Explicar o conceito de ecologia dos saberes, aplicado à área da saúde coletiva é o que faz o professor Marcio Pereira na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line. Ele esclarece que esse conceito garante a possibilidade de se “construir uma política de conhecimentos e saberes mais democrática, respeitando os conhecimentos e práticas, no caso da saúde, ligados à população em geral”. Em suas respostas, Marcio defende que “quando trazemos essa discussão para dentro da universidade, ajudamos não só a democratizar o conhecimento e a sua produção, mas a própria universidade, fazendo com que ela se comprometa mais com as demandas populares”.
Marcio Florentino Pereira é mestre em Ciências da Saúde pela UnB, especialista em Políticas Públicas de Saúde pela UFGO e em Odontologia Social pela Universidade Católica de Minas Gerais, e bacharel em Odontologia pela UFGO. Atualmente, é professor no Departamento de Saúde Coletiva da UnB e atua como consultor da OPAS/OMS na organização dos Sistemas e Serviços de Saúde na RIDE/DF e na estruturação do Pólo de Educação Permanente em Saúde da RIDE/DF.
O que podemos entender pelo conceito de ecologia dos saberes, dentro do campo da saúde coletiva?O conceito de ecologia dos saberes é utilizado e formulado pelo professor Boaventura de Sousa Santos - que é uma referência do pensamento social crítico - no qual ele busca formular uma perspectiva de alternativas para o que chama de uma globalização contra-hegemônica. Nesse sentido, ele discute a própria perspectiva da ciência, hoje ligada a uma perspectiva da modernidade, de considerar válido apenas o que a ciência valida. Nessa linha da construção da ciência e do projeto da modernidade, vários saberes ou conhecimentos foram sendo desqualificados, até considerados ausentes, o que ele chama de “sociologia das ausências”. Esses saberes, muitos deles vinculados aos conhecimentos e práticas populares, aos conhecimentos indígenas, desaparecem, não sendo reconhecidos pela ciência como algo válido. Aí se constitui o que ele chama de “monocultura do saber”. Toda a monocultura, em princípio, provoca algum prejuízo. A discussão que trazemos para o campo da saúde, considerando o conceito da ecologia dos saberes, é a possibilidade de trabalhar a saúde não apenas com uma dimensão de validade que venha da ciência ou do modelo biomédico-científico. Ele garante que possamos construir uma política de conhecimentos e saberes mais democrática, respeitando os conhecimentos e práticas, no caso da saúde, ligados à população em geral.
Qual a importância de trazer para dentro da academia a sabedoria popular em relação à saúde?O primeiro ponto se relaciona com essa perspectiva de construirmos uma ciência mais comprometida com as necessidades, com a realidade e a demanda popular. Nessa ideia da cientificidade do conhecimento, há um distanciamento visível do conhecimento científico das necessidades e demandas da população. Isso quer dizer que o mercado acaba se apropriando desse conhecimento também para impor as suas políticas e as suas necessidades, sobrepondo a da população. Quando trazemos essa discussão para dentro da universidade, ajudamos não só a democratizar o conhecimento e a sua produção, mas a própria universidade, fazendo com que ela se comprometa mais com as demandas populares. No caso da saúde, isso repercute na ideia de também pensarmos outro tipo de saber em saúde que, de fato, venha a ter impactos e resultados frente aos problemas de saúde coletiva. A prática médica tem perdido muito da sua legitimidade, enquanto prática científica e profissional, porque não tem conseguido dialogar com os saberes populares e construído uma alternativa, o que o campo da saúde coletiva, em princípio, propõe.
Como o meio rural pode ser um exemplo da ecologia dos saberes e da participação popular? Ainda temos, no caso do Brasil, uma história muito vinculada a esses conhecimentos de saberes e práticas que vêm das comunidades rurais. Antes de termos essa estrutura de um saber mais científico e urbano, tínhamos nossas raízes vinculadas a esses conhecimentos. Então, acho que há uma perspectiva de não perdermos isso, que está muito ligada a nossa tradição indígena e quilombola. A nossa saúde, de alguma maneira, perpassa toda a nossa história, não sendo apenas com base nesse modelo urbano que prevalece hoje. Quase toda a família ainda busca as suas benzedeiras, o uso de plantas medicinais, seus chás. Como isso pode ser importante para essas comunidades, para um enfrentamento de problemas de saúde, existe uma possibilidade de resgate desses saberes. Obviamente isso não se restringe ao meio rural. A ideia da ecologia dos saberes passa por investigarmos como, mesmo no contexto urbano, as pessoas estão construindo os seus saberes e práticas relativos à saúde. A ideia é de que o poder, no caso da saúde, não fique só na mão do profissional ou da técnica, mas que se perceba nas pessoas, comunidades e organizações populares alternativas para construir um novo modelo de saúde.
Em que medida a ecologia dos saberes é ou pode ser contemplada pela seguridade social e pelas redes de proteção social?A ecologia dos saberes parte muito do princípio de valorização e democratização do saber e das práticas. Então, isso tudo vai muito na direção da democratização do Estado e das políticas públicas. Na verdade, quem banca esse modelo científico, biomédico, com seus hospitais e suas universidades, de alguma maneira, é o Estado. Agora, numa perspectiva de democratização, participação e de ecologia dos saberes, de reconhecimento de novos atores e sujeitos, o Estado também tem que ser o grande estimulador e propulsor dessa política. Uma política pública que reforce, requalifique socialmente as comunidades, as famílias e os excluídos, fará surgir essa democratização, seja do saber, seja do direito ou do acesso. É essa lógica que resultaria na globalização contra-hegemônica, no caso da saúde.
