Ao propor e depois arquivar o projeto da Praça da Soberania, em Brasília, Oscar Niemeyer estimulou um debate que o Brasil se desacostumou de fazer ao tornar-se um país periférico no mapa da arquitetura mundial
- Desistiu. Recuou. Cansou. Perdeu. Muitos verbos foram conjugados para definir a decisão que Oscar Niemeyer, aos 101 anos, tomou na semana passada: ele próprio determinou que fossem arquivados os desenhos do projeto que fez para a Praça da Soberania, uma imponente edificação, com uma garagem subterrânea, pensada para brotar na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
A polêmica em torno do projeto mobilizou arquitetos pelo País, especialistas do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e até mesmo o Ministério Público Federal, que ameaçou embargar a futura obra. Ciente de que não se trabalha o concreto sem pensar em dilatação, Niemeyer foi hábil no comunicado sobre o fim da praça: "Há esperança, quem sabe, de um dia sua realização tornar a ser cogitada".
"Foi uma demonstração de elegância da parte dele", rebate contra todas as conjecturas verbais da semana um dos mais respeitados críticos de arquitetura do Brasil, o diplomata André Corrêa do Lago. "Se fosse uma discussão arquitetônica, Niemeyer não cederia. Mas ele sabe que é uma discussão sobre urbanismo e a praça não poderia ser erguida naquele lugar. Então retirou o projeto, com muita classe." O episódio tem seus ângulos benéficos, avalia Corrêa do Lago, pois estimula a discussão sobre como preservar a capital brasileira, que fará 50 anos em 2010 e continua sendo considerada a maior obra da arquitetura do século 20.
Nesta entrevista exclusiva ao Aliás, de seu gabinete no Itamaraty, Corrêa do Lago retoma aspectos marcantes da trajetória de Oscar Niemeyer, a quem coloca no patamar dos gênios - "embora nem tudo que tenha feito seja genial" - lançando um olhar sobre a arquitetura que sucede ao mestre.
Acha que o Brasil está fechado ao debate internacional no setor, que embora tenha havido uma sensível melhora nos projetos residenciais, nossos prédios corporativos continuam lastimáveis e indigna-se contra a construção de um shopping center grudado em condomínios verticais, como hoje se vê na paisagem de São Paulo. "Por que teremos de olhar para aquilo pelo resto dos nossos dias?", pergunta-se até com exasperação.
Autor de "Oscar Niemeyer, uma Arquitetura da Sedução" (publicado pela Bei Editora) e Ainda "Moderno?" ( escrito com Lauro Cavalcanti, pela Nova Fronteira), Corrêa do Lago tomou gosto pela arquitetura ainda na juventude, em viagens com a família. "Me apaixonei mesmo quando vi pela primeira vez, aos 15 anos, o Seagram Building, de Nova York, e a Farnsworth House, construída em Illinois, ambos projetos do Mies van der Rohe. E os vi em fotos maravilhosas de Ezra Stoller", recorda.
Entretanto, só começou a escrever sobre arquitetura aos 30 anos, depois de ter lido e viajado muito. Hoje, integra o comitê de arquitetura e design do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, participando da escolha de obras e objetos que passam a integrar o acervo permanente da instituição.
Na entrevista a seguir, defende em vários momentos a "experiência salutar" de países com tradição arquitetônica encomendarem obras a profissionais de outras nacionalidades. Aos resistentes à ideia, lembra como foi decisiva a vinda de Le Corbusier ao Brasil em 1936, como consultor, alimentando de ideias e possibilidades os jovens talentos locais. Entre eles, o futuro arquiteto de Brasília.
O Estado de S. Paulo - Frase clássica de Oscar Niemeyer: "Eu não me interesso pela crítica". No entanto, diante da polêmica provocada pelo projeto de construção da Praça da Soberania, em Brasília, ele acabou desistindo da ideia. Como avaliar essa atitude?
