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demarcação de terras
2009-02-06
Povo Paresi. O passado e o presente de quem vive isolado, em uma terra sem leis. Entrevista especial com Maria Fátima Roberto Machado.
 

Um grupo étnico, com sua cultura e organização social própria. Assim, a professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Maria Fátima Roberto Machado, define o povo Paresi, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. No entanto, ele representa muito mais, não somente para o estado do Mato Grosso, pela sua origem e história, mas, também, para toda a sociedade, sinalizando a necessidade de mais respeito entre os povos indígenas.

De acordo com a professora, foi com a ajuda dos Parecis, que Marechal Rondon construiu as linhas telegráficas e estratégicas, que seguiam do Mato Grosso até o Amazonas, há mais de um século. É por isso, que Maria Fátima afirma que essa experiência dos Paresi com as linhas telegráficas é uma das páginas mais extraordinárias da história do Brasil e que permanece mergulhada no esquecimento. “Nossa dívida com eles é imensa. Eles nos ensinam muito sobre nós mesmos, são a prova cabal das piores intenções dos imoti, os não-índios, ou seja, nós, da falta de maturidade intelectual e moral da nossa sociedade, que se pretende “civilizada”.

Maria de Fátima Roberto Machado possui graduação pela Universidade Estadual de Campinas, mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas, doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso.



O que caracteriza o povo Paresi? Quais seus principais valores?

Os Paresi constituem o que denominamos em antropologia de grupo étnico, com sua cultura e organização social própria. Eles são habitantes imemoriais de uma imensa região no divisor das águas do Amazonas e do Paraguai, nas cabeceiras dos seus mais longínquos tributários, na extensa chapada que, desde o início do século XVIII, os colonos e exploradores identificaram com o seu nome: a Chapada dos Parecis. Eles se autodenominam Haliti (“nós”, “nosso povo”), têm uma língua própria (classificada como Aruak) e sua organização social tradicional baseia-se na constituição de grupos endogâmicos auto-suficientes em termos políticos e econômicos, distribuídos pelo território orientados pelo seu mito de origem, quando o herói ancestral Wazáre liderou o seu povo e lhes destinou a moradia nas cabeceiras do imenso chapadão. Assim, surgiram os grupos haliti, dentre eles os Waimare, os Kaxiniti e os Kozarini, com seus territórios próprios, dentro do território maior, governados por suas lideranças locais, organizados de acordo com a orientação mitológica, através de laços de solidariedade entre irmãos.

Qual a importância das antigas estações telegráficas em Mato Grosso para os índios Paresi?

Maria Fátima Machado - Quando o Marechal Rondon deu início à construção das Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, em 1907, encontrou os Paresi vivendo de acordo com sua cultura tradicional e, através de propostas de amizade e proteção, contou com o apoio desses índios na instalação das estações, geralmente nos terrenos das suas próprias aldeias. O trajeto das linhas, de sul a noroeste, em direção à atual Rondônia, cortou o território tradicional de dois grupos haliti: dos Waimare e Kaxiniti, que se tornaram a mão-de-obra das estações. Esse era o propósito de Rondon, que abriu uma escola para eles, primeiramente na antiga estação de Ponte de Pedra e, depois, em Utiariti. Vários se tornaram telegrafistas, estudando no Rio de Janeiro e na antiga estação de Vilhena (quando a Comissão Rondon já havia sido extinta e os funcionários não-índios já haviam abandonado os trabalhos), além de serem responsáveis pelos trabalhos de conservação das linhas, como guarda-fios.

 Qual a principal herança deixada pelo Marechal Rondon aos índios Paresi?

 Essa experiência dos Paresi com as linhas telegráficas é uma das páginas mais extraordinárias da história do Brasil e que permanece mergulhada no esquecimento, trazendo muitas tristezas e desgraças para eles, principalmente no que se refere à sua relação com a terra, com o seu território mítico, alvo do saque e da depredação que significaram as políticas de expansão das fronteiras econômicas do país, principalmente, desde a década de 1950. Nossa dívida com eles é imensa. Eles nos ensinam muito sobre nós mesmos, são a prova cabal das piores intenções dos imoti, os não-índios, ou seja, nós, da falta de maturidade intelectual e moral da nossa sociedade, que se pretende “civilizada”. Um povo que reagiu de uma maneira tão pacífica ao contato conosco, que colaborou com os planos mais caros do Marechal Rondon (inspirando a sua postura humanitária em defesa dos índios, com a qual ele se tornou conhecido mundialmente), que possibilitou uma obra grandiosa de proteção das fronteiras externas do nosso país, merecendo os maiores reconhecimentos, as maiores homenagens de nossa parte, viu-se na condição de indigência, humilhado, implorando das “autoridades” uma migalha de terra, como é o caso do grupo Kaxiniti que sobreviveu na antiga estação Parecis.

