Zoe Cormier(1) confirma, não importa como você a veja, água engarrafada é uma fraude de grandes proporções. É fácil assim. Esperar o ônibus para ir ao trabalho. Dirigir-se a um parque ensolarado no verão. Estar pronto para sentar em um aeroporto por três horas fúteis. É tão fácil adquirir uma garrafa de água - é muito barato, refrescante, limpo, e não faz mal aos dentes. Para muitos de nós, tornou-se a bebida escolhida - parece fazer pleno sentido.
As vendas de água engarrafada, algo de que praticamente não se ouvia falar há 40 anos, foram às alturas nos últimos 30 anos, mais rapidamente do que qualquer outro tipo de bebida. The Beverage Marketing Corporation (2) estima que o consumo de água engarrafada nos Estados Unidos saltou 25 vezes de 1976 a 2007, passando de 354 milhões para mais de 9 bilhões de galões. As vendas globais continuam a subir cerca de 8% anualmente, e mais ainda em países em desenvolvimento - aproximadamente 18% ao ano na China. Cerca de um quinto dos norte-americanos atêm-se exclusivamente ao consumo de água em garrafas.
Embora pareça normal, água engarrafada faz pouco sentido - ambiental ou economicamente. Garrafas plásticas manufaturadas utilizam enormes quantidades de combustíveis fósseis. Embarcá-las libera mais gases estufa. Gastamos centenas de vezes mais com elas do que com a água encanada. A maioria das garrafas não é reciclada. E o mais irônico: cerca de 40% da água engarrafada vem de reservatórios municipais. É apenas água encanada.
Ativistas e consultores de pesquisas de mercado pensam que água engarrafada é uma tendência sociopolítica. "Podemos sentir cheiro de sangue", diz Jeanette Longfield, ativista da ONG britânica Sustain. "Água engarrafada pode se tornar como garrafas plásticas - as pessoas não vão querer serem vistas com uma". Rastrear exatamente quanto petróleo é utilizado no mundo para fazer plástico PET (polietileno tereftalato) para água engarrafada é difícil. Não há um único órgão regulatório. Contudo, algumas estimativas podem ser feitas.
Pegada ecológica
O Pacific Institute (3), nos Estados Unidos, calcula que, por ano, os americanos compram 29 bilhões de garrafas de água, as quais utilizam 17 milhões de barris de petróleo. Como cada barril de petróleo contém aproximadamente 159 litros, a pegada ecológica de quase 11 garrafas equivale a 1 litro de petróleo. Além disto, a manufatura de cada tonelada de PET produz 3 toneladas de CO2 - assim, 2,5 milhões de toneladas são lançadas anualmente. E isto apenas nos Estados Unidos. Se todo o mundo bebesse água engarrafada, necessitaríamos de um bilhão de barris de petróleo por ano para atender a demanda.
Oito por cento do PET produzido nos Estados Unidos é utilizado por três companhias de bebidas: Nestlé, Pepsi e Coca-Cola. Cada uma tem suas próprias marcas de água engarrafada - a Coca tem a Dasani, a Pepsi, a Aquafina, e a Nestlé, a Pure Life e a Poland Spring.
O Polaris Institute (4), do Canadá, determinou de onde exatamente vêm os combustíveis fósseis para as garrafas plásticas americanas. "Eu queria delinear uma linha clara entre as companhias de água engarrafada e os grandes interesses da indústria de petróleo, a fim de mostrar às pessoas que quando elas compram uma garrafa de água da Dasani ou da Aquafina, elas estão sustentando essas companhias", afirma o pesquisador do Polaris Richard Girard. Ele concluiu que os produtores líderes de etileno, a principal matéria-prima para o plástico PET, incluem ChevronPhillips, Exxon, Shell, British Petroleum e Dow Química - alguns dos mais prolíficos poluidores do mundo.
Uma vez engarrafada, a água é embarcada em navios, às vezes por milhares de quilômetros - a água de Fiji, por exemplo, viaja até 10 mil quilômetros antes de ser consumida. O The Earth Policy Institute (5), nos Estados Unidos, estima que 25% da água engarrafada cruza fronteiras internacionais.
E então? A despeito da percepção pública, muito poucas garrafas são recicladas. Nos Estados Unidos, cerca de 85% das garrafas de água de PET escapam da reciclagem e terminam como rejeito, ou em aterros, onde elas levarão milhares de anos para se decompor, ou em incineradores, liberando dioxinas cancerígenas para a atmosfera. A Grã-Bretanha está quase emparelhada com os Estados Unidos, com 17% das garrafas recicladas, e o Canadá está um pouco melhor, com 36%.