André Corrêa do Lago – O caso foi bem interessante porque não houve, em polêmicas anteriores de Niemeyer, um espaço tão amplo para debate. Houve aquela discussão sobre o projeto do aeroporto de Brasília, no regime militar, quando a proposta do arquiteto foi rejeitada em favor de uma apresentada por alguém da Aeronáutica. É claro que projeto dele era infinitamente melhor. Niemeyer fez um escândalo na época, mas ainda assim continuou construindo enlouquecidamente em Brasília - por ironia, fez o próprio setor militar. Retomando ao tema da praça, creio que nunca houve um tal questionamento de Niemeyer em tempos democráticos. Isso foi importante. O elemento decisivo para que ele retirasse a proposta se deve ao fato de que não estava ocorrendo um debate sobre arquitetura, e sim sobre urbanismo. O questionamento não era em torno da qualidade, mas da localização do projeto.
OESP – Ou seja, discutiu-se a intervenção que ocorreria num grande vazio.
ACL – Uma intervenção sobre o Plano Piloto. Argumentos contra isso foram muito fortes. Eu citaria, por exemplo, o da arquiteta Maria Elisa Costa, filha de Lucio Costa. Ela disse uma coisa fundamental: quebrar o plano para construir a praça proposta por Niemeyer seria abrir a porta para os horrores que viriam depois. Se o debate fosse arquitetônico, Niemeyer não recuaria. Mas não recuar diante dos riscos da violação do plano urbanístico seria complicado.
OESP – Como assim?
ACL – O tombamento de Brasília pela Unesco, em 1987, é único: o Plano Piloto não foi tombado pelo que tem de construído, com exceção dos edifícios importantes, mas pelos espaços não construídos. Além da parte monumental, foram tombados os vazios, num engessamento providencial à preservação. Um edifício de uma superquadra, com seus seis andares, pode até ser derrubado, desde que em seu lugar se construa outro que tenha no máximo a mesma área. Isso impede que a especulação imobiliária entre numa superquadra, onde há jardins, e aumente o número de edifícios. Aquele vazio onde Niemeyer queria construir a praça está tombado. Nada pode ser erguido ali.
OESP – A reação teve um caráter, por assim dizer, exemplar?
ACL – Sim. E eu acho que foi da maior elegância Niemeyer se dobrar e não ir adiante em um debate no qual ficou claro que a questão central não era a arquitetura, mas o urbanismo.
OESP – Brasília comemorará em 2010 seus 50 anos e há muito se diz que ela envelheceu prematuramente, que é uma cidade datada. Há toda uma preocupação preservacionista em relação a ela. Estaríamos embalsamando a capital brasileira?
ACL – Não. O único interesse de Brasília é preservá-la. Sempre cito uma frase que li certa vez na revista The Economist: Brasília é, a um só tempo, a glória e o túmulo do ideal modernista. Ninguém construiu no século 20 um exemplar tão forte dos ideais modernistas. E justamente por tê-la construído, revelamos os limites desses ideais. Se você "normalizar" a capital, ela passa a ser mais uma horrenda cidade brasileira. Apesar de eu achar que devem ser feitas microintervenções em áreas mais complicadas, a preservação do plano original é o que dá ao Brasil o título de país que, no século 20, executou o mais importante projeto arquitetônico de uma era. Eventuais concessões para normalização de Brasília têm de ser muito cuidadosas, não podem ferir sua concepção original. Claro que seria muito mais prático para os moradores da Place Vendôme abrir uma padaria lá, mas ninguém vai fazer isso. A praticidade é coisa muito perigosa na dimensão artística. Deixe-me dizer o que eu julgo alterável no plano. Lucio Costa acentuava que Brasília deveria ter quatro escalas importantes: a residencial, a monumental, a gregária e a bucólica. A dimensão residencial é basicamente a das superquadras e casas. A monumental, toda aquela parte dos ministérios, palácios, etc. A bucólica diz respeito às áreas verdes. E a parte gregária é a dos espaços de convivência, onde as pessoas se encontram. O maior insucesso de Brasília está na dimensão gregária. Brasília não tem o convívio das esquinas.