 Como a Estação Parecis tem reagido ao assassinato da índia Valmireide Zoromará? Qual a sua opinião sobre o ocorrido?

 É importante esclarecer que o grupo ao qual ela pertencia é de origem Kaxiniti, havendo hoje poucos sobreviventes. A maioria da população Paresi existente, cerca de 1.200 índios, é Kozarini e isso não é por acaso. Quando o Marechal Rondon chegou as suas terras, os Waimare e Kaxiniti já conheciam a triste realidade das epidemias (gripe, varíola, febre amarela), que assolaram as aldeias desde o final do século XIX, levadas pelos seringueiros de origem nordestina, que fugiam das secas e exploravam a borracha nas matas dos rios Arinos e do Sangue. Há depoimentos chocantes, de filhos e netos dos índios que trabalharam nas linhas, lembrando de 30, 40 mortes por dia, o que significa que eram aldeias inteiras, pois elas nunca foram muito grandes, tendo no máximo 50, 60 habitantes, devido às condições de subsistência no Chapadão.

Um recuo às origens

Como são tradicionalmente grupos endogâmicos, os Kaxiniti e Waimare, que hoje também reivindicam uma terra na antiga Estação de Ponte de Pedra, ficaram fora dos casamentos preferenciais dos Kozarini. O grupo do avô de Valmireide, João Zoromará, viu os seus descendentes se casarem com imoti, principalmente os trabalhadores pobres das fazendas de soja da região, inclusive peões dos invasores do terreno da própria estação Parecis, onde eles sempre habitaram e de onde nunca saíram, pois ali era uma parcela mínima do antigo território mítico dos Kaxiniti. Quando a FUNAI demarcou a terra atual dos Paresi (Terra Indígena Paresi e Terra Indígena Utiariti), a terra da Estação Parecis ficou fora, mas os Kaxiniti lá permaneceram, porque era ali o seu lugar.

Em 1973, João Zoromará, convidado para ir a Brasília para uma solenidade de homenagem ao Marechal Rondon, pediu pessoalmente ao ex-presidente Emílio Garrastazu Médici a legalização dos 3.600 hectares da antiga Estação, que era o terreno demarcado por Rondon, cujos marcos foram todos arrancados pelos invasores, recebendo dele um compromisso verbal, que jamais se concretizou. Hoje, embora os grupos Paresi vivam situações muito diferenciadas, decorrentes das diferenças históricas de contato, eles ainda preservam um sentimento coletivo de pertencimento a um mesmo povo, o que se comprova com os atos de solidariedade dos Kozárini das aldeias mais distantes.

Assassinato

Em 1993, o acirramento dos conflitos na Estação resultou no apoio de centenas de Haliti, que para lá se deslocaram e fizeram 14 reféns, mantendo-os reclusos nas ruínas da Estação, inclusive o invasor Sebastião de Assis, cujo empregado confessou ter assassinado Valmireide. Não tenho informações sobre a repercussão do assassinato entre seus parentes, pois já não os vejo há uns dois anos, mas podemos concluir que o assassinato de Valmireide é mais um desfecho triste de uma longa história decorrente de equívocos, omissões do poder público e do desprezo pelos índios e por seus direitos constitucionais.

Como podemos entender tamanha violência contra os índios? Qual a raiz desses atos?

Em Mato Grosso, a ignorância alimenta o preconceito, que alimenta a omissão, que alimenta o saque, que alimenta o lucro econômico e político, cada vez mais concentrado nas mãos de poucos. É um inacreditável círculo vicioso, sem fim. Ajudaria muito se os índios pudessem romper com o bloqueio, se pudessem falar, se eles tivessem espaços de manifestação, de representação. A Superintendência de Assuntos Indígenas, criada pelo ex-governador Dante de Oliveira para ser um ambiente de (difícil) interlocução, representa, hoje, explicitamente os interesses empresariais, instalados no governo do Estado, aos quais os índios só podem dizer “amém”. É um retrocesso, uma usurpação inaceitável.