Como o senhor percebe que a população brasileira, de forma geral, participa dos processos em saúde no Brasil? Pode estabelecer algum paralelo com a situação em países como Cuba, Venezuela e Portugal?Nós temos acumulado uma prática de resistência do nosso povo e das comunidades, em manter os seus conhecimentos e, obviamente, reivindicar os seus direitos. Se olharmos para a nossa história de luta colonial, de resistência antiimperialista, a nossa luta política, de alguma maneira, foi sempre permeada por uma resistência popular. No caso da saúde, penso que isso aparece também, mas o momento mais destacado que temos dessa participação política do povo na saúde é esse período que ainda estamos vivendo, desde a Constituição de 1988, ou seja, da luta pela redemocratização, onde a saúde aparece como elemento central desse processo. Isso resulta tanto na política que temos hoje, no SUS, e resulta também nessa ideia de institucionalizar, ou seja, a participação popular tem um papel fundamental no controle social do SUS, da formulação das políticas e das conferências.
Eu diria que este é um momento muito rico, sobre o qual ainda estamos nos debruçando, em termos de avaliação, o que outros países têm se interessado em conhecer mais de perto. Eu estive em Portugal, que tem outras experiências de participação também, mas não na riqueza do que temos nesses últimos anos, com a efervescência dos movimentos sociais do Brasil. Com relação às experiências de Cuba e Venezuela, eu diria que o que acontece no Brasil acontece em outros países da América Latina, com algum diferencial. Nós vamos aprofundar essa discussão em um projeto de cooperação que faremos com esses países, para conhecer um pouco mais essa trajetória, porque os processos de redemocratização são diferenciados nesses países, considerando Brasil, Venezuela e Cuba. Queremos ver como isso se dá dentro da saúde, considerando a participação mais direta da população.
Como o senhor avalia a saúde pública no Brasil hoje? Qual sua opinião sobre o SUS e qual o espaço que tem, nesse sentido, o conceito de saúde coletiva?Eu diria que a trajetória da saúde pública no Brasil, do ponto de vista mais histórico, desde a década de 1970, tem uma construção muito influenciada pelos modelos europeus, americanos e pelo modelo da medicina social inglesa. A partir da década de 1980, com o SUS, principalmente com a incorporação dessas ideias de que o direito social à saúde pressupõe a participação popular e, portanto, uma cidadania mais passiva, como no padrão europeu, mas que a população tem que ser sujeito dessa construção, são incorporadas essas ideias da participação, que são muito vinculadas às nossas trajetórias de formação do povo, da cultura. Isso tudo amplia o conceito de saúde pública para o que chamamos de saúde coletiva. E ela é, hoje, quase um conceito que orienta um modelo de saúde para além da saúde pública tradicional. O coletivo é mais que o público; pressupõe um reconhecimento de que o povo, a cidadania, tem um componente popular mais importante no Brasil.
Quais os maiores desafios hoje no país no que diz respeito aos modelos assistenciais de atenção à saúde?O primeiro desafio é esse que acabo de dizer. Nossa ideia de assistência, de atenção em saúde pública ainda está muito orientada por uma medicina social. Esta é uma ação voltada para compensar a ideia de um assistencialismo, de compensar para os mais pobres um conjunto de atividades e de atenção. Isso esvazia a ideia do direito e da cidadania, de forma mais ampliada, que é o que discutimos no conceito da saúde coletiva. Nosso modelo ainda é muito centrado no médico, na assistência hospitalar; todo o poder de decisão é muito centralizado nesse espaço de produção da técnica. De alguma maneira, o Estado, que gesta o sistema, fica refém desse poder biomédico. Então, precisamos ampliar a nossa perspectiva da atenção em saúde, onde a ideia da ecologia dos saberes tem impacto na medida em que ela pressupõe que mais que usuário e paciente, existem sujeitos detentores de conhecimentos e de direitos. O respeito à vida é um princípio básico, que orienta tudo isso.
O que faria parte de uma educação permanente para que ocorra o fortalecimento e a participação popular no sentido de controle social das políticas públicas de saúde?O primeiro aspecto é, de fato, incorporarmos essa ideia da educação permanente como uma ação que cotidianamente transforme a realidade. O conceito de educação permanente está muito definido pela ideia de que, através da educação, é possível transformar, incorporando os conceitos de Paulo Freire. Trazendo isso para o campo da saúde, vamos trabalhar o cotidiano dos serviços, dentro da formação dos profissionais e também articulando essa formação em conjunto com esses novos sujeitos - conselheiros de saúde, as equipes de saúde da família, os agentes comunitários. São elementos que estão do nível local ao nível nacional, ostentando essas transformações que o sistema prevê. O modelo de educação que temos acaba sendo muito tecnicista e não instrumentaliza esses sujeitos para o enfrentamento dos problemas que surgem no dia-a-dia. Para isso, é preciso usar as mais diferenciadas possibilidades, técnicas e estratégicas que vão desde transformar a unidade de saúde em um espaço formador, além de ser um espaço de cuidado. Qualquer espaço na comunidade pode ser de educação permanente em saúde. Nós vimos que a própria comunidade, ao longo do tempo, foi desqualificando os seus próprios saberes em função desse saber hegemônico. Então, de alguma maneira, temos que promover esse resgate, porque estamos muito acostumados a importar e esquecemos que nós mesmos construímos alternativas.
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Instituto Humanitas Unisinos, 11/02/2009)