OESP – A Praça da Soberania não teria justamente essa dimensão gregária, para além da monumentalidade?
ACL – As praças de Niemeyer não portam os elementos que incentivam a escala gregária - não têm espaços cobertos, não têm árvores. Aliás, isso ocorre na arquitetura moderna de modo geral, não só nas obras projetadas por ele. Em São Paulo há um bom exemplo disso, no Memorial da América Latina, de sua autoria. Digamos que Niemeyer não seja exatamente lembrado pelos espaços gregários de sua obra.
OESP –É comum vê-lo comentar sobre a praça que fez em Havre, na França, muito combatida na época da construção por ser toda rebaixada. Questionado sobre isso, o arquiteto explica que resolveu fazê-la daquele modo porque no local venta muito e as pessoas precisam se abrigar.
ACL – Niemeyer tem um argumento maravilhoso para não colocar árvore em praça. Ele cita as praças mais famosas do mundo - San Marco, em Veneza, Navona, em Roma, Vendôme, em Paris - e frisa que nenhuma delas tem árvore. Acha que praça é um lugar para você apreciar a arquitetura. Se tiver árvore, atrapalha a visão. Em Brasília, esse tipo de crítica atingiu o próprio Lucio Costa, por causa da Praça dos Três Poderes, projetada por ele, onde nunca vejo alguém, a não ser turistas que vão lá por alguns momentos e fogem em seguida do sol. Quando Niemeyer argumenta que a Praça da Soberania seria uma área para as pessoas se reunirem, você olha o projeto, sente a falta de abrigos e conclui que iria lá no máximo uma vez na vida.
OESP – Não é paradoxal que um arquiteto com as convicções que Niemeyer reitera, de preocupação com o homem, com a dimensão social - a despeito de sua insustentável defesa de Stalin - não tenha entre os destaques de seu trabalho a dimensão gregária?
ACL – Não sei se chega a ser um paradoxo. É um grande arquiteto e, na concepção dele, uma praça deve privilegiar a arquitetura. Até porque uma praça vazia destaca os edifícios do entorno em todos os seus aspectos.
OESP – Voltando à reflexão da Economist, se pensarmos que Brasília seja a glória e o túmulo do ideal modernista, devemos entendê-la como uma cidade que começa e termina em si mesma?
ACL – Não é a cidade do futuro, não é um exemplo a ser seguido. Talvez até pudéssemos falar que ela acaba em si mesma, mas isso soaria negativo - e Brasília é tão relevante... Para se ter uma ideia, a frase na Economist saiu numa edição que eles fizeram em 2000 sobre o que houve de relevante no mundo nos últimos mil anos. Mil anos!
OESP – Podemos fazer o mesmo raciocínio para Niemeyer? Ele seria a glória e o fim de um ideal de arquitetura?
ACL – De certa forma, sim. Niemeyer sempre diz que faz a arquitetura dele e respeita a dos outros - uma maneira brilhante de não sair criticando quem quer que seja. O ápice da sua carreira é Brasília. Mas ele sempre trabalhou muito e nenhum artista é bom o tempo todo. Só que quando você vê o Auditório do Ibirapuera, em São Paulo sente o retorno de Oscar Niemeyer, após um período de relativo esquecimento, aos 95 anos. Ali ele fez algo tão genial que chegou a ser humilhante para os outros arquitetos brasileiros. Agora, essa coisa de dizer que ele "afogou" os colegas é uma injustiça. O que sempre fez foi levantar a bola da arquitetura e dos arquitetos brasileiros.