Mas mesmo aquelas coletadas não são sempre recicladas por perto: cerca de 40% a 50% das garrafas PET são embarcadas para países em desenvolvimento - geralmente, China - resultando na liberação de ainda mais gases de efeito estufa ao longo do caminho. Apesar da conclamação da indústria para melhorar a reciclagem, a proporção de plástico reciclado em garrafas PET permanece muito baixa, diz Girard. "É mais barato para eles produzirem garrafas de PET virgem".
"Toda uma geração de crianças está crescendo pensando que água encanada é 'nojenta'. Ela não terá o mesmo comprometimento com a economia de água potável que seus pais tiveram. E mais, a indústria ativamente faz lobbies contra as taxas sobre garrafas que penalizam os consumidores com sobretaxas retornáveis", diz Wenonah Hauter, da ONG Food and Water Watch, com sede em Washington. Os 11 Estados norte-americanos que têm essas taxas sobre garrafas reciclam de duas a três vezes mais do que os outros 39 estados.
"É muito difícil repassar a taxa da garrafa - varejistas e grandes companhias de bebidas leves usam seu poderio econômico para desviar o suporte a esta causa pelo tráfico de influência", diz Hauter. Varia de região para região, mas a água engarrafada custa cerca de 500 vezes mais do que a água encanada. Galão por galão, custa mais que gasolina.
Em 'testes de paladar' cegos, Andrea Harden, ativista do Polaris Institute, lançou um desafio para as pessoas dizerem a diferença entre água engarrafada e encanada. Nenhuma adivinhação: até 40% da água engarrafada é apenas água da torneira com uma pequena filtração extra ou adição de sais - A Aquafina da Pepsi diz isto no rótulo. Raramente se encontraria um exemplo melhor de 'licença para imprimir dinheiro'.
Assim, o que nós compramos? "Tem um valor social percebido, mais do que um verdadeiro valor", diz Harden. Em outras palavras: é um modismo. "A indústria de água engarrafada colocou muito dinheiro e esforço em cultivar uma imagem de que seus produtos são íntegros, puros e seguros", acrescenta ela. "Ela vendeu a idéia ao público de que a água engarrafada é mais saudável do que a água encanada".
De fato, a água engarrafada não é segura, e com toda probabilidade, menos segura do que a água encanada. Enquanto abastecedoras de água dos países orientais devem checá-la 300 vezes por mês, uma planta de água engarrafada deve ser inspecionada apenas uma vez a cada três anos. A Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (US Food and Drug Administration), apenas verifica a água engarrafada vendida no mesmo Estado em que é engarrafada (cerca de 30% a 40% das vendas) - e ainda uma vez por ano.
Potencial cancerígeno
Contaminação e recall de produtos não são incomuns, incluindo o potencial cancerígeno do bromato na Dasani em 2004 e o naftaleno (6) na Volvic em 2005. Nos Estados Unidos, em 1999, um levantamento do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais detectou que um terço das marcas de água engarrafada violava os padrões estaduais ou industriais em pelo menos uma amostra, sendo nelas encontrados contaminantes como coliformes fecais, Escherichia coli (7) e arsênico (8).
A popularidade da água engarrafada poderia ter conseqüências além de enganar consumidores desatualizados. "A água engarrafada deteriora a confiança pública em nossa água encanada", diz Wenonah Hauter. Água potável é um bem público e se deve esperar que o governo a forneça. Se as pessoas se acostumarem a ser extorquidas por garrafas caras, haverá pouco incentivo do governo para investir na manutenção de sistemas púbicos de abastecimento de água.
A Food and Water Watch (9) estima que, a cada ano, o governo dos Estados Unidos reduz em US$ 20 bilhões a quantidade necessária para a manutenção do abastecimento de água (compare isto com os US$15 bilhões que os norte-americanos gastam, por ano, com água engarrafada). Vazamentos, arrombamentos e alertas de rupturas por pressão no sistema de abastecimento de água são cada vez mais comuns.
Enquanto isto, novas construções, como escolas, freqüentemente carecem de fontes de água. Tudo isto estabelece precedentes perigosos. "Água engarrafada lança um estágio para a privatização da água", argumenta Andrea Harden. "Cultiva nos consumidores a vontade de pagar um preço alto pela água, que é usada como fonte de lucro". A privatização não é uma ameaça imaginária: grandes companhias européias como a Suez tentaram agressivamente assegurar o controle dos serviços de água da América do Norte por muitos anos.
