O Poder Judiciário como um espaço legítimo para as disputas em Direitos Humanos e o papel da advocacia popular brasileira para as conquistas de direitos foram os temas centrais da oficina "Justiciabilidade dos Direitos Humanos e Democratização da Justiça", organizada pela Terra de Direitos, Ação Educativa, CPT e MST. Em uma sala lotada da UFPA, duas perguntas ganharam destaque: Por que os movimentos sociais não vão à justiça? Ou por que a justiça não chega até os movimentos sociais?
BELÉM - No Fórum Social Mundial, o primeiro debate nas salas lotadas sempre é sobre o ar-condicionado. Na maioria das oficinas ou conferências vizinhas a cena é a mesma: gente apinhada abanando-se com qualquer papel que esteja à mão. Depois de janelas abertas e portas escancaradas para permitir uma mínima circulação de ar, é que as atividades começam de verdade. O diretor de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Sérgio Leitão, levantou a primeira pergunta na tarde desta quarta-feira (29): “A sociedade civil não vai ao poder Judiciário. Por quê?”. Por sua vez, o doutor em sociologia Boaventura de Sousa Santos modificou a pergunta: “Por que o poder Judiciário não vai até a sociedade civil?”.
“Nessa indagação, eu procuro pensar algumas respostas e algumas provocações concretas. O Poder Judiciário hoje no Brasil é um poder fundamental. Basta ver nos últimos dois anos o conjunto de decisões importantes que foram levadas ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal. Acontece que os ministros hoje vão à imprensa e dão entrevista ao vivo. Muitas vezes agem como seres políticos, mas não transformam isso em decisões. Se esse poder é tão fundamental, por que a sociedade civil não tem uma atuação primeiro política do controle da atividade desses funcionários públicos?”, avalia Sério Leitão.
O conjunto de decisões importantes ao qual Sérgio se refere reúne desde a homologação da reserva Raposa Serra do Sol (RR) até às discussões sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias. No caso de Roraima, os ministros do STF devem concluir a demarcação da reserva indígena em breve, a previsão é que o caso volte à pauta em fevereiro. No dia 10 de dezembro do ano passado, um pedido de vista do ministro Marco Aurélio Mello adiou a decisão final sobre a questão. Antes do adiamento, porém, 8 dos 11 ministros da Suprema Corte se manifestaram a favor da homologação de forma contínua das terras na região.
Segundo Sérgio, a maioria destes temas implica a questão do controle das indicações dos ministros dos tribunais superiores. A indicação é feita pelo Presidente da República, mas passa por uma instância de checagem, o Congresso Nacional. “Aí eu pergunto quantos de nós já fomos assistir uma audiência para nomeação de um ministro de tribunal superior? Quantos de nós procuramos saber quais as posições políticas, quem o indicou, tudo isso. A primeira questão é isso, a sociedade civil organizada não está nem aí para a questão do Judiciário, o que é um erro grave porque tem reflexos importantes. Até mesmo se você pegar a pauta de eventos deste Fórum Social Mundial há assuntos ligados às áreas do legislativo e do executivo, mas o judiciário aparece em no máximo três eventos”, questiona.
“A provocação do Sérgio ao perguntar por que a sociedade civil não vai ao Judiciário pode ser respondida com outra provocação. Por que o Judiciário não vai até a sociedade civil? Esse é o grande problema. Quem vai é apenas a sociedade civil dominante e não a sociedade civil das classes populares que têm diariamente seus direitos impunemente violados”, polemizou o sociólogo Boaventura de Sousa Santos. O professor da Universidade de Coimbra e diretor do Centro de Documentação 25 de Abril realizou recentemente uma pesquisa sobre a advocacia popular no Brasil, partindo de experiências concretas como a da Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP).
Para as organizações promotoras da oficina, o necessário é aprofundar o papel desenvolvido pela advocacia popular no Brasil, já que desde a década de 90 há uma avaliação de que é perceptível um afastamento entre organizações populares e poder judiciário. “Uma vez perguntaram ao Gandhi o que ele achava da democracia ocidental e ele respondeu: Seria uma boa idéia. Eu acho que se perguntássemos a muita gente hoje sobre a justiça a reposta poderia ser a mesma. Porque muito mais da metade da população do mundo não é sujeito dos direitos humanos, é o objeto. É o objeto dos nossos discursos, das nossas organizações, dos nossos movimentos e eles sim são sujeitos e querem ser sujeitos de direito. É dessa realidade que temos que partir”, diz Boaventura.
A preocupação diante das tentativas de criminalização dos movimentos sociais, sobretudo no campo, e de suas lideranças, também foi foco da oficina. Acontecimentos como a condenação de José Batista Gonçalves Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra com destacada atuação na defesa dos direitos humanos na região de Marabá, Pará, e o relatório do Conselho Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul demonstram com clareza o motivo do receio. No Rio Grande do Sul, o relatório indicava: “designar uma equipe de Promotores de Justiça para promover ação civil pública com vistas à dissolução do MST e declaração de sua ilegalidade (...)” e ainda “intervenção nas escolas do MST”.
A estratégia dos movimentos sociais que acreditam que o direito é um instrumento para elevar o patamar de justiça social, segundo Boaventura, deve se basear na “idéia de que a mobilização jurídica não deve nunca ser acionada sem mobilização política. Cerca de 800 líderes indígenas e camponeses do Peru e do Chile estão nesse momento na prisão acusados sob o abrigo de leis anti-terroristas. A pior coisa do 11 de setembro foi criar uma pulsão, uma idéia securitária de segurança que viola os Direitos Humanos”. Justamente superar esta realidade a partir de uma “revolução democrática do direito e da justiça” é o que Boaventura defende em "Para uma revolução democrática da justiça" (Editora Cortez, 2007).
A obra foi resenhada por Flávia Carlet, também presente na oficina, em Carta Maior. Segundo ela, “a revolução democrática da justiça é uma tarefa exigente, que só fará sentido se for tomada como ponto de partida uma concepção emancipatória do acesso ao direito e à justiça. Para tanto, Boaventura enfatiza que são necessárias profundas transformações na cultura jurídica e judiciária que só serão possíveis se forem capazes de compreender uma nova formação dos operadores do direito; profundas reformas processuais; novas concepções de independência judicial; uma nova relação de poder judicial, mais próxima dos movimentos e organizações sociais; novos mecanismos de protagonismo no acesso ao direito e à justiça e ainda uma cultura jurídica democrática”.
No entanto, Boaventura é otimista. “Há duas coisas que aconteceram que são um sinal de que essa autorização de usar o direito para nos criminalizar ou tentar destruir os movimentos sociais pode, de alguma maneira, sentir um enfrentamento. A primeira é a decisão do presidente Obama de fechar a prisão de Guantánamo e suspender todos os julgamentos que não têm nada de justiça. Estamos falando de uma imposição militar que utiliza a tortura como meio de prova e que é uma caricatura cruel do que deve ser o direito e a justiça. Segundo, a decisão do vosso Ministro da Justiça de conceder asilo político César Battisti. Essas duas decisões parecem mostrar que a idéia da destruição do direto em nome da segurança e da ordem talvez esteja a acabar. E, se ela está a acabar, está se abrindo um novo ciclo, onde o direito pode ser significativamente utilizado”.
(Por Clarissa Pont, Carta Maior, 29/01/2009)