OESP – Uma das críticas do meio é a de que ele teria sido beneficiado pelo status de "arquiteto oficial". Depois de ter feito as obras da Pampulha, em Minas, foi escolhido por JK para ser o arquiteto de Brasília. Mas não seriam os governantes os grandes beneficiados pelo trabalho dos arquitetos? Exemplos: Mário Covas é lembrado como o governador que fez a Sala São Paulo. Agora o governador José Serra contrata os serviços de um escritório internacional de arquitetura para projetar um teatro de dança para a cidade. Levará sua marca, claro.
ACL – A história da arquitetura sempre dependeu de governantes, milionários, enfim, pessoas influentes que bancam projetos capazes de mudar o rumo da arquitetura. E Brasília é um marco inquestionável nesse sentido. Vocês já imaginaram se o Juscelino tivesse contratado os serviços de um arquiteto medíocre e desse a ele missão de conceber a Esplanada dos Ministérios, a Praça dos Três Poderes, os palácios, a catedral? Foi o que aconteceu na Malásia. O país ganhou uma capital nova que é um vexame internacional em termos arquitetônicos. Ainda bem que tivemos o Niemeyer!
OESP – O projeto do teatro de dança para São Paulo foi encomendado ao escritório suíço Herzog & De Meuron, que concebeu o "Ninho de Pássaro", aquele formidável estádio chinês. Como é que o convite aos suíços ecoa no Brasil, considerando que o governador paulista poderia escolher entre vários nomes da arquitetura nacional?
ACL – Não sou contra o convite feito aos arquitetos suíços, não. Neste ponto entramos num fenômeno contemporâneo, que é o da convocação de arquitetos estrangeiros por países de tradição arquitetônica. É uma situação que não pode ser comparada à do Qatar, por exemplo, país que importa grandes arquitetos porque não os tem lá. O movimento do governador Serra deve ser interpretado muito mais na direção do que acontece na Espanha, França ou Suíça, países com ótimos arquitetos locais, mas que ao mesmo tempo vêm fazendo obras relevantes com arquitetos estrangeiros.
OESP – Mas sempre se dirá: por que "importar" arquitetos se temos dois Prêmios Pritzker vivos, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, veteranos respeitáveis, como o carioca João Filgueiras Lima, o Lelé, radicado na Bahia, e uma lista de ótimos profissionais?
ACL – Volto ao meu argumento. Trabalhar com arquitetos de fora muito é saudável. Prova disso é o Masp, grande projeto da italiana Lina Bo Bardi. Serra, homem viajado, percebeu essa tendência internacional que vem muito forte. Há uns 20 anos a Espanha é o país com a melhor arquitetura do mundo. Isso não impediu que se contratasse um arquiteto americano para fazer o Guggenheim de Bilbao. Como também não impediu que a catedral de Los Angeles fosse projetada por um arquiteto espanhol. E essa catedral está ao lado de um edifício do canadense Frank Gehry, que se tornou ícone da arquitetura americana. Então, trazer para São Paulo o Herzog & De Meuron significa jogar a arquitetura brasileira no contexto de um debate contemporâneo, que passa até pelo questionamento sobre a capacidade de arquitetos interpretarem condições que lhe são estranhas. O arquiteto australiano Glenn Murcutt, também detentor do Pritzker, só constrói no país dele e nas regiões onde tem completo conhecimento dos ventos, das chuvas, dos animais, das plantas, enfim, espaços sobre os quais tem domínio total. É um caso extremado de alguém que fica na própria terra. Mas se tomarmos a lista dos premiados com o Pritzker, veremos que está todo mundo com obras em vários lugares. E, convenhamos: não foi decisivo o Brasil ter "importado" o suíço Le Corbusier no passado?
OESP – Ele veio a convite do Gustavo Capanema para pensar o projeto do Ministério da Educação e Saúde Pública no Rio de Janeiro, certo?