Quais os maiores impasses que envolvem a demarcação de terras indígenas no Brasil hoje? Em que medida o caso de Raposa Serra do Sol poder servir de exemplo nesse sentido?

Todos nós sabemos o quanto a demarcação contínua de Raposa Serra do Sol é paradigmática, tanto para os que torcem contra quanto para os que torcem a favor. Mas nós temos uma Constituição e o esperável é que ninguém, mas ninguém mesmo, se esqueça disso.

Como a senhora avalia o desempenho da FUNAI e do governo federal em relação aos povos indígenas?

Seria muito fácil jogar pedras na FUNAI, afinal ela merece todos os hematomas. Um dos esportes preferidos dos inimigos dos índios em Mato Grosso é bater na FUNAI, embora isso seja, no mínimo, uma ingratidão, e a história está aí para provar isso. Há indigenistas e indigenistas, como há políticos e políticos, missionários e missionários, antropólogos e antropólogos e, por que não dizer, índios e índios. Hoje, podemos até encontrar um ou outro índio participando de festas de fazendeiros, fingindo representar o seu povo, entoando alegre uma cantilena encomendada, criticando a revisão das terras (dos outros), para a alegria dos convivas. Às vezes, o preço dessa encenação pode ficar bem caro.

Falta preparo

Ajudaria um pouco se os indigenistas da FUNAI fossem mais bem preparados em assuntos que são absolutamente básicos na sua profissão. Por exemplo, é comum ver técnicos com preconceito em relação aos índios que não se enquadram nos estereótipos de índios, nos clichês que eles insistem em manter em suas mentes, apesar do confronto cotidiano com a realidade. Os Paresi da Estação Parecis são vítimas desse equívoco e acontece a despeito da antropologia já ter discutido, à exaustão, que “o índio” não é uma unidade cultural, como pensam ainda hoje os equivocados e apaixonados pelo tema da “aculturação indígena”, já superados há mais de meio século.

Ruptura cultural

Ser índio é uma identidade legal, acionada para a obtenção do reconhecimento dos seus direitos específicos, diferenciados, diante do Estado. Se os Paresi da Estação já não falam mais a língua do seu povo, é porque sofreram constrangimentos que os levaram a perder esse traço da sua cultura, o que não significa que deixem de se reconhecer, e serem reconhecidos, como Haliti, o que ficou demonstrado nos atos de solidariedade dos Kozarini, em 1993. No lugar de criticar a FUNAI, prefiro lembrar que tramita no Congresso Nacional, a passos de tartaruga, o novo Estatuto das Sociedades Indígenas, que deve avançar no respeito aos índios e seus direitos, em favor do qual nós devemos lutar.

 Em suas pesquisas, o que mais lhe marcou como pesquisadora e como pessoa no contato com os índios? Gostaria de dividir conosco alguma história?

Penso já ter respondido a essa pergunta, tentando expressar minha posição em relação aos Paresi e todo o seu sofrimento, do pouco que testemunhei ao longo das minhas pesquisas, desde 1985, quando eu os conheci. Mas tenho esperança, esperança que eles encontrem, assim como todos os índios, os melhores caminhos para se defender e crescer como povos, que é o que eles merecem, partilhando os benefícios de uma sociedade brasileira cada vez mais democrática, verdadeiramente democrática, falando por eles mesmos. Eles me ajudaram a amadurecer como pessoa, mesmo nos momentos em que brigavam comigo, nos momentos em que divergimos, os quais não foram poucos. Eles formam uma sociedade rica, complexa, cuja visão de mundo tem muito a nos ensinar.

 Como podemos entender os casos de suicídio entre os índios de Mato Grosso, que têm aumentado, principalmente entre os jovens? A falta de terra pode ser uma explicação?

Talvez você se refira especificamente aos índios Guarani de Mato Grosso do Sul, embora não sejam os únicos nessa situação extrema. Eu só posso dizer que ninguém se mata por prazer, não é mesmo? Isso já deveria ser suficiente para que a população não-indígena de Mato Grosso do Sul se envergonhasse do mal que causa aos índios Guarani, encurralados em parcelas ínfimas de seu antigo território, tão sagrado quanto o território mítico dos Haliti. 

Instituto Humanistas Unisinos, 06/02/2009

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