Mesmo quando a água pública não é privatizada, é dada a grandes companhias de engarrafamento de água permissão suja e barata para drenar as reservas de água subterrânea. As operações da Nestlé em Mecosta, Michigan e Guelph, Canadá - para citar apenas duas - têm levado a opinião pública à oposição pelo ultraje de assistir à água local ser embarcada para longe, deixando as reservas de água e as áreas úmidas deterioradas. O contrato da Nestlé por uma planta em McCloud, Califórnia, levou a multinacional a pagar taxas 22 vezes mais baixas do que a paga por residentes locais.
Com tão poucas razões para beber água engarrafada, há indicativos de que a onda de entusiasmo pelo produto esteja mudando. "Geralmente quando você pede às pessoas para fazer a coisa certa, você tem que persuadi-las a pagar mais - mas isto, ao contrário, é ridiculamente barato", diz a ativista do setor de água Jeanette Longfield, da ONG britânica Sustain.
Governantes de cidades encampam a inegável besteira de gastar fundos municipais em água engarrafada quando já têm a seus pés a conta da água tratada. No ano passado, após perceber que havia gasto US$ 100 mil por ano com água engarrafada, o Conselho Municipal de Liverpool baniu as garrafas das repartições municipais. A cidade de São Francisco (Califórnia) fez o mesmo e economizou US$ 500 mil que já gastava por ano, e prefeitos ao redor do mundo estão seguindo este exemplo.
Outras cidades estão ativamente tentando modificar as atitudes públicas. Nova Iorque lançou uma campanha civil em 2007, e Chicago deu um passo adiante, adicionando cinco centavos de dólar nas vendas de água engarrafada. Os parisienses atacaram a questão rotulando a água da torneira como chique, dando destaque à 'Água de Paris'. E na Itália, a primeira fonte pública de água, mas agora líder no consumo de água engarrafada, ativistas estão pedindo que as pessoas abandonem a água engarrafada e bebam água da fonte que é o ícone da nação.
A mudança também está fermentando no público. Estudantes estabeleceram 'zonas livres de água engarrafada' em universidades por todo o Canadá. E, como 'o verde é o novo preto', como tão freqüentemente se ouve, restaurantes de ponta estão começando a provar suas credenciais verdes oferecendo, de graça, água filtrada em torneiras para seus clientes.
"Esta é uma grande tendência", diz Dave Jago, da empresa britânica de mercado Mintel. "Prevemos um revés. Está se tornando for a de moda servir água engarrafada". Isto pode, de fato, ser o melhor caminho para mudar o comportamento público: re-rotular a água engarrafada como fora de moda. Porque não há nada mais verdadeiramente brilhante do que o marketing que nos persuade a comprá-la em primeiro lugar.
Notas
(1) Zoe Cormier é escritora freelancer especializada em matérias de ciência, meio ambiente e saúde. É autora de "O Relatório Verde", seção sobre notícias e tendências ambientais do "The Globe and Mail" - maior jornal quinzenal do Canadá. Também escreve para O Toronto Star, maior diário canadense.
(2) A Beverage Marketing Corporation (BMC) [Corporação de Marketing de Bebidas, é uma entidade que presta serviços de consultoria em diversas areas para a indústria da bebida.
(3) The Pacific Institute é uma instituição educativa com sede em Seattle (EUA) e atuação em nível mundial.
(4) Polaris Institute - foi constituído em 1996 como movimento de oposição aos principais tratados de livre comércio internacional que repercutiram no Canadá, implicando reestruturação das grandes corporações e suas conseqüências.
(5) Capitaneado por Lester Brown, o Eath Policy Institute - atua na construção e divulgação de alternativas de desenvolvimento sustentável.
(6) Também conhecido como naftalina, de fórmula química C10H8.
(7) E. coli é uma bactéria bacilar. Quando presente em água ou alimentos é indicativa de contaminação com fezes humanas (ou mais raramente de outros animais).
(8) Arsênico ou arsênio é um elemento químico de símbolo As com número atômico 33 e com massa atômica 75. É um semimetal (metalóide) e seus compostos são extremamente tóxicos, especialmente o arsênio inorgânico.
(9) Food and Water Watch é uma ONG com sede em Washington que atua na conscientização de cidadãos quanto à segurança da água e dos alimentos.
(Por Zoe Cormier*, New Internationalist, Nº 415, Setembro 2008, tradução Cláudia Viegas)
*É escritora freelancer e jornalista da área de Ciência radicada em Londres.