ACL – Sim, mas é preciso esclarecer o panorama que se abre naquele momento: o Brasil desenvolveu nos anos 40, 50 inúmeros projetos ligados a uma linha da arquitetura moderna, que era a do Le Corbusier. Havia outras linhas possíveis, tendo a frente nomes como Walter Gropius, Mies van der Rohe, Gregori Warchavchik - este tinha uma tendência mais centro-europeia que acabou "morrendo" no Brasil. Essas outras linhas não se desenvolveram tanto aqui, ao passo que a de Le Corbusier floresceu. Querem a prova? Qual é a influência do Mies van der Rohe na arquitetura brasileira? Mínima. E provavelmente ele é um dos dois maiores arquitetos do século 20. A única presença dele se deve ao fato de hoje encontrarmos a famosa cadeira Barcelona em todo lugar (risos). Já Le Corbusier foi, de fato, a linha marcante e teve em Niemeyer seu expoente. Nem a arquitetura brutalista desenvolvida em São Paulo nos anos 60, 70, por profissionais importantíssimos como Vilanova Artigas ou mesmo Paulo Mendes da Rocha teve a recepção popular da arquitetura de Niemeyer. O que é complicado, porque quando boas linguagens não se firmam, abre-se terreno para manifestações inferiores. Como o projeto da Daslu, em São Paulo, que é a meu ver uma abominação.
OESP – Por quê?
ACL – Eu acho o seguinte: se houvesse debate arquitetônico no Brasil seguramente não teríamos o prédio da Daslu. No Japão, na França, na Inglaterra, grandes marcas da moda contrataram arquitetos excepcionais para projetar suas lojas. É um fenômeno que começou nos anos 90 e prossegue. Algumas vezes são arquitetos jovens, talentosos, até revelados por essas marcas. Pois o Brasil está tão fora do mundo que a sua mais fantástica loja de moda é isso que está aí. E todo mundo acha normal.
OESP – Como o senhor definiria a arquitetura do prédio da Daslu?
ACL – Não é arquitetura. Com boa vontade, é arquitetura errada. Quer fazer um projeto neoclássico, tudo bem, mas não esqueça que o classicismo tem regras precisas. Tem que saber onde colocar as colunas, como usar os elementos decorativos, etc. É o caso do sujeito que acha que entende a língua, mas só conhece palavras, e não a gramática. Daí sai dizendo "casa", "cachorro", "pedra", "raio". E palavras soltas não fazem sentido. Arquitetura é linguagem.
OESP – Por que o Brasil ficou fora do debate arquitetônico internacional?
ACL – Em parte pelas duas décadas de regime militar, por uma tendência nacionalista, que tem certas virtudes, mas provoca limitação, e pelas crises econômicas. Os jovens arquitetos brasileiros que travaram contato lá atrás com Le Cobusier souberam trabalhar as idéias do mestre, pensaram sobre elas criticamente, adaptaram-nas para materiais nossos e acabaram fazendo uma arquitetura genuinamente brasileira. Caso do próprio Lucio Costa. Quando ele se converteu à arquitetura moderna, foi taxado de traidor daquele neocolonialismo importado. Então, lá atrás, havia um rumo. Depois sobrevieram as dificuldades que enumerei e o Brasil foi ficando à margem do debate.
OESP – Com essa internacionalização, como preservar o patrimônio arquitetônico quando seus criadores estão longe, têm outra nacionalidade, outros interesses?
ACL – É complicado, sem dúvida. Há casos em que arquitetos de fora chegam como se fossem heróis ao país que os contrata, implantam edificações imponentes em cidades até irrelevantes e daí fica uma coisa estranha, até arrogante. Mas é a repetição da história das nossas igrejas barrocas, concebidas por cabeças de fora. Até hoje, no Brasil, as pessoas pensam que arquitetura colonial é arquitetura local. Não, trata-se de arquitetura importada, com uma única diferença: aqui as varandas são maiores. A verdade é que a legitimação vem da aceitação que as coisas têm. Le Corbusier, tão importante para os brasileiros, foi atacado na França por aquele conjunto residencial La Cité Radieuse, em Marselha, projeto de 1947. E quem hoje mora nesses apartamentos? Arquitetos jovens, pessoas descoladas, gente que gosta do edifício porque ele virou uma coisa cult.Temos agora que conviver com esse neoclássico, esse neomediterrâneo, esses "neos" que surgiram no vácuo da não-aceitação de linguagens arquitetônicas mais sofisticadas. É terrível.
