"O Fórum não é um movimento, uma entidade que tem seu programa próprio e suas campanhas. Quem tem isso são os movimentos que participam do Fórum. Temos que contar com esse espaço que a sociedade civil não tinha disponível até o fórum aparecer", afirma um dos membros do Secretariado internacional do Fórum Social Mundial.
Confira a entrevista.
“A última crise financeira que se deu agora, além da ecológica que já vinha acontecendo e que já tinha sido alvo de denúncias muito graves, está aumentando a consciência da sociedade de que o sistema neoliberal capitalista globalizado só leva a injustiças, guerras e a destruição da natureza”. Essa é uma das percepções que Francisco Whitaker está tendo do Fórum Social Mundial que acontece em Belém (PA) até o próximo domingo, dia 01/02. Em entrevista exclusiva concedida por telefone à IHU On-Line, no meio de suas atividades no evento, Whitaker destaca que o Fórum Social Mundial é um processo que permite a “união das entidades e organizações da sociedade civil que acham que o mundo tem que ser mudado”. Ao defender a importância e a força do evento, ele lembra que “a Alca morreu por causa da pressão das organizações da sociedade civil, pressão essa que foi articulada a partir de reuniões do Fórum”. E quando explica a razão de realizar o evento na região amazônica, esclarece que ela “constitui, efetivamente, hoje, o ponto focal de uma das maiores crises que o mundo está vivendo, que é essa crise que pode levar à destruição do planeta”.
O paulista Francisco Whitaker é membro do Secretariado internacional do Fórum Social Mundial e representa no evento a Comissão Brasileira de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi presidente da Juventude Universitária Católica – JUC, em 1953-1954, assessor da CNBB no 1° Plano Pastoral de Conjunto em 1965-1966, e assessor da Arquidiocese de São Paulo e da CNBB de 1982 a 1988. É sócio-fundador da Associação Transparência Brasil e foi professor no Instituto de Formação para o Desenvolvimento de Paris e no Instituto Latino-Americano de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ilpes/ONU).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a principal função do Fórum Social Mundial? Ele tem cumprido seu papel?
Francisco Whitaker – A principal função do Fórum é criar um espaço de encontro para o reconhecimento mútuo das muitas organizações da sociedade civil que trabalham para mudar o mundo e que, nesse espaço, elas possam se reconhecer e se descobrir, além de aprender umas com as outras, intercambiar experiências, encontrar convergências e montar novas articulações para novas ações que possam fazer em conjunto. Essa é uma função que se dá tanto nos fóruns mundiais, como regionalmente, nacionalmente ou mesmo localmente. O Fórum é um processo que permite esse reforço, essa união das entidades e organizações da sociedade civil que acham que o mundo tem que ser mudado.
E o senhor pensa que isso tem se efetivado, na prática?
Whitaker – Sim, porque os encontros mundiais têm tido uma adesão cada vez maior. Esse aqui, de Belém, é muito significativo nesse sentido. Além disso, têm se multiplicado os encontros em outros níveis. Ao mesmo tempo, tem crescido a articulação entre movimentos sociais, ONGs, sindicatos e outras organizações da sociedade civil, o que inexistia antes. Montaram-se novas plataformas de lutas, com novos objetivos, que estão permitindo, de um lado, que se pressione mais os governos, no sentido de mudar o que precisa ser mudado, mas também, de outro, em relação ao cidadão, para que assuma maiores responsabilidades e iniciativas desde o seu comportamento pessoal até o seu comportamento coletivo, para que ocorram as mudanças necessárias.
O senhor compartilha do pensamento de Emir Sader quando ele afirma que o FSM se esvaziou, resumindo-se a uma crítica do neoliberalismo, sem propostas e sem conexão com as mudanças sociais? O senhor concorda com a necessidade de uma revisão no método do evento?
Whitaker – Não, não concordo. Nessa crítica que ele faz, ele afirma algo que não é exato, que o fórum se esvaziou. O número de propostas que nasceu no evento é preciso ser lembrado. Por exemplo, o debate que surgiu no Fórum sobre a Alca levou a que o Brasil não assinasse o acordo. A Alca morreu por causa da pressão das organizações da sociedade civil, pressão essa que foi articulada a partir de reuniões do Fórum. Ao contrário do que Emir Sader diz, o Fórum não é um movimento, uma entidade que tem seu programa próprio e suas campanhas. Quem tem isso são os movimentos que participam do Fórum. Temos que contar com esse espaço que a sociedade civil não tinha disponível até o fórum aparecer. Os partidos e o governo podiam se articular, mas a sociedade civil não. E cada um continuava trabalhando paralelamente e, muitas vezes, até competindo na mesma área de atuação, ao invés de cooperar entre si. O Fórum é um espaço que cria essa possibilidade. Ele tem que continuar existindo, porque estamos longe ainda de ter a força necessária para mudar efetivamente a lógica do sistema. A última crise financeira que se deu agora, além da ecológica que já vinha acontecendo e que já tinha sido alvo de denúncias muito graves, está aumentando a consciência da sociedade de que o sistema neoliberal capitalista globalizado só leva a injustiças, guerras e a destruição da natureza. Essa consciência está aumentando exatamente porque está existindo a possibilidade desses temas serem apresentados e discutidos.
