo do custo e benefício que orienta as tomadas de decisões governamentais e privadas.

Contudo, entre as dezenas de interrogações e questionamentos, destacamos as mais corriqueiras, que nem sempre são respondidas e consideradas, tais como: será compensada a degradação da cobertura vegetal nativa, compreendida de mata de galeria, de encosta e aluvial, até então preservadas? Haverá o extermínio da fauna (compreendendo a terrestre, avifauna, ictiofauna e limnológica)? Como evitar o extermínio de mais de 50% das espécies de peixes de piracema em decorrência do barramento e da transformação do ambiente hídrico, de lótico para lêntico?

Verifica-se a necessidade de mais estudos verticalizados e de mais debates consistentes sobre a degradação dos ambientes hídricos e dos futuros lagos, com possíveis comprometimentos na manutenção da qualidade das águas, causado pela erosão das encostas e dos topos das chapadas e consequente sedimentação, em decorrência do uso intensivo e extensivo do solo por atividades agropecuárias que, transportados por ocasião das chuvas sazonais, favorecem o intenso processo de assoreamento dos reservatórios e de seus afluentes, como os que drenam a densamente populosa região da bacia hidrográfica do rio Paranaíba (Alto Paraná).

Dessa forma, pensar com ética sobre a situação atual é envidar esforços por outro modelo de desenvolvimento para o Cerrado brasileiro, bem como, a implementação de uma agenda positiva para esse bioma, sendo, inicialmente, uma contribuição para o debate, incluindo a educação ambiental formal e informal, subsidiando as tomadas de decisões, contrapondo a situação real e patente da desinformação e da negligência, se não, da subserviência do público diante do privado e de toda a postura antiética para com a natureza e para com os povos do Cerrado, remanescentes de uma cultura secular de existência e história que, a toda sorte, lutam para resistir aos impactos gerados por um modelo econômico excludente, voltado unicamente para a produção, reprodução e concentração do capital que, na atualidade, é implementado por uma política agrícola e agrária com uma inovadora tríade: agronegócio, hidronegócio e agroenergia.

Em última análise, vale considerar que a devida ausência das preocupações acima descritas confere negligência no trato para com o meio ambiente e para com a sociedade, caracterizando um verdadeiro crime contra a natureza e um afrontamento às leis ambientais, portanto, uma conspiração contra a vida no Cerrado em suas mais variadas formas e expressões.

(Por Laurindo Elias Pedrosa, ComCiência, Envolverde, 13/02/2009)

* Laurindo Elias Pedrosa é professor do curso de geografia do campus de Catalão da Universidade Federal de Goiás (UFG), foi presidente da Associação de Geógrafos do Brasileiros, Seção Catalão (gestão 2006/2008) e perito ad hoc de crimes ambientais Diretoria Geral de Polícia Civil de Goiás/Superintendência de Polícia Judiciária/9ª Delegacia Regional de Polícia Civil.

* O presente texto foi extraído de documentos produzidos e subscritos por vários seguimentos organizados da sociedade civil e movimentos ambientais e populares, protocolados junto a diversos órgãos públicos, jurídicos, de licenciamento e fiscalização, portanto, uma construção coletiva com expressiva contribuição dos professores do curso de geografia do campus de Catalão/UFG, como também parte de projeto de pesquisa e extensão da PRPPG/UFG, com o título “A hidrelétrica Serra do Facão: o outro lado da moeda”, coordenado por Helena Angélica de Mesquita.

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