OESP – O que é a cidade do futuro, do ponto de vista arquitetônico?
ACL – É a que aceita a diversidade na qualidade. No Brasil o conceito de qualidade está engessado. Como se dão os grandes concursos internacionais no setor? Pede-se a dez bons arquitetos que proponham soluções para um determinado problema proposto. O próprio concurso prova que há maneiras diferentes de fazer arquitetura de alto nível. Esse tipo de iniciativa anda em falta por aqui... Você pode sonhar com uma casa com muita madeira. Ou uma casa high tech. Daí vai procurar o profissional que melhor possa traduzir essa aspiração. E não pedir ao primeiro arquiteto que faça uma casa com tantas escadinhas, tantas janelinhas, porque você quer assim. Arquitetura não é isso!
OESP – Certa vez Le Corbusier disse ao discípulo brasileiro: "Você traz nos olhos as curvas dos morros cariocas". Ou seja, as curvas do Rio são um elemento umbilical na arquitetura de Niemeyer. No Qatar, onde faltam arquitetos, como o senhor diz, mas sobra dinheiro, contratam-se estrelas como o mexicano Ricardo Legorreta. Que montanhas estarão nos olhos de Legorreta quando ele se põe a projetar uma cidade no deserto? Ele tem de abrir mão do elemento umbilical?
ACL – Isso é importante, merece reflexões... porém, o caso do Niemeyer é particular. Ele sempre se referiu ao trabalho dele como "a minha arquitetura", ou seja, é dele e de mais ninguém. E há o traço da genialidade, o que não significa dizer que tudo o que faz é genial. Pois esse elemento umbilical, no caso, a curva, fora das mãos de um gênio tende a virar regionalismo. A apropriação de elementos regionais revela-se perigosa. Nos anos 50, havia um alvoroço em torno de um arquiteto americano, Edward Durell Stone. Ele era comparado a Niemeyer, uma injustiça, diga-se, foi capa da Time, havia grande badalação em torno dele. Um belo dia Durell Stone foi encarregado de fazer o projeto da embaixada americana na Índia. Fracassou. O projeto era uma adaptação canhestra de elementos da tradicional arquitetura indiana. Hoje o projeto arquitetônico mais polêmico do Brasil é a Cidade da Música, no Rio, do arquiteto francês Christian Portzamparc. Ele conhece bem o País, entende de Niemeyer e fez um projeto que, a meu ver, absorve elementos da nossa arquitetura moderna, associando-os a uma arquitetura contemporânea. Isso é releitura crítica. O projeto até vem sendo questionado pelos custos, mas não pela qualidade.
OESP – De modo geral, a arquitetura no Brasil está melhorando ou não?
ACL – A arquitetura residencial melhorou muito. Você tem nomes como Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Aurélio Martinez Flores, o escritório Bernardes & Jacobsen, gente de padrão internacional. Isay e Kogan praticam uma arquitetura residencial mais autônoma em relação à arquitetura moderna brasileira, mas de forma inteligente adicionam elementos agradáveis que nos lembram as casas dos anos 40 e 50.
OESP – E na arquitetura corporativa, como estamos?
ACL – A paisagem é devastadora. Nada a dizer. Vejo apenas uma exceção: a nova sede da OAB, em Brasília, magnífico projeto corporativo do Niemeyer. Está muito acima da média.
OESP – O governo de São Paulo suspendeu outro projeto de Niemeyer, o de transferência do MAC para o edifício do Detran, também criado por ele. Nosso maior arquiteto corre o risco da ingratidão no final da vida?