Considerando o evento como um espaço aberto de encontro, como o senhor avalia o Fórum Mundial de Teologia e Libertação?
Whitaker – É uma demonstração de que o Fórum Social Mundial estimula diferentes setores sociais a realizarem fóruns próprios previamente ao FSM. Assim como houve o Fórum de Teologia e Libertação, houve também o Fórum Mundial de Juízes, o Fórum de Saúde, o Fórum Mundial de Educação, o Fórum Mídia Livre. São todas iniciativas que permitem uma articulação maior entre aqueles que consideram que é preciso mudar o mundo.
Qual a importância social, ambiental e política de promover o Fórum na região amazônica?
Whitaker – A região amazônica constitui, efetivamente, hoje, o ponto focal de uma das maiores crises que o mundo está vivendo, que é essa crise que pode levar à destruição do planeta. Fazer o Fórum aqui no Amazonas torna a região um ponto de atenção para todas as partes do mundo. Assim como Porto Alegre se tornou muito mais conhecida com os primeiros fóruns que se realizaram lá, e com ele, todas as propostas de orçamento participativo que eram experimentadas naquela cidade, aqui no Amazonas os problemas não são apenas locais, são problemas do mundo, pois dizem respeito à natureza. E agora eles vão ganhar uma visibilidade muito maior, porque todos estão com os olhos voltados para essa região do planeta que se chama Amazônia.
Como tem aparecido entre os participantes do FSM a relação entre as crises econômica, ambiental e de alimentos?
Whitaker – Os participantes estão nitidamente interligando essas crises. Há várias oficinas e seminários que estão exatamente em torno da temática do que eles estão chamando de “crise de civilização”. Evidentemente, são seminários que vão sendo feitos paralelamente com outros, porque há 100 mil pessoas aqui e o número dos que participam desses debates é muito menor. Mas essas idéias estão sendo divulgadas, expandidas entre as pessoas e depois do Fórum o processo continua. O Fórum não é um evento que termina em si mesmo. Ele continua com um processo de articulação e de ação cada vez maior.
Como o senhor vê hoje a esquerda brasileira e mundial? Os participantes do FSM têm demonstrado interesse em discutir uma possível crise na esquerda?
Whitaker – Esse tema também é objeto de vários seminários aqui. Objetivamente, o que o Fórum coloca como proposta é uma superação dos métodos tradicionais da política, que reduziram sua ação a ação de partidos e governos, quando a sociedade civil também é um ator político. Toda a ação política também é de cada cidadão. Cada vez mais tem se partido não só apenas para uma democracia participativa no funcionamento da sociedade, mas também na própria maneira de fazer e decidir a sua política. Essa crise da esquerda no mundo vem um pouco da perplexidade. Por exemplo, há muitos países no mundo que tem uma esquerda fortalecida e que perdem eleições de uma maneira impressionante. Os casos da França e da Itália são muito característicos nesse sentido.
Qual tem sido o peso da participação de movimentos sociais no Fórum?
Whitaker – O Fórum é composto por três tipos de participantes: os que vêm de ONGs; os que vêm de movimentos sociais, que estão em lutas específicas ou causas determinadas; e os participantes que vêm se sindicatos e uniões de trabalhadores de diferentes tipos. Todos eles têm espaço aberto e têm importância. Tudo depende de que eles mesmos considerem que vale a pena vir aqui para aprender uns com os outros, para trocar experiências e para fazer novas articulações entre si. Está sendo crescente essa participação. A marcha de ontem (terça-feira, dia 27/01) mostrou bem a diversidade de lutas que estão presentes aqui no Fórum.
No entanto, alguns teóricos e analistas sociais identificam um descenso nos movimentos sociais. Isso não aparece no Fórum?