ACL – Ao contrário. Tem um reconhecimento em idade avançada que é absolutamente inédito. Por que não se fez este projeto? Porque não será importante no conjunto da obra dele. E porque se trata de uma adaptação discutível: o prédio do Detran jamais foi pensado para ser museu. Niemeyer tem visão crítica e sabe disso. Ele é o primeiro a reconhecer que os projetos residenciais que fez não são relevantes em sua obra. Quando um grupo preservacionista quis impedir que a única casa que ele projetou nos Estados Unidos, em Los Angeles, fosse derrubada, ele veio à imprensa dizer que era para derrubar mesmo, a casa não tinha a menor importância. Em compensação, hoje em Paris estão sendo construídos edifícios corporativos projetados por ele. O pessoal de lá me diz que são projetos econômicos, bem resolvidos e fáceis de construir.
OESP – Um arquiteto tem o direito de rever a própria obra?
ACL – Tem. E todos os arquitetos confirmarão isso. Mas o argentino César Pelli, que fez as Torres Petronas, na Malásia, diz algo interessante: um grande edifício não pertence nem ao arquiteto nem àqueles que o construíram. Pertence às milhares de pessoas que o veem. Porque faz parte do cotidiano delas. Levando isso em consideração, o Brasil deveria melhorar suas decisões. Esse conjunto indescritível erguido aí em São Paulo, prédios de luxo grudados num shopping center, é um caso exemplar: por que nós teremos que olhar para aquilo pelo resto das nossas vidas? Como é que não se faz um debate prévio antes de erguer algo assim? Há até uma responsabilidade moral da prefeitura a considerar.
OESP –O poder público no Brasil tem sido leniente em relação à arquitetura? Ele se sujeita aos interesses econômicos? O que o senhor diz?
ACL – Sim para as duas questões. E acrescente a inação da comunidade. Como não existe o debate, também não há preocupação com nossa decadência estética. Na Espanha do século 16 fez-se o conjunto do Escorial: palácio, biblioteca, mosteiro, igreja no centro, aquilo tudo simboliza a riqueza e a fé de um país em seu momento de glória. A França fez Versailles, com a capela do lado, o mais espetacular salão de festas bem no centro, muito luxo. Símbolo dos valores daquela sociedade, num tempo de glória. Brasília simboliza o nosso ideal de progresso num momento em que tínhamos democracia, bossa nova, a indústria nascente. Mas, digam: quais são os símbolos no Brasil atual? Que obra vai interpretar, no futuro, o que era São Paulo em 2008? Uma sociedade que aceita aquele shopping grudado em torres não pode se opor a que o escritório Herzog & De Meuron construa na metrópole.
OESP – O senhor não acha que os problemas mais graves de Brasília estão além do Plano Piloto, basta conferir a falta absoluta de planejamento urbano das cidades-satélites?
ACL – Pois é nelas que Niemeyer deveria pensar agora, não no Plano Piloto. E projetar lá contando com todo o apoio do poder público. Não estou pensando em obras extravagantes, como museu sem acervo (risos), mas teatros, centros comunitários, centros comerciais, até mesmo shoppings de boa arquitetura.
OESP – Niemeyer fala com amargura sobre o estado de conservação de alguns Cieps no Rio. Talvez ele pense duas vezes antes de projetar para as cidades-satélites.
ACL – Ah, discordo. Quando você circula em certas regiões do Rio, cruzando bairros pobres, muitas vezes no meio de um favelão tremendo, os Cieps estão lá, firmes em sua arquitetura sólida. São o símbolo do poder civilizatório onde tudo falta, e os únicos elementos de ordem na paisagem. Os Cieps representam um ponto alto da obra de Niemeyer, além de conter esse elemento emocionante: são como uma catedral numa cidade gótica.
(Por Laura Greenhalgh e Rinaldo Gama, O Estado de S. Paulo, 07/02/2009)