Whitaker – Na verdade, está havendo no Brasil esse descenso, porque o governo atual foi eleito praticamente pelos movimentos sociais e pelas organizações de base da sociedade. E esse governo, além de não atingir as aspirações para as quais foi eleito, está conseguindo desmobilizar muito a sociedade civil organizada por um processo de cooptação, chamando gente para participar do governo. Por outro lado, muitos movimentos sociais brasileiros estão com as mãos um pouco amarradas, sem possibilidade de criticar livremente o governo, porque são dependentes dele, em certo sentido. Eles são mais aliados do governo do que a sociedade civil autônoma. E isso criou efetivamente um descenso. E muitas das nossas lutas sociais perderam o impacto porque, em princípio, o governo seria aliado delas. Mas, na verdade, acaba não realizando o que elas esperam.
"Os que estão reunidos lá (Davos) são os responsáveis por essa crise financeira. São os que sempre disseram que o mercado resolve tudo"
Qual o significado de realizar o Fórum Econômico Mundial, em Davos, nesse momento de crise financeira? O que muda em relação aos anos anteriores?
Whitaker – Eles estão em um ambiente de muito derrotismo de suas defesas. Os que estão reunidos lá são os responsáveis por essa crise financeira. São os que sempre disseram que o mercado resolve tudo. E estão vivendo o seu momento de risco, enquanto que aqui no FSM estamos no grande momento da oportunidade.
O senhor acha importante o reconhecimento dos participantes de Davos de que erraram em relação ao capitalismo e aos mercados auto-regulados, sem intervenção do Estado?
Whitaker – É positivo para eles que reconheçam esse erro, porque precisam ser realistas. O próprio presidente do Federal Reserve Bank, dos Estados Unidos, Alan Greenspan, fez declarações inacreditáveis, dizendo que ele nunca imaginava que os bancos pudessem se comportar da forma como se comportaram. Ele sempre achou que o mercado resolveria tudo. E constatou, com essa crise, que não é bem assim, que eles são conduzidos muito mais pela busca de dinheiro, pela ganância, do que pela busca de soluções para os problemas. Para que eles sobrevivam, precisam mudar suas práticas e sua maneira de trabalhar.
Considerando o pensamento de Renato Janine Ribeiro, que afirma: “o que deu força ao capitalismo é que apostou em paixões fáceis de seguir. As alternativas a ele exigem mais de nós. O capitalismo é confortável. Não pede uma alta moralidade. Lida com os homens "como eles são". Uma sociedade cristã, socialista ou amiga da natureza demandaria muito mais de todos nós. Será que nos dispomos a pagar o preço da moral? Estaremos dispostos a incluir o heroísmo, talvez até o martírio, em nosso rol de experiências possíveis? Se não, a destruição periódica que o capitalismo efetua pode continuar sendo mais conveniente para nós. Mesmo que, um dia, o planeta acabe.”, o senhor acredita em uma crise do capitalismo?
Whitaker – A posição que ele coloca nos mostra que o ser humano tende ao egoísmo, ao individualismo, e, portanto, só pensa em si mesmo. Qualquer alternativa mais cooperativa custa mais para as pessoas. Nisso ele tem toda a razão, porque é verdade. Só que aceitar que isso aconteça dessa forma, é aceitar que não possa haver transformação do ser humano, que ele não possa crescer como pessoa humana. O que ele está descobrindo agora com a ecologia, especialmente, é que uma das regras básicas da natureza é exatamente a inter-relação e a cooperação. Isso nós temos que viver, entre os seres humanos, ou nos transformaremos em inimigos e o homem vira lobo do homem. A sociedade de convívio que queremos construir exige mais força.
Mas o que está acontecendo é que esse egoísmo não acontece de forma automática. Há um instinto de sobrevivência que faz com que, quando a sociedade sente que as coisas estão mudando, é preciso fazer um esforço. Há muitos momentos históricos de sociedades inteiras que se levantaram para fazer frente a desafios maiores que acabaram sendo superados. Dizer que o capitalismo pode levar à destruição do planeta terra é uma visão muito pessimista. É uma visão que não acredita na capacidade do ser humano de se superar a si mesmo. E, ao mesmo tempo, não é preciso chegar a um heroísmo, nem ao martírio. Podemos, perfeitamente, ir mudando nossos comportamentos cotidianos, por exemplo, descobrindo que o ser nos deixa mais felizes do que o ter. No Fórum, vejo aquela juventude e percebo que há cada vez mais gente disposta a se superar, para fazer a mudança que o mundo exige. Nós não estamos condenados a destruir o planeta terra. O ser humano tem capacidade de superar tudo isso.
(Repórter Brasil, 21